Utopia universalista de Sergio Paulo Rouanet permanece viva
Imagem Sérgio Rouanet
Por Folha de S.Paulo https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/utopia-universalista-de-sergio-paulo-rouanet-permanece-viva.shtml#_=_
João Almino
O filósofo e diplomata Sergio Paulo Rouanet morreu em neste domingo (3), mas sua obra mantém-se viva, não porque suas ideias tenham prevalecido —pela razão inversa.
Conhecido nacionalmente pela Lei de Incentivo à Cultura, que leva seu nome, deu uma contribuição importante ao Itamaraty, entre outros campos, por meio de propostas e de negociações do Gatt (prévio à criação da Organização Mundial do Comércio) e da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e do Desenvolvimento), que favoreceram os países em desenvolvimento.
Foi membro da ABL (Academia Brasileira de Letras), e seu legado inclui a criação recente do Instituto Rouanet, em Tiradentes. Escreveu sobre Machado de Assis (“Riso e Melancolia”), sobre Freud (“Édipo e o Anjo” e “Os Dez Amigos de Freud”).
O cerne de sua obra filosófica, sobretudo, é reconhecido dentro e fora do Brasil. É a ele que quero me dedicar neste artigo.
Ao fazer a defesa do universalismo, Rouanet nadou contra a corrente. Reelaborou ideias da Ilustração dentro de um novo conceito de Iluminismo. Este, tal como ele propôs, é uma utopia e situa-se no campo das ideias, que podem ser utilizadas como um guia em qualquer tempo e lugar. Não se confunde, portanto, com a Ilustração, que é fenômeno histórico europeu do século 18.
Algumas das reflexões de Rouanet sobre o relativismo —e, em especial, o relativismo cultural— são da década de 1980 e 1990 e têm ganhado atualidade porque as correntes relativistas que ele criticou se reforçaram desde então. Os particularismos, baseados em religião e nação, em especial, têm aguçado disputas políticas, servido ao autoritarismo e alimentado guerras civis e internacionais.
Em “As Razões do Iluminismo“, de 1987, Rouanet explica por que a geração de uma cultura autônoma não deve ficar confinada a fronteiras nacionais: a inteligência não tem pátria, a cultura autêntica pode ser estrangeira, a cultura nacional pode ser alienada e, se a cultura é verdadeiramente universal, ela é “ipso facto” nacional.
Um dos ensaios, intitulado “O novo irracionalismo brasileiro”, havia sido publicado no Folhetim, da Folha, em 17 de novembro de 1985, sob o título “Verde-amarelo é a cor do nosso irracionalismo”.
É, a meu ver, em “Mal-estar na Modernidade“, de 1993, que Rouanet expõe o cerne de seu pensamento iluminista. Na contramão dos deterministas culturais, que, em geral, não admitem a realidade dinâmica das culturas nem, em maior ou menor grau, seu caráter híbrido, ele defende que a cultura é síntese sempre se fazendo e será tanto mais vigorosa quanto mais diversificados forem os elementos dessa síntese. A natureza dinâmica e sincrética das culturas torna mais complexas, por sua vez, as noções de identidade e de raízes, que supõem uniformidade, paralisia e, quando negam a hibridização, endogamia.
Para Rouanet, as culturas enfrentam dois grandes desafios. Um deles é olhar-se no espelho que mostre o caminho do futuro e não apenas confirme o que são na face imobilizada de seu presente. Outro é o de manter a perspectiva da mudança sem se descaracterizarem.
O relativismo condena as culturas ao que elas são. É, portanto, conservador e avesso à crítica e está a serviço de uma estratégia defensiva. Desativa a razão por torná-la relativa e deixa o pensamento crítico sem instrumentos para combater os horrores que existem efetivamente.
Ainda em “Mal-estar na Modernidade”, Rouanet chama de “historista” a atitude ou posição teórica caracterizada pela exaltação de uma particularidade, investida em uma totalidade temporal ou grupal. Para ele, o mais influente dos relativismos históricos é precisamente o cultural.
Este justifica uma atitude de tolerância com relação às culturas alheias e favorece o statu quo por duas vias: a noção de que todos os critérios de julgamento moral se enraízam na cultura e a noção correlata de que não há possibilidade de avaliação intercultural ou transcultural.
A particularidade é, assim, uma arma do poder repressivo. Todo “historismo” é protecionista e protege um patrimônio: a propriedade, a tradição ou a ordem social.
Isso não significa preconizar a extinção das particularidades existentes, tampouco opor-se ao uso metodológico do relativismo para estudar a cultura alheia. Trata-se, sobretudo, de uma crítica ao uso ideológico de particularidades reais como pretexto para silenciar a crítica e a autocrítica. O “historista” não se oporia às práticas da Inquisição, pois foram culturalmente condicionadas e faziam sentido na Idade Média cristã.
Em outro exemplo, se todos os padrões são culturalmente condicionados, não existindo padrões transculturais de avaliação, como criticar, por exemplo, o nazismo? Considerar igualmente válidos, por exemplo, a mutilação clitoriana e a emancipação da mulher não seria suspender o julgamento, seria aprovar a prática injusta.
