Masp não pode ficar refém de sua história
ARACY AMARAL - ESPECIAL PARA O ESTADO
23 Dezembro 2015 | 04h 00 - Atualizado:23 Dezembro 2015 | 11h 38
Arquitetura do museu e retorno da expografia de Lina Bo Bardi são discutidos pela historiadora e crítica de arte Aracy Amaral
Os tempos podem ter mudado, aliás mudaram por certo – a Paulista não é mais a avenida dos casarões, dos quais só restam dois, não há por lá mais corsos de carnaval da elite, por ali há décadas não passam mais os bondes “Avenida 3”, porém a avenida permanece crucial dividindo em sua elevação o centrão da região da baixada dos jardins e bairros da zona Sul e Oeste. Nunca gostei do Masp como arquitetura. O edifício do Trianon fora uma construção de época. Tudo bem, nem parece ter sido discutível, pois se ligava aos primeiros tempos da avenida. Outros tempos. Do Teatro Municipal, do edifício do Automóvel Club no Anhangabaú, entre outros. O Masp de hoje também está restrito a uma concepção, personalista, da arquiteta Lina Bo Bardi. Que não previu o futuro – mas é bom lembrar, então, às novas gerações, a excelência de um Conjunto Nacional, projeto de David Libeskind, da década de 50, a poucas quadras do Masp, excepcional exemplar de boa arquitetura inserida, festejada e não envelhecida. Mas, seria possível a um arquiteto prever o futuro? Ou ele está fadado a projetar edifícios que logo ficam datados? O Guggenheim, de Frank Lloyd Wright, é também datado, de escala específica, mas uma bela peça arquitetônica.
O Masp está fadado a ser apenas um cartão postal de São Paulo para constar de cartazes e anúncios? Talvez. Nunca gostei desse edifício. Agressivo, em suas linhas paralelas suspensas, pleno de luz para obras valiosas que talvez não suportem o excesso de luminosidade para sua preservação. E o vão no piso térreo, por razões de acordo com a Prefeitura ou para fazer valer a vista do Centro da cidade como um belvedere... Mas, depois de quatro décadas, será mesmo um belvedere?
Lina Bo declarou certa vez: “Minha preocupação básica foi a de fazer uma arquitetura feia (...). Quis fazer um projeto ruim e com espaços livres que pudessem ser criados pela coletividade(...). Quis fazer um projeto ruim. Isto é, feio formal e arquitetonicamente, mas que fosse um espaço aproveitável, que fosse uma coisa aproveitada pelos homens”. A articulista termina desse texto publicado pelo Estado em 2013 abordando os moradores de rua que utilizam o vão no Masp acrescentando: “Homens simples, pois, pensaram: porque não aproveitar para dormir no vão?”
A ideia democrática de compartilhar com a comunidade pressupõe uma certa educação dessa mesma coletividade, o que infelizmente não ocorreu ao nível desejável nos últimos 40 anos para nossa população sempre desassistida (veja-se zika vírus, atendimento no SUS, segurança, educação, socorro em Mariana, enchentes no Sul etc.)
A ausência de acolhimento no Masp sempre me incomodou enquanto museu: em todo o mundo, um museu tem sua recepção à entrada como dando boas vindas aos visitantes que nele entram, a fim de quebrar resistências, informar, acolher, enfim. O Masp não. E isso num país onde não há tradição de visitação a museus.
No Masp, penetra-se hoje por uma fila depois de pagar a entrada – cara para um país como o nosso –, passa-se por uma leve revista, e entra-se por um elevador que pressupõe que todos já conhecem o interior para dizer aonde se dirigir. Ou se desce, ou se sobe, por uma escada de agressivos 45 graus, concreto e pedra, onde sempre passa a impressão de que alguém pode dali despencar.
E por que agora o retorno à discutidíssima museografia de Lina Bo para a exibição do acervo do Masp? Para ainda comemorar o centenário da arquiteta autora da adaptação do edifício do Sesc Pompeia?
Poderia mesmo ser, como escreveu com acerto o arquiteto Francesco Perrotta-Bosch (“O risco de sacralizar o museu dessacralizado”) que seja uma exposição comemorativa, que depois se retira e volta o museu às suas salas usualmente projetadas. Mas é incompreensível que o Masp deseje ficar com esse espaço como cogitado por Lina Bo/Pietro Bardi nos anos 1960 e assim permanecer para sempre.
Afinal, cada época pede um determinado tipo de aproximação frente às obras realizadas em seu momento. Seja as do Renascimento, como as do Barroco, ou do século 19 e de inícios do século 20. Porque, na verdade, da segunda metade do século 20, pouco possui o Masp, nem mesmo do modernismo brasileiro ou suas correntes construtivas. Pois nem se incluíam nas preferências de gosto de seu diretor, Pietro Maria Bardi, as correntes da segunda metade do século passado. Assim, a própria coleção do museu é datada. E indiscutivelmente de respeitável e esplêndida qualidade. O que demandaria que cada obra possa ser vista de acordo com o tempo de sua produção.
Nem seria cabível, caso o museu possuísse instalações de artistas de hoje, que elas fossem vistas ou apreciadas frente ou ao lado de um Ticiano ou Van Gogh. Há uma forma de apreciação para cada tipo de tendência artística, que demanda um espaço – e um silêncio – específicos para sua visualização. Ou apreciação sonora (pois há na arte contemporânea também peças sonoras), sejam instalações ou vídeos assim como displays específicos os mais diversos para essas produções.
É muito bonito para um revival de um determinado momento deste museu, que o Masp utilize os cavaletes de Lina Bo Bardi como homenagem a esta forma expositiva. Mas que seja como um evento temporário, e que o museu passe a se voltar a um público heterogêneo como o nosso, de desigualdades culturais enormes, pensando em como acolhê-lo melhor e de maneira mais cálida.
Buscando atrai-lo para eventos que deveriam chamá-lo a frequentar o museu. E não somente fazendo estremecer suas bases, com a feirinha dominical, ou em manifestações semanais senão diárias, em local que deveria ser de devaneio, admiração e reflexão para todos.
ARACY AMARAL É HISTORIADORA, CRÍTICA DE ARTE E CURADORA