Coletividade, autonomia e estrangeiros indígenas na Bienal de Veneza
Performance de Ziel Karapotó durante abertura da participação brasileira na 60ª Bienal de Veneza no Pavilhão Hãhãwpuá (Pavilhão do Brasil) © Flavio Coddou / Fundação Bienal de São Paulo
Por Naine Terena, artista, educadora e curadora, discute a significativa presença de artistas indígenas na 60ª Mostra Internacional de Arte – La Biennale di Venezia, intitulada Stranieri Ovunque – Foreigners Everywhere [Estrangeiros em todo lugar].
A Bienal de Veneza é reconhecida como um dos principais eventos de arte do mundo. Com mais de cem anos de história, marcada por discussões sobre cânones, mercado e poder, já foi muito debatida. Contudo, a edição de 2024, intitulada Stranieri Ovunque – Foreigners Everywhere [Estrangeiros em todo lugar], é especialmente simbólica para os indígenas brasileiros, que apenas agora estão ocupando esse espaço de forma significativa, em diversas frentes. O próprio nome da mostra levanta questões importantes sobre a ideia de “estrangeiros”, inclusive no contexto da Bienal.
Representa um marco importante para a história da Bienal e da arte brasileira a presença de artistas indígenas tanto na mostra principal, com curadoria de Adriano Pedrosa, quanto no Pavilhão do Brasil – renomeado Pavilhão Hãhãwpuá para esta edição –, com curadoria de Arissana Pataxó, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana. Mas qual é o significado desse marco? Para explorar essa questão, conversei com artistas que integraram a exposição Ka’a Pûera: nós somos pássaros que andam, a participação brasileira nesta edição. Olinda Tupinambá, Glicéria Tupinambá e Ziel Karapotó compartilharam suas reflexões sobre o significado de ocupar esse espaço.
Coletividade, agrupamentos e comunitarismo – um jeito indígena de fazer arte
A partir dessas conversas, emergiram aspectos fundamentais sobre a presença indígena na Bienal e sua relação com a arte contemporânea. O Pavilhão Hãhãwpuá priorizou a oportunidade de contar histórias por meio da arte, revelando uma rede de colaboração enraizada na tradição indígena, que sobreviveu por 524 anos ao contato com não indígenas.
Apesar de contar com três artistas principais, a mostra foi fruto de muitas outras colaborações, o que reflete o comunitarismo indígena. Esse caráter colaborativo se expandiu também como um processo pedagógico para o campo das artes. Glicéria Tupinambá e Ziel Karapotó, por exemplo, trabalharam com membros de suas aldeias e familiares. Ziel contou com a ajuda de seus parentes na confecção das redes de pesca, uma técnica que aprendeu com sua mãe e que agora é transmitida à próxima geração.
Além das redes, os maracás usados na obra de Ziel foram preparados com o auxílio de seu primo Elenildo Suanã, que também o ajudou a coletar os materiais. Compondo a paisagem sonora da instalação em Veneza, Toré foi gravada com um grupo de sua comunidade. Já Glicéria envolveu os curadores em uma série de atividades que geraram o vídeo exposto na Bienal. Para ela, o trabalho coletivo é fundamental, pois valoriza não só o resultado final, mas também os processos comunitários que levam à criação artística.
Além do impacto no campo das artes, Glicéria destaca a importância desse tipo de atividade para a preservação da cultura indígena. “Estar com os jovens e os mais velhos, tendo o lugar de fala, transmitindo o conhecimento para os mais jovens, gera confiança. Os anciãos são os detentores de conhecimento, e se intensifica a transmissão de saberes pelos mestres na aldeia. Os jovens se interessam mais em querer aprender, em querer entender o lugar desse conhecimento. Esse espaço se abriu para valorizar os mais velhos, e os mais jovens buscarem esses conhecimentos para serem guardiões no futuro”, explica a artista.
Ainda no campo das parcerias, durante os eventos de abertura da Bienal, Ziel Karapotó e Olinda Tupinambá realizaram uma performance no Pavilhão. Nela, Ziel destruía balas de revólver com uma pedra, simbolizando a violência sofrida por indígenas e outros grupos marginalizados. Olinda, por sua vez, apresentou elementos ligados ao mundo espiritual indígena, essenciais para a sua resistência cultural.
As obras no Pavilhão Hãhãwpuá parecem ainda estar em construção (como não poderia deixar de ser em uma exposição indígena), com outros colaboradores que pertencem à complexa ideia de equilíbrio e diálogo entre o humano, animal, vegetal e cosmológico. Nos últimos meses foram flagradas pequenas formas de vida, coabitando e cocriando esse lugar: do brotar das batatas doces aos ninhos preparados pelas pequenas aves que entraram no pavilhão e sentiram, ali, a segurança de um terreno fértil. Não são estrangeiros nesse lugar.
A artista Olinda Tupinambá discorre sobre o evento: “Acredito que a arte é capaz de despertar a curiosidade e a reflexão sobre um país, sobre suas culturas, sobre o mundo. Nesse sentido, a Bienal é uma importante vitrine para a visibilidade de manifestações artísticas ligadas aos diversos povos, às diversas culturas e às visões de arte que estão presentes no mundo”.
A presença indígena na Bienal representa uma oportunidade de ressignificar o passado, presente e futuro da história da arte, trazendo à tona as realidades sociais e os dispositivos políticos dos povos indígenas no Brasil hoje, algo pouco conhecido por muitos dos visitantes. Glicéria Tupinambá ressalta que, na Bienal, foi possível mostrar a vida indígena ao mundo sem pautar o que é certo e errado no fazer artístico. Foi possível apresentar outros conhecimentos, que até então estavam nas “sombras”.
Glicéria pondera que isso só foi possível porque o trabalho da equipe carregou algo muito presente entre os povos indígenas: a ação coletiva. “As perspectivas de escuta, conversa, de chegar até o lugar de apresentar a cultura indígena brasileira é um lugar de ocupação importante na Bienal de Veneza”, comentou a artista. Porém, ainda que considere importante esse espaço, Glicéria aponta ainda que esta foi uma entre muitas “flechas lançadas” – e é só o começo. Essa flecha lançada, para Olinda, demonstra como o público de eventos como esse ainda pouco conhece sobre a arte e os indígenas do Brasil. “Esse contato me fez entender que as pessoas sabem ainda menos do que eu pensava sobre a arte indígena, e isso gerou a oportunidade de levar a realidade de nossa arte para esse público”, pondera Olinda.
Esse contato, na percepção de Glicéria, também aproximou os brasileiros que estão fora do Brasil com a sua própria história. Ela relembra: “Durante a abertura, pessoas brasileiras se permitiram emocionar e buscar memórias do território. Dessa perspectiva foi incrível, conseguimos levar a linguagem, o sentimento, para fazer as pessoas sentirem essa imersão. Serviu também para reflexões sobre que lugar é esse e como ele nos proporciona ampliar conhecimento, técnica, transmissão de saberes, escuta e como transmitir o que é importante para a história indígena”.
Como artistas que produzem e vivenciam o mercado, o grupo também tem suas impressões. É importante dizer que o tema também tem sido problematizado, já que amplia a perspectiva das produções para além do binômio arte-ativismo e gera uma movimentação comercial em torno de artistas indígenas. Olinda explica que a arte é sobretudo a manifestação dos pensamentos e visões de mundo amalgamadas em cada artista, e que refletem suas histórias de vida e suas trajetórias profissionais, seus interesses pessoais, seus mundos. Frisa que foi um importante momento para vivenciar o universo da arte, conhecer outros artistas e poder expor seu trabalho para um público mais amplo. Glicéria faz um balanço sobre a participação: “O impacto foi positivo, tivemos bastante visibilidade na mídia, a representação de um Estado, de uma localidade, de um território que as pessoas não conheciam. Outros convites surgem para participação em outros eventos, outras imersões”.
Fonte: https://bienal.org.br/coletividade-autonomia-e-estrangeiros-indigenas-na-bienal-de-veneza/?utm_campaign=2024_10_29_newsletter_semanal_bienal-naine-terena&utm_medium=email&utm_source=RD+Station