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Razões/desrazões do Iluminismo (Carta-homenagem-póstuma a Sérgio Paulo Rouanet)

Sérgio Paulo Rouanet – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

Por Jornal da USP https://jornal.usp.br/artigos/razoes-desrazoes-do-iluminismo-carta-homenagem-postuma-a-sergio-paulo-rouanet/

 

Cremilda Medina, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

Você, Sérgio Paulo Rouanet, que nos deixou no último domingo, dia 3 de julho de 2022, merece todas as homenagens daqueles a quem inspirou nos seus 88 anos. Quero acrescentar um pequeno testemunho do que, em encontros esporádicos nas suas visitas a São Paulo, tive o privilégio de lhe falar pessoalmente. De sua trajetória, guardo uma tríplice face: a do ensaísta, a do ativista cultural e a do interlocutor de escutas plurais ou capaz de conjugar a simplicidade com a sutil reflexão.

 

Você nem sabe quanto foi significativa uma semente ensaística dos anos 1980. Os grupos de trabalho na graduação e pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo leram e discutiram comigo o inquietante texto “A verdade e a ilusão do pós-moderno”, publicado na Revista do Brasil (Ano 2, nº 5/86), um ano antes do seu famoso livro As razões do Iluminismo que saiu pela Companhia das Letras e prossegue sua carreira inesgotável de leitores. Várias gerações de pesquisa se sucederam, mas a revista que guardo na ECA está toda marcada pelo tempo e pelas ideias precursoras do pensador que nos encaminha nas contradições da modernidade, nas ilusões da pós-modernidade e assume a direção das forças culturais (artísticas) renovadoras de uma possível neomodernidade. No início dos 1980 criou-se a dicotomia modernidade/pós-modernidade e você, não afeito a reduções conceituais, pôs lenha na fogueira com sua visão complexa nos entrechoques de pensamento. Para além de esmiuçar sua erudição humanística, nós muito degustamos a sua estrutura argumentativa. Até hoje você segue modelar para comentaristas ligeiros que expõem certezas definitivas, erguidas a partir de um ponto fixo de opinião. Não, o seu ensaio pioneiro de 1986 se constrói em três etapas em que se salienta o profundo respeito aos antecedentes teóricos da modernidade, a seguir aos arautos da pós-modernidade e só no terceiro momento, emerge sua utopia de neomodernidade.

 

Sua utopia que se, por um lado, era portadora de esperanças na superação de mazelas, frustrações, irrealizações das bandeiras modernas, por outro, não se entregava à negação do núcleo duro dos sonhos humanos que vinham, aos tropeços, enfrentando as impossibilidades da História. A noção de neomoderno que você nos oferece soma razões e desrazões do Iluminismo sem interromper, nas inerentes contradições, as lutas de séculos de ação. Ação que é outra qualidade que sua biografia nos lega: de intelectual combativo a diplomata, secretário da Cultura, enfim você arregaçou as mangas e atuou na conjugação teoria-prática. Não por acaso, você levou às últimas consequências a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, um autor com quem dialogou. Essa teoria, como você escreveu, “está firmemente ancorada num chão social” e, por isso, quando assumiu a pasta da Cultura nos anos 1990, firmou um contrato com o apoio concreto ao mundo da criação artística (Lei brasileira de incentivos fiscais à cultura).

 

Ao entrar para a Academia Brasileira de Letras, em 1992, não só já se contavam livros de consistência inquestionável de sua autoria, como seu empenho de ação política selara um pacto definitivo com as mobilizações artísticas carentes de estímulos nas sociedades modernas. Para você, já o disse no seu arcabouço bibliográfico, “a modernidade cultural tem uma dinâmica que resiste a qualquer tentativa de domesticação por parte do sistema e produz ela própria efeitos contrários ao sistema”. E você, em lugar de se ilhar nas ideias de desistência, empurrou setas de renovação em meio ao ciclo de travas circunstanciais.

 

A Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP soube, a tempo, lhe prestar grandes homenagens de 2016 a 2017. Em um dos seminários para o qual fui chamada como comentadora – De Kant a Machado de Assis, Reflexões sobre a Modernidade no Brasil, cujos anais foram publicados em 2020 –, partilhei com Jeane Marie Gabnebin e Willi Bolle a cena principal ocupada na mesa do auditório da USP por você e Barbara Freitag Rouanet. Minha emoção acumulava ali décadas, pois sua companheira, a socióloga especialista nos filósofos alemães, pesquisadora que trabalhou com Piaget, para quem não sabe, você, sim, sabe e sempre teve muito afeto por essa história, pois como queria dizer, Barbara foi minha colega e amiga na primeira série ginasial no Colégio Farroupilha de Porto Alegre, em 1954. De maneira que muito antes de ela o conhecer, nós já havíamos pactuado cumplicidade, embora os destinos diversos de ambas. E quando o encontro de vocês se consagrou logo percebi que pessoa simples no trajar, simples no se comunicar e carinhosamente atento ao Outro era aquele diplomata e aquele autor de um livro muito especial, Édipo e o anjo, itinerários freudianos em Walter Benjamin (Edições Tempo Brasileiro, 1981). Seria para sempre leitora, amiga privilegiada em algumas oportunidades em que o casal nos visitava, a Sinval Medina e a mim, em São Paulo. Então, na mesa das conferências de você, Sérgio, e da Barbara, tentei abstrair todo o histórico afetivo que nos une e tentar cruzar nossas trilhas transdisciplinares. Em um dos trechos, lhe disse:

 

– Por que sou discípula de Rouanet desde que o conheci bibliograficamente? Primeiro, porque sua reflexão traduz um misto de poética e de argumentação, diríamos, racional. Qualquer texto de Rouanet transcende, na palavra poética, o argumento lógico árido ou reducionista. Diria que o poeta arbitra a liberdade metafórica, quebra os muros da razão fechada, a autoria ensaística se abre, afeta à condição humana. (…) Em segundo plano ou no plano paralelo e cruzado com a estilística poética, os enraizamentos conflitivos de sua reflexão ultrapassam, no meu entender, a dialética. Ele nos empurra, permitam-me a ousadia, no rumo das contradições multiléticas.

 

Muito mais dirão de você nas homenagens da partida e muito mais descobrirão nas linhas e entrelinhas de sua obra as gerações futuras. Você aqui está e aqui ficará.

Razões e desrazões do iluminismo https://jornal.usp.br/artigos/razoes-desrazoes-do-iluminismo-carta-homenagem-postuma-a-sergio-paulo-rouanet/

Rouanet um iluminista dos trópicos https://jornal.usp.br/cultura/rouanet-um-iluminista-dos-tropicos/