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A morte de um museu

Roberto Da Matta para O Estado de São Paulo, 05/09/2018.

Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-morte-de-um-museu,70002488041

A morte de um museu

Instituição foi vítima do descaso, irmão da nossa aliança com a ignorância e o oportunismo

Como um museu pode morrer? Afinal museus têm muito de cemitérios: eles guardam relíquias, e espécimes embalsamados de fauna, flora e artefatos de sociedades tribais desaparecidas e obras de arte; além de livros – muitos livros que, fechados, jazem ao lado dos diários daqueles que passam a vida dentro deles para aprender o que existe do lado de fora. Ficam fora do mundo para vê-lo com suas doenças, traições, erros e sofrimento. