Nova Museologia cria memoriais antirracistas no Brasil e no mundo
Retrato de Pelé feito pelo fotógrafo Marcio Scavone integra exposição no Museu Afro Brasil Imagem: Reprodução/Museu Afro Brasil
O ano de 2020 será lembrado, entre outras reviravoltas históricas, pela ação espontânea da pessoas -- muitas delas, jovens e brancas -- derrubando a estátua do traficante de escravizados Edward Colston (1636-1721) em Bristol, na Inglaterra, no mês de junho. Parte da onda mundial de protestos antirracistas provocada pela morte de George Floyd, o monumento lançado ao mar gerou muitas polêmicas. Dentre elas, a discussão se o ato seria legítimo ou excessivo, e de, em se agindo diferente, qual seria a proposta.
Para Mário Chagas, diretor do Museu da República no Rio de Janeiro, "a guerra de imagens faz parte da História da Humanidade", e derrubar a estátua seria natural. Já para a historiadora Lilia Schwarcz, professora da USP (Universidade de São Paulo), a destruição deve se dar só como última opção. "Algumas memórias precisam ser preservadas, mesmo que criticamente", diz ao TAB.
Chagas, que é poeta, lembra que nenhum patrimônio se preserva sem uma relação de amor e afeto. Schwarcz, que é escritora, aponta para o sentido de "estar afetado" da palavra afeto. "Se a população já está afetada por alguns monumentos fortes, no coração das cidades, a posição deve ser de, às vezes, deslocá-los. Colocá-los em museus e, quando isto não é possível, antes de chegar na última opção, fazer sim intervenções críticas".
Voltaremos às intervenções críticas. Por ora, é importante ressaltar um consenso entre os especialistas. "Precisamos erguer muitos monumentos do povo preto: para João Cândido, André Rebouças, Luiz Gama, Abdias do Nascimento, para as mulheres, todos; para os povos originários", propõe Chagas. "Precisamos sim de monumentos para negros, mulheres, indígenas e população LGBTQ", completa Schwarcz.
Em julho, de novo em Bristol, o artista Marc Quinn fez uma estátua da manifestante Jen Reid -- e colocou-a na mesma base em que estava a estátua de Colston. Reid, que é negra e moradora de Bristol, faz o gesto do movimento Vidas Negras Importam. A instalação "Uma Onda de Poder" foi inspirada em uma fotografia no Instagram de Reid. Tudo isto são temas comuns da Nova Museologia.
While #Bristol was sleeping it got a new #statue where slave trader #EdwardColston used to live
— Ben Birchall (@BenBirchallUK) July 15, 2020
It's titled 'A Surge of Power (Jen Reid) 2020' by artist Marc Quinn pic.twitter.com/Z6vjo2Aks1
Mas o que é a Nova Museologia?
A Nova Museologia já completou cinquenta anos, mas ainda é novidade em termos históricos. Seu nome surgiu nos anos de 1960, para abrigar um conjunto diverso de experiências museológicas iniciadas no pós-Segunda Guerra.
A longa história dos impérios mercantis, da qual Colston conheceu o apogeu como membro do Parlamento Britânico, chegava ao fim. Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), novos museus surgiram como parte da busca por implantar essa igualdade de direitos.
A ideia de museus pertencentes a indíviduos "donos" do mundo, como o Louvre, do rei-Sol Luís 14, base da Museologia tradicional, começou a ser substituída pela representação de grupos que compunham o mundo. As identidades passaram a "valer" mais que as coleções, as quais são agora objeto da descolonização.
Boa parte das iniciativas da Nova Museologia se dão em favor de um estágio no qual ninguém se sinta inferiorizado. Elas primam por propostas de baixo para cima, e por um interesse compassivo pela participação e pela vida das pessoas. "Nós, da Museologia Social, dizemos que o patrimônio que não serve para a vida, não serve para nada", pontua Chagas. Museologia Social é a denominação mais usada atualmente, no meio acadêmico, para se referir à Nova Museologia.
Reparação histórica no Brasil
Desde o início, experiências brasileiras marcaram a Nova Museologia. Em 1953, o Museu do Índio foi criado por Darcy Ribeiro no Rio de Janeiro, e contribuiria para a inserção dos indígenas como atores no plano político nacional. Chagas avalia que, em termos museológicos, "realizou-se ali a decisão de não apresentar os povos indígenas como fósseis, e sim como povos contemporâneos".
A causa dos negros logo seria defendida também nesses espaços. Em 1955, Abdias do Nascimento, uma das estátuas pedidas por Chagas, realizou um concurso de artes plásticas com tema "Cristo Negro". Venceu o "Cristo na Coluna", obra que evoca um negro no pelourinho, de Djanira da Motta e Silva -- ou apenas Djanira, importante pintora modernista de cenas e costumes brasileiros. Isto foi uma intervenção crítica. Desse concurso, resultou o Museu de Arte Negra, em 1968, no MIS (Museu da Imagem e do Som).
Esta primeira experiência, contudo, teria afetado apenas "entendidos" -- e não a vida da maioria dos afrodescendentes, na avaliação do próprio Abdias, anos depois. Mas foi semente para os museus Afro de Salvador, da década de 1980, e de São Paulo, já neste século.
Projetos de memória
Tratar a memória ao nível dos indivíduos atingidos tornou-se prática comum nos projetos voltados a rememorar os horrores da Segunda Guerra. O Memorial da Paz de Hiroshima, o Museu Judaíco de Berlim e antigos campos de concentração nazistas, como o de Auschwitz, na Polônia, são exemplos deste tipo. Neles, as novas gerações podem saber, na medida em que foi possível coletar, os nomes das vítimas, onde viviam suas famílias e para onde foram os sobreviventes, quando existiram.
Por outro lado, Brasil e Estados Unidos, dois grandes destinos coloniais -- bem como as antigas metrópoles européias -- entraram nos anos 2000 sem ter um grande museu dedicado aos horrores da escravidão de africanos.
Agora, os norte-americanos têm o Monumento Nacional do Cemitério de Africanos, em Nova Iorque, aberto em 2006, e o Museu do Legado: da Escravização ao Encarceramento em Massa, em Montgomery, no Alabama, fundado pela ONG Iniciativa por Igualdade de Justiça (EIJ, na sigla em inglês), em 2018.
O Monumento em Nova Iorque começou a existir quando as escavações para a construção de um prédio público, nos anos 1990, depararam-se com os restos arqueológicos do antigo cemitério do período colonial. O Museu do Legado foi erguido onde funcionou um armazém de escravizados, e se propõe a apresentar um estoque de narrativas com a memória dos que sofreram com o escravidão, o terror racial, a segregação no Sul e o maior sistema prisional do mundo.
Enquanto isso, o MASP (Museu de Arte de São Paulo) foi transformado em um "Museu da Escravidão", em 2018, com a exposição "Histórias Afro-Atlânticas". Uma das curadoras, Schwarcz conta que, nela, foram realizadas diversas intervenções críticas. Uma, como exemplo, contrapôs a aquarela "Um Jantar Brasileiro", de Debret, com a tela "Hora do Almoço", de Maria Auxiliadora.
Trabalho do coletivo Frente 3 de fevereiro no Instituto Tomie Ohtake, que hospeda com o MASP a exposição #históriasafroatlânticas até 21/10/2018
— MASP (@maspmuseu) July 13, 2018
Imagem: Frente 3 de fevereiro, Onde estão os Negros", 2018, na abertura da exposição Histórias afro-atlânticas no Tomie Ohtake pic.twitter.com/6o3Ni2CqzY
Legado da Copa
No Brasil, um inesperado legado dos Jogos Olímpicos de 2016 e da Copa do Mundo de 2014 deixou o país próximo de de ter um museu parecido. As obras de revitalização da zona portuária para preparar o Rio de Janeiro para as Olimpíadas trouxeram à tona as ruínas arqueológicas do Cais do Valongo.
Segundo Schwarcz, o Valongo "foi um dos grandes portos e locais de tráfico ao ar livre. Viajantes descreveram o horror desse local, em que havia um cemitério". A "aparição" do Caís do Valongo despertou a necessidade de seu aproveitamento museológico, e a Unesco o reconheceu como "sítio de memória sensível" em 2017. Atualmente, existem duas alternativas em aberto para o local: tornar-se um Centro de Informação dos registros arqueológicos e históricos ou um grande Museu da Escravidão.
"A criação de um museu é urgente, pois o Brasil precisa enfrentar o racismo e incluir na historiografia oficial narrativas não contadas, buscando promover uma reflexão acerca do descaso secular com essas memórias excluídas", afirma Nelcimar Nogueira, diretora do Museu do Samba, na Mangueira. Ela foi secretária de Cultura do Rio de Janeiro entre 2017 e 2019, e propõs a criação do MEL (Museu da Escravidão e Liberdade), que não avançou. A sigla MEL gerou reclamações na comunidade afrodescendente, e o nome mudou para MUHCAB (Museu da História e da Cultura Afro-brasileira), por consulta pública em 2018.
Outra polêmica envolve o endereço do museu. Pelo projeto de Nelcimar, seria o Galpão Pedro II, ao lado do sítio arqueológico do Valongo, prédio construído por André Rebouças. Atualmente, o Galpão está cedido à ONG Ação da Cidadania -- uma das maiores referências no combate à fome e à miséria no Brasil.
O atual diretor do MUHCAB, Rodrigo Nascimento, o define como um museu de território. "Trabalhamos com o 'Circuito da Herança Africana'", explica. Desta forma, o MUHCAB, com sede administrativa no Centro José Bonifácio, mesmo não estando no Galpão Pedro II, pode abarcar o Caís do Valongo, "assim como a Pedra do Sal e toda a Pequena África", conta Nascimento.
As antropólogas Simone Pondé e Luz Stella Rodríguez acompanham todos estes acontecimentos de perto. Elas lamentam os problemas envolvendo o projeto do museu e se preocupam com o cenário político conservador nas esferas federal e municipal do Rio de Janeiro. "Hoje, neste contexto de pandemia e quarentena, o Valongo está abandonado", denuncia Pondé. "O museu precisa ser o ponto de chegada de um plano maior", diz Rodríguez.