O iluminista condena a discriminação e qualquer manifestação de sexismo e de racismo, porque esses são uma lesão da dignidade universal do ser humano. Não fala a partir da nação, mas a defende quando agredida, porque a agressão injustificada é uma violação de normas universais.
A ideia iluminista é, assim, universalista em sua abrangência, pois visa a todos os seres humanos sem limitações. É individualizante em seu foco, pois os sujeitos e os objetos do processo de civilização são indivíduos. É emancipatória em sua intenção, pois esses indivíduos devem aceder à plena autonomia, no tríplice registro do pensamento, da política e da economia.
Propõe que passemos do conceito de civilizações, umas se opondo a outras, ao de civilização no singular. Com isso, reintroduz no conceito sua dimensão valorativa e normativa, que o opõe ao de barbárie.
O primeiro ensaio de “Mal-estar na Modernidade” se intitula “Iluminismo ou barbárie”. É uma alusão ao grupo Socialismo ou Barbárie, que se organizou na França em torno, principalmente, dos filósofos Cornelius Castoriadis e Claude Lefort. Na oposição do iluminismo à barbárie existe uma assimilação entre o iluminismo e a civilização, entendida como a civilização moderna. A primeira seção do ensaio está, aliás, intitulada “A crise da civilização moderna”.
Ainda nesse livro, Rouanet explica que a oposição civilização-barbárie já havia sido utilizada de maneira xenófoba e conheceu seu apogeu na idade de ouro do imperialismo europeu. Em uma posição radicalmente distinta, o iluminista combate a particularidade eurocêntrica que se quer hegemônica. O colonialismo e o imperialismo não foram universalistas: empenharam-se em exportar suas particularidades culturais, acreditando levar a razão em si. O lobo particularista se fantasiava de cordeiro universal.
A atualização da antítese civilização-barbárie parte de uma estrutura de valores universal. No polo da civilização, estariam aqueles —em qualquer lugar do mundo— que lutam pelos direitos humanos e pela democracia. Estaria uma utopia não eurocêntrica e universalista de emancipação econômica, política e cultural dos seres humanos. A ideia é irrealizável, mas insubstituível, pois sem ela nosso percurso seria cego.
No polo oposto, o da barbárie, se encontrariam o crime organizado, as classes dominantes corrompidas e responsáveis pela exclusão social, os terroristas e fundamentalistas.
A civilização, assim entendida, coincidiria com o “projeto civilizatório da modernidade”. À semelhança do Iluminismo, é uma utopia que se enfrenta às realidades da barbárie e contrária a todos os etnocentrismos, pelo menos por duas razões: porque inclui entre seus valores centrais o universalismo, quando todo etnocentrismo é particularismo, e porque elege como sua ética a da autonomia, quando o etnocentrismo nega o preceito kantiano de respeitar a dignidade e a liberdade de todos os homens.
Essa visão utópica acena para a possibilidade de que as culturas mais vulneráveis possam proteger-se do etnocentrismo e do poder dos mais fortes. Ao mesmo tempo, estariam abertas para receber aquela influência que fizessem avançar suas sociedades na direção da paz, da justiça, do desenvolvimento, de melhores condições sociais, da igualdade e da liberdade.
Em um artigo para o caderno Mais!, da Folha, intitulado “Liberdade transcultural” e publicado em 1º de abril de 2001, Rouanet mostra que duas ideologias, na aparência opostas, seriam na verdade complementares: a que reivindica para o Ocidente o monopólio das ideias liberais e as do nacionalismo autoritário, que endossa esse julgamento para executar suas políticas repressivas contra dissidentes.
Em seu livro “Interrogações”, de 2003, Rouanet crê que o processo de universalização nos torna menos provincianos e está acompanhado de uma pluralização cultural que preserva a diversidade. A universalização seria pluralista porque seus fins só podem ser atingidos por uma racionalidade comunicativa que supõe o desejo e o poder dos sujeitos de defenderem a especificidade de suas formas de vida.
Ao mesmo tempo, está aberta a sincretismos e formas inéditas de hibridização. A universalização e a pluralização seriam as duas faces da modernidade emancipatória, voltada para a autonomia. A universalização seria o movimento de internacionalização da modernidade emancipatória.
Longe de ser uma ideologia ocidental, a doutrina dos direitos humanos serviria para condenar o próprio Ocidente quando impõe políticas imperialistas, pois essas violam o mais elementar dos direitos do homem: o direito de moldar o próprio destino.
Para Rouanet, o homem não pode viver fora da cultura, mas ela não é o seu destino e sim um meio para sua liberdade.
O Iluminismo, tal como proposto por ele, não está ultrapassado. As ideias desses livros e ensaios podem estar circunstancialmente derrotadas, mas não morrerão tão cedo. Continuarão pulsando nos corações dos que clamam por liberdade, autonomia, autodeterminação e emancipação.