Na crise, é preciso ficar do lado dos artistas, diz curador da Bienal
Quando a Bienal de São Paulo foi fundada, em 1951, como a segunda bienal internacional depois de Veneza (1895), sua missão era clara: colocar a arte brasileira "em vivo contato" com a produção internacional.
Isso era coerente com a estrutura modernizante e progressista da elite cultural brasileira da época, cuja ambição era combinada com notável "savoir faire" e uma força financeira que colocaram o Brasil no mapa da arte internacional quase imediatamente, enquanto injetava energia nova na cena de arte local.
As primeiras bienais foram organizadas com uma lógica enciclopédica. Como em Veneza, os países eram convidados a enviar seus "melhores" artistas.
Mas, diferentemente de Veneza, a Bienal em si organizaria grandes exposições dos maiores artistas da época, incluindo Picasso, Calder, Klee e outros, além de dar visibilidade a uma nova geração de artistas brasileiros, como Abraham Palatnik, Geraldo de Barros ou Lygia Pape.
Além dessas exposições, havia também mostras de arquitetura, design gráfico, joalheria, a chamada arte primitiva e até arte das missões jesuíticas do Paraguai.
Alinhada com transformações mais amplas no mundo da arte, a Bienal começou a questionar esse modelo nos anos 1980, momento em que a figura do curador emergia como novo agente organizador em eventos desse tipo.
Esperava-se então que as bienais propusessem algo intencional e que organizassem seus conteúdos segundo essa ideia. A partir desse momento, a bienal-tese vira o modelo operacional inquestionado das bienais, tanto em São Paulo quanto no resto do mundo.
Durante a maior parte de sua história, a Bienal de São Paulo foi uma das poucas de um grupo minúsculo de bienais. Hoje, segundo um levantamento recente, existem cerca de 320 bienais ou eventos semelhantes em todo o mundo.
A bienal de arte se tornou, em certa medida, o símbolo mais visível do sistema da arte contemporânea: tentando chegar a um equilíbrio conturbado entre a frivolidade social dos eventos de abertura para a elite do mundo da arte e a estrutura teórica cada vez mais densa de seus postulados curatoriais.
Livres dos constantes compromissos programáticos e burocráticos do museu ou do centro de arte contemporâneos, as bienais operam com um privilégio único de potencialmente se reinventar a cada dois anos.
Essa aparente liberdade cria dois grandes desafios: para a instituição, existe a dificuldade de manter apoios consistentes e uma relação com os públicos locais em nome dos quais esses eventos são organizados; intelectualmente, o desafio é como inovar dentro de um modelo que, apesar de sua liberdade, parece frequentemente gerar muitos eventos do mesmo tipo, nos quais conceitos similares são repetidos como parâmetros para muitos dos mesmos artistas que compõem o circuito particular das bienais.
Quando, nos anos 1980, o curador começou a emergir como centro do sistema da arte contemporânea, houve a ascensão do "curadorismo", a ideia de que a tese curatorial é o motivo e o atributo principal de uma exposição.
Naquela época, a ideia de que ser curador (especialmente um curador independente) era até uma profissão viável começou a ganhar força, e diversos programas de graduação em estudos curatoriais foram fundados para servir a esse campo profissional e intelectual florescente.
Tendo como modelo uma ênfase quase exclusiva em exposições coletivas temáticas de arte contemporânea, esses programas cimentaram a ideia de que uma exposição era sobretudo uma oportunidade de propor uma tese, na qual as obras deveriam ser alinhadas para "ilustrar" ou "provar" uma proposição curatorial.
Nos anos seguintes, a Bienal se tornaria o palco privilegiado em que essas teses podiam ser demonstradas e comparadas. Ou seja, o curador se tornou uma figura de poder, detentora do discurso oficial da arte, e a equipe participante de seu projeto, dos artistas aos mediadores das visitas do público, seus porta-vozes.
Com essa história como pano de fundo e a atual crise política e econômica no Brasil chegando ao seu ápice, recebi o convite para ser curador da 33ª Bienal de São Paulo. Minha maior preocupação era encontrar uma forma de responder a esse cenário atual sem incorrer na repetição das duas bem-sucedidas edições anteriores, cuja abordagem político-social era bastante direta.
A instrumentalização do pensamento na atualidade, seja pela imposição técnica em todos os campos produtivos, seja pela influência avassaladora da tecnologia (principalmente na figura das mídias sociais, em sua cooptação de nossa atenção), era outra questão urgente que merecia ser contemplada.
Ao mesmo tempo, honrar a tradição experimental da Bienal paulistana pressupunha desafiar seu modelo curatorial, levando em conta a trajetória desse evento de se repensar ao longo dos anos.
Como diria Leonilson, "são tantas as verdades". Tantas que, às vezes, fica difícil saber como se posicionar diante dessa desintegração da vida política que vivemos.
A cena das artes visuais em geral e a política do Brasil pareciam apontar para um mesmo esgotamento: o do discurso que se pretende a solução absoluta de questões muito mais complexas, que não podem ser respondidas senão pela experiência da coletividade. Qual seria meu ponto de partida para conceber essa curadoria como um contraponto a isso?
Há uma frase atribuída a Mário Pedrosa que diz: "Em tempo de crise, fique do lado dos artistas". Esse me pareceu o norte a ser seguido.
Os artistas, que sentem o pulso da vida de maneira distinta, poderiam oferecer esse olhar múltiplo (em oposição à figura messiânica do curador com suas verdades fechadas), dando ao público outras condições para ativar suas sensibilidades.
Em vez de se preparar para "entender" as obras expostas sob a égide de uma voz única, o espectador pode relaxar e fruir a arte a partir de suas próprias referências.
Foi dessa forma que surgiu o modelo de curadoria híbrida dessa Bienal, em que selecionei 12 artistas para apresentarem exposições individuais ao lado de sete exposições coletivas idealizadas por artistas de gêneros, países e trajetórias distintos.
A diversidade da curadoria, dos artistas, da produção e do educativo quer permitir ao público a oportunidade de se expressar diante da arte, de libertar seu aparato sensível e, com isso, sair da apatia condicionada pelos algoritmos tecnológicos, que só fazem reiterar a imagem única de nosso narcisismo.
Horizontalizar e diversificar o modelo de curadoria me pareceu a única forma coerente de fazer uma Bienal de São Paulo articulada com seu cenário sociopolítico. Com isso, não me outorgo o direito de decretar o fim da curadoria centralizada —o que também seria uma posição exclusivista e arbitrária. Mas ganha vida nesta Bienal a proposição de uma experiência que só se pode produzir pela participação de todos.
Se ficar do lado do artista é abraçar a diferença, talvez esse modelo possa contribuir para um novo pensamento, mais plural, também na vida.
Gabriel Pérez-Barreiro é curador geral da 33ª da Bienal de São Paulo.