Hans Herzog entrevista Ticio Escobar
Foto: Ticio Escobar
Por Hanz Herzog https://hansherzog.art/arte-latinamericano/entrevista-con-ticio-escobar/?ct=t(RSS_EMAIL_CAMPAIGN)
Assunção, 9 de novembro de 2018
Como você mudou a arte e a cultura deste continente nos últimos anos, Ticio?
Acho que alguns processos que já estavam sendo anunciados no final do século passado se aprofundaram. Em geral, o fenômeno que surgiu desde as últimas décadas do século XX foi a diminuição do poder da própria arte. Esse fenômeno corresponde mais ou menos à perda de aura anunciada por Benjamin; não sua morte, mas o fim da "grande obra" e o declínio do vigor formal e expressivo da arte. Por outro lado, e consequentemente, a arte perdeu muito do seu glamour; desvaneceu-se, tornou-se menos pretensioso; hoje está mais preocupado com seus vínculos com pequenas causas, com situações imediatas e com as dimensões micropolíticas da criação: desejo, inconsciente, conhecimento do corpo, intuição. A arte perdeu suas letras maiúsculas, seus nomes mais deslumbrantes, mas o mercado global consegue continuar promovendo ou inventando artistas espetaculares. Pois bem, a arte perdeu seu encanto (“o sex appeal do inorgânico” nas palavras de Benjamin), mas ganhou com a incorporação de novas experiências, situadas no limite ou além do artístico tradicional.
Sem dúvida, as fronteiras entre o que é e o que não é arte foram borradas. Por um lado, dá-se maior atenção às experiências relacionadas às culturas populares, suburbanas e indígenas e, em geral, às subjetividades alternativas. E, por outro lado, enfatiza-se a consideração de manifestações surgidas fora da institucionalidade da arte mainstream. É o caso das expressões urbanas, suburbanas, de origem popular ou ilustrada, que não estão estritamente ligadas a uma intenção artística, mas que recorrem a elementos estéticos e poéticos que interessam à arte contemporânea. Muitas dessas manifestações entraram no sistema artístico hegemônico, ávidas por incorporar formas alternativas que satisfaçam a sede de exotismo, bem como imagens e conceitos que enriquecem o decadente acervo ocidental.
A institucionalidade da arte cresceu em sua proliferação de museus, galerias, feiras, publicações e grandes exposições. Mas viu-se obrigada a assumir o desafio de como se integrar num mundo que lhe escapa e que rejeita o formato da arte moderna e da arte contemporânea do final do século passado e início deste.
Pode-se afirmar que o momento do objeto clássico já passou? Temos um mercado turbocapitalista e uma competição acirrada em que apenas os maiores e mais ferozes sobrevivem, fruto de uma sociedade que vive dos efeitos; de merda brilhante. Isso tem pouco a ver com arte. É apenas o mercado. Não é uma produção com raízes intelectuais. É como o último pontapé de um sistema que pertence ao passado.
Há obras importantes produzidas fora da institucionalidade da arte. Há uma divulgação estética e criativa que vai além desses enquadramentos. Claro que a necessidade de negociar com o mercado está sempre presente, pois o artista precisa vender para sobreviver. Há alguns anos participei de uma discussão realizada no decorrer da Feira do Arco, Madrid. Naquela ocasião, no meio da feira, insistiu-se que o artista deveria resistir até encontrar pelo menos um meio-termo e nunca capitular; isto é, não se curvar docilmente às exigências do mercado ou fazer concessões excessivas.
Diante da crescente massificação de públicos, as grandes curadorias estelares tendem a atuar de olho no que interessa às instituições que as apoiam: atrair o maior número possível de públicos. Mas uma grande exposição não pode perder a exigência de um certo nível de rigor; deve ser baseado em pesquisas sérias, imagens poderosas e conceitos consistentes. Tudo oscila entre essa demanda e a necessidade do show business: sair da estética idealista das musas sem cair na pura demanda das massas.
Vemos também como as bienais muitas vezes recorrem a um jogo duplo: oferecem obras experimentais e políticas, densas e subtraídas da sociedade do espetáculo, em paralelo com outras que constituem “pão e circo” para grandes públicos. É uma negociação permanente. Como já foi dito, o mainstream também tenta incorporar uma dose razoável de produção extra-institucional. Por isso, manifestações macro e micropolíticas alimentam constantemente os repertórios hegemônicos: demandas dos indignados, protestos por melhores condições ambientais, ações de minorias dissidentes sexuais etc.
Tudo isso está intimamente ligado ao conteúdo, às ideias. A forma ou a beleza pura não se sustentam mais. É sempre necessário o suporte de um conceito, uma história extra-artística que discuta o trabalho com princípios da teoria estética e até da antropologia, filosofia, psicanálise e história. Embora o mundo da arte, explicitamente ou não, permaneça amplamente sujeito ao modelo do gênio e à exigência da obra única, não pode ignorar a crescente presença de obras correspondentes à arte relacional, intervenções públicas, instalações inconstantes e o sistema do audiovisual e artes populares. Há também o caso de artistas consagrados que fazem intervenções em comunidades e espaços públicos em busca de mensagens políticas diretas; é o caso de Doris Salcedo, por exemplo.
Tais fenômenos ocorrem a partir de forças descoloniais e progressistas que avançam contra o pano de fundo hegemônico de uma oposição confusa entre o neoliberalismo em retrocesso e a rápida entrada de um neoconservadorismo de direita ‒heteropatriarcal, intolerante e racista‒, contrário à diversidade de manifestações, identidades e crenças . Essa complexa situação moveu peças e reconfigurou novos cenários contra-hegemônicos difíceis de serem assumidos pelo sistema oficial. Por fim, é de notar a notável diminuição dos apoios do Estado e dos patrocínios privados, fator que dificulta a sustentação económica das práticas culturais e as empurra para a zona de risco da “economia laranja”, regida pela produtividade em termos empresariais; as chamadas “indústrias criativas” nem sequer falam de cultura e arte, concebem a criação como uma inventividade efetivamente aplicável à estética publicitária e comunicacional das corporações.
Foto: Ticio Escobar
Do livro The Survival of Fireflies, escrito por Didi-Huberman, pego e adapto a ideia de flashes dispersos de culturas menores, capazes de iluminar brevemente, vagamente, momentos e cantos ignorados pelo mainstream. A luz dos vaga-lumes atua em oposição à dos grandes refletores da cultura global do entretenimento e aos poderosos raios da arte consagrada. Essa luz baixa e intermitente nos permite ver zonas paralelas, quase ocultas, que hoje começam a ser consideradas pelo sistema da arte, segundo interesses ambíguos que tanto atuam como uma apropriação extrativista de diferentes formas, quanto favorecem seu percurso ampliando seu espaço de produção e circulação.
A arte que tenta nos dar a chave para entender o mundo através da exaltação da beleza e da forma retrocede diante do avanço de obras ou ações engenhosas e interessantes; obras que perderam as letras maiúsculas e a auréola sublime da grande arte. Essa situação faz com que o termo "arte" abarque hoje um espectro muito amplo que, em seus extremos, coincide com o significado que esse termo tinha na Idade Média: arte como ofício e não como prática de gênios. Essa imprecisão do campo artístico exige a presença de teóricos, críticos e curadores, capazes de refletir sobre manifestações que crescem no meio, nas fronteiras ou além do que se convencionou chamar sob o conceito de arte. Um conceito, tal como se sustenta, está em questão: o logos instrumental do Ocidente, comprometido hoje com a especulação financeira, tende a compreender, explicar e interpretar tudo e essa tendência achata as formas de arte, as priva de opacidades e dobras. Diante desse empurrão, a arte de inclinação crítica busca preservar seus enigmas e questões, mas a questão é complicada porque a dissidência também vende. Por isso, as diferentes formas de arte estão sempre expostas ao risco de capitulação e empobrecimento de seus conteúdos e conceitos.
O campo das artes visuais, até a década de 1980, estava protegido em sua torre de marfim. Era um espaço de elite. Para poucos. Isso nunca foi o caso com filme ou música. Você sabe, na Alemanha nós fazemos a diferença entre dois níveis de música: 'E' (para Ernst), a música séria, e 'U' (para Unterhaltung), que significa entretenimento simples. Mas essa divisão nunca existiu na arte. E então acontece que a arte se abre para o entretenimento nos anos oitenta. Talvez isso precisasse acontecer.
Voltando à América Latina, uma mudança positiva, na minha opinião, é a aproximação que tem ocorrido entre os países. Antes se conheciam pouco, em termos de produção artística.
Acredito que essa abordagem se deva à criação de um sistema de rede mais consistente. Pensemos nas bienais regionais, por exemplo. São espaços de encontro que permitem áreas abertas a fluxos e multidisciplinares, junto às grandes instituições de arte. Bienais como a de São Paulo ficaram presas em uma estrutura muito rígida.
Mantém-se ainda a ideia de que bienais como a de Veneza ou a documenta de Kassel são essenciais para compreender o desenvolvimento das artes; mas essas grandes exposições deixaram de funcionar como balizas necessárias para orientar a produção de todo o mundo e marcar tendências e rumos. As bienais hoje são parecidas com as feiras e as feiras querem ser bienais. Programas justos geralmente funcionam melhor porque têm orçamentos maiores e podem organizar programas paralelos, reuniões de críticos, simpósios, cursos etc. Mas no grande sistema da arte, tudo tem suas voltas e reviravoltas e a crítica muitas vezes acaba enredada na lógica instrumental das próprias feiras.
Quanto aos críticos, Ticio, o que aconteceu com você nas últimas décadas? O que vejo é
Foto: Ticio Escobar
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