Mecenas?
FOLHA DE S. PAULO
26 de julho de 2006
FOLHA Opinião
Fonte: LIBRANDI, M. L. Mecenas? Folha de S. Paulo. Cad. FolhaOpinião. 26/07/2006. Disponével em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2607200609.htm . Acesso em 26/07/2006.
Mecenas?
LULU LIBRANDI
Custa a crer que o prisioneiro Edemar Cid Ferreira seja reconduzido à posição de conselheiro da Bienal de São Paulo
CILDO MEIRELES está certo. Destaque na Documenta de Kassel, em 2002, e na Bienal de Veneza, em 2003, o artista plástico brasileiro não poderia participar de uma Bienal de São Paulo cujo conselho tem um presidiário.
Na verdade, custa a crer que o prisioneiro Edemar Cid Ferreira seja reconduzido à posição de conselheiro da Bienal de São Paulo. Seus defensores lhe dão o benefício da dúvida e a presunção de inocência, pois, advogam, ele ainda não foi julgado nem condenado. Dizem ainda que Cid Ferreira fez bem à arte brasileira, pois comprou obras importantes, nacionais e estrangeiras, e dinamizou o mercado das artes. Mas esquecem que as principais obras de arte do seu acervo estão desaparecidas. Até a Interpol está atrás dos Dubuffet, Fernand Léger, Rauschenberg, Henry Moore, Torres Garcia...
Edemar fez muito pela arte e cultura no Brasil? Como mecenas? Que mecenas é esse que, em vez de doar obras de arte aos museus, não só as esconde como as leva para fora do país?
Os amigos que o defendem e vivem grudados no Conselho da Bienal desde 1994 fazem lembrar o que se lia há alguns anos sobre Cid Ferreira. Veja a seguinte pérola escrita pelo jornalista recentemente falecido Olney Krüse, na revista "Go Where? São Paulo": "São muitas e diversificadas as ocupações culturais desse homem velocíssimo, que não tem nenhuma doença, é um indomável e irrequieto vulcão, visivelmente competente, que dorme apenas seis horas por noite ("de qualquer jeito e como um anjo inocente') e trabalha durante 18 horas diárias". Pobre Olney.
Não sou de tripudiar sobre a queda de ninguém e, por isso, tenho acompanhado a derrocada do ex-mecenas Edemar Cid Ferreira em silêncio. Sei que ele ocupa a cela 21 do Pavilhão 1 da Penitenciária de Tremembé 2, um xilindró de bacanas que se tornaram fora-da-lei. Acusado de ter surrupiado pelo menos 1 bilhão de reais -dinheiro de crédulas prefeituras, fundos de pensão mal geridos e de empresários azarados-, o ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira caiu em desgraça depois de ter galgado os degraus de fama, glória, poder e fortuna, no melhor estilho hollywoodiano.
Fui uma das primeiras a alertar a inconsistência de sua trajetória, ao lado da jornalista Angélica de Morais, com quem me solidarizei desde o início. Neste mesmo espaço democrático de debates da Folha, alertava que "não dá mais para tolerar que determinadas figurinhas carimbadas fiquem posando de mecenas enquanto se movem com desenvoltura no interior de uma legislação de incentivos voltada apenas para o mercado, em detrimento do interesse público."
Mal sabia eu no que isso ia dar, mas já indagava "até quando vamos assistir a banqueiros vangloriarem-se como "pais da arte" enquanto promovem verdadeira privatização dos bens e produções culturais..." ("Megamostra e pires na mão", "Tendências/Debates", 30/5/2000).
Isso me valeu um processo nas costas, assim como à Angélica de Morais. Fui acordada por um oficial da Justiça às 6h, me interpelando sem modos, o que gerou uma nota de protesto na coluna Mônica Bergamo. Esse era bem o estilo de Ferreira: aparecer como banqueiro-mecenas ao estilo de Chateaubriand, ao mesmo tempo que agia com truculência legal aos que ousavam questionar seu projeto.
Sua ação foi, é e será deletéria para a arte nacional. Ora, por qual motivo ele está preso senão as evidências de que tem escondido e talvez mandado para fora do Brasil valiosas obras de arte, muitas delas compradas com o dinheiro de inocentes investidores?
Não é isso crime de lesa-pátria?
Como se sabe, Ferreira é acusado pelo Ministério Público de formação de quadrilha, gestão fraudulenta e lavagem de dinheiro. Desconfia-se de que uma das formas de "lavar" dinheiro sujo obtido pelas já famosas "operações casadas" tenha sido a compra de excepcional acervo artístico. Pois que ele fique para o povo brasileiro, que acompanha estarrecido mais esse espetáculo de bandidagem.
É preciso não tolerar certas criaturas da sociedade paulistana que se dizem (falsos) mecenas e que usam a arte para acobertar crimes e falcatruas e ainda por cima posam de bons-moços nas colunas sociais. Sim, Cildo Meireles está certo. É preciso não esquecer de figuras paulistanas ilustres no mundo das artes, como Mario de Andrade e do grande ator Raul Cortez, que ora nos deixa.
MARIA LUIZA LIBRANDI, a Lulu Librandi, 63, produtora de teatro, é gerente de Assuntos Institucionais do Memorial da América Latina. Foi secretária internacional do Ministério da Cultura na gestão de Celso Furtado -tendo realizado a mostra "Modernidade Arte Brasileira do Século 20", no Museu de Arte Moderna de Paris (1986)-, e foi diretora da Funarte (Fundação Nacional de Arte) e do Centro Cultural São Paulo.
Fonte: LIBRANDI, L. Mecenas? Folha de S. Paulo. Cad. FolhaOpinião. 26/07/2006. Disponével em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2607200609.htm . Acesso em 26/07/2006.