Uma ideia de museu
Romana, nascida em 1914, Lina teve toda a sua formação no que podemos chamar era do fascismo: na infância, como "balila" de Mussolini; na juventude universitária e como arquiteta recém formada - durante a guerra - como membro da resistência comunista.
A guerra foi a marca que carregou durante toda a sua vida, e de onde tirou, continuamente, forças para enfrentar dificuldades, derrubar barreiras, e pensar que a vida é vida sempre por um fio, e que portanto só se deve pensar e fazer aquilo que é fundamental, imprescindível, vital. Daí Lina tirou seu profundo senso objetivo e poético ao mesmo tempo.
Em 1946, casa-se com o marchand, crítico de arte, jornalista e polemista, P.M.Bardi, e embarca para o Brasil numa viagem de passeio.
Lina já conhecera, na escola de arquitetura, os projetos modernos dos brasileiros Lúcio Costa, Niemeyer e grupo, sobretudo o Ministério da Educação e Saúde, com a participação de Le Corbusier, e o Conjunto da Pampulha, de Niemeyer: - "Era fascinante e novo, livre. Rompia com a rigidez racionalista", dizia ela.
Ao chegar ao Rio de Janeiro, o casal Bardi é convidado por Assis Chateaubriand, magnata das comunicações e grande realizador, a ficar no Brasil para criar um Museu de Arte, que acabou sendo fundado em São Paulo.
Lina fica fascinada com a arquitetura que florescia com liberdade, com a paisagem tropical, com o verde, com um país que não tinha ruínas, nem as da guerra e nem as históricas. Impregnada de entusiasmo, vinda de uma Europa destruída pela guerra, assim refletia sobre um museu no Brasil:
"Um recanto de memória? Um túmulo para múmias ilustres? Um depósito ou um arquivo de obras humanas que, feitas pelos homens para os homens, já são obsoletas e devem ser administradas com um sentido de piedade? Nada disso. Os museus novos devem abrir suas portas, deixar entrar o ar puro, a luz".
Sem abrir mão da formação racionalista (defensora ferrenha do movimento moderno), com sua enorme erudição, Lina mergulha no mundo brasileiro para projetar um museu nos trópicos, para um povo novo, mestiço “sem o peso e as amarras do passado”- costumava dizer.
Com esse ideário nasceu o Museu de Arte de São Paulo. Primeiramente num antigo edifício do centro da cidade reformado por Lina e, posteriormente, em sua atual sede, à avenida Paulista.
Do primeiro Museu, na rua 7 de Abril, ao segundo, definitivo, Lina , com um projeto arquitetônico revolucionário, leva a cabo suas idéias sobre museus, desde a organização dos espaços até a maneira de expor.
O edifício do Museu de Arte de São Paulo é um marco da arquitetura moderna brasileira e, como tal, deve ser discutido. Mas creio que, hoje, discutir sua relação com a cidade, com o espaço em que está inserido e seu significado simbólico para a população paulista - e porque não, brasileira - é mais importante do que fechá-lo no discurso arquitetônico, muitas vezes hermético e inócuo.
No Brasil, a grande maioria de nossas cidades ainda carecem de um mínimo básico de conforto urbano, no amplo significado do termo. São cidades ofendidas e maltratadas. Não temos transporte público adequado, habitação, áreas públicas, parques, áreas verdes, praças, espaços de encontro; enfim, não temos planos urbanos nem de longo e nem de médio prazo.
É no contexto dessas carências que devemos analisar o significado de certos projetos pontuais: sua capacidade transformadora no ambiente urbano e sua capacidade de mudar mentalidades. A importância do MASP fica muito mais evidente se o consideramos na ótica da cidade caótica que é São Paulo. Quando digo MASP, digo não somente o edifício, mas o programa do museu como um todo.
Arquitetura, para Lina Bo Bardi, era o meio concreto de agir sobre a realidade, de revelar, criar ou modificar contextos. A arquitetura do MASP é, para além do edifício, uma idéia de Museu.
Com uma importantíssima coleção de arte, implantado num dos pontos mais importantes da cidade, o museu representa um oásis em meio ao deserto arquitetônico que o circunda, salvo 4 ou 5 edifícios em toda avenida Paulista. Oásis também por acentuar o vazio - o espaço livre e democrático do Belvedere, acessível a todo cidadão, rico ou pobre, suprindo assim uma de nossas maiores carências: a falta de espaços públicos; Oásis por sua baixa taxa de ocupação e sua implantação adequada à topografia, ao contrário de todos os outros edifícios da rica avenida Paulista: os grandes bancos, grandes empresas, enormes edifícios agarrados ao solo, cercados de grades, sem um metro quadrado de espaço público.
As cidades são representadas não somente, mas principalmente, pelos seus edifícios. O edifício do Museu foi eleito pelos cidadãos de São Paulo como um de seus símbolos máximos: a imagem que escolhemos para nos representar. Isso não é pouco. A arquitetura que fica para contar ou testemunhar a história da humanidade é aquela que mantém algo de sagrado, no sentido de respeitável, de depositário de crenças, devoção, ou representante do imaginário de um povo: símbolo de uma gente, de uma época. E o MASP é isso. Dentro dessa cidade de vida dura e opressiva, a população elegeu uma imagem que é, em grande parte, o seu avesso, uma imagem que representa a esperança em uma cidade mais humana. Esse corpo estranho na gigantesca cidade é o ponto de referência para os encontros mundanos e cívicos, para namoros e protestos políticos - como por exemplo, na recente derrubada de um presidente da república. A arquitetura revolucionária de Lina Bardi não só foi aceita, mas adotada pela população de São Paulo. E com muito carinho.
Dito isso, podemos circundar e adentar o edifício.
Situado em um terreno com 4 frentes, o edifício não tem fachada principal. Quem o vê pela Avenida Paulista não pode imaginar que ele se duplica no subsolo, criando a surpreendente fachada oposta, de uma construção em terraços e jardineiras, ancorada na encosta, com a vista para o vale da Avenida Nove de Julho. É a quebra da dureza do objeto suspenso – o corpo superior, tenso, que desafia a gravidade. Entre estes dois corpos, o grande vazio que parece sustentar acima a grande caixa e comprimir para o subsolo o corpo inferior do museu.
Do ponto de vista da química, isto seria algo como uma enorme diferença de pressão, onde o gasoso é capaz de isolar dois sólidos. Como se trata de pura arquitetura, onde técnica e poesia se aliam, é o desafio, a ousadia humana que lá está. A conquista do “nada”, como dizia Lina, ou o desejo de liberdade. Lina sempre se referia ao comentário do compositor John Cage quando viu pela primeira vez o MASP: “É a arquitetura da Liberdade !”.
Essa busca de liberdade, ou o desafio de sua procura, continua em cada espaço, cada gesto do projeto do museu. Ao descermos ao subsolo, como em uma estação de metrô, ao invés da escuridão, da falta de ar, encontramos a luz, cristalina, filtrada pelo verde das floreiras, e a vista livre sobre o vale. Isso se deve à inteligente e bem acertada implantação do edifício na paisagem, como já me referi anteriormente. Saber tirar partido do contexto, seja ele físico ou abstrato, sempre foi uma das qualidades de Lina Bo Bardi, que gostava de citar F. L. Wright: “em todo projeto, as dificuldades , as limitações são nossos maiores amigos, são as dicas para as boas soluções”.
Ainda no subsolo do edifício, os auditórios são inovadores em termos de aproveitamento e desenho do espaço. O menor, com os assentos inclinados na diagonal do quadrado, e o maior, com seus palcos laterais, seu despojamento e versatilidade, que permitem os múltiplos usos que os espaços cênicos contemporâneos tanto necessitam.
Os espaços do Museu são espaços amplos, abertos, de refinada simplicidade, que suportam todo tipo de intervenção nas exposições, guardando sempre o ar de liberdade da boca de uma grande caverna.
Se subimos do nível da Avenida Paulista, do enorme vão livre, para a caixa suspensa, encontramos ainda aí e com força total, a vontade de liberdade: um grande “oceano de pinturas”. Os quadros se libertam das paredes e flutuam em cavaletes de concreto e vidro utilizados como suporte/ expositor: lembrança do cavalete do atelier do artista, que mostra o verso, as costas da tela, muitas vezes com preciosas anotações. O nome do quadro e do autor também ficam nas costas, para que o público não se sinta obrigado a gostar deste ou daquele quadro, apenas pelo nome do autor. "Oh! É um Picasso! Lindo!". Não, o espectador é livre para gostar ou não, e também para criar as relações que quiser dentro deste verdadeiro "varal" de pinturas de várias épocas. Em visita ao MASP, o arquiteto holandes Aldo van Eyck perguntou: “Quem sabe qual é o melhor fundo para um Cézanne? Branco, cinza, rosa? Eu poderia achar que é um El Greco, ou um Goya”..
Um museu sem paredes. Lina citava Maiakovski: “Chegou a hora de jogar as pedras, os projéteis e as bombas nas paredes dos museus”.
Uma grande família de artistas que não são separados, nem no tempo – na classificação ocidental da arte – e nem no espaço. Convivem bem e, se pudéssemos perguntar, certamente teríamos um Picasso orgulhoso de ter ao seu lado um Goya. Ou um Matisse que divide o espaço com um Rafael. Só a América, o Novo Mundo, poderia admitir uma coleção exposta desta maneira. No Brasil, mistura de Europa Ibérica, África e Oriente - no que herdamos dos índios -, podemos ousar novos caminhos que não o eurocêntrico.
Queremos sim todas as conquistas tecnológicas, científicas e culturais do Ocidente, mas as utilizaremos ao nosso modo. Assim é o museu: a técnica de ponta, as conquistas da arquitetura moderna, a importante coleção de arte ocidental, a serviço de uma visão nova de Museu. Um museu que, ao ser pensado, concebido e projetado, leva em conta a cultura brasileira no que ela pode ter de mais belo: a vontade de ser livre, o combate à submissão e às regras importadas.
É o Museu descolonizado. O Museu do Novo Mundo, que luta contra o complexo de inferioridade, nossa pior herança da colonização e da escravatura.
Esta é a idéia de museu que nos interessa. Uma idéia força, veículo portador de um desejo, de um sonho materializado em forma, a serviço do Homem e das relações humanas.
Talvez, toda arquitetura assim o devesse ser.
Marcelo Ferraz é arquiteto e dirigiu, de 1992 a 2001, o Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Atualmente trabalha no projeto de um shoping center que contém um grande teatro de estádio no Bairro do Bixiga, junto ao Teatro Oficina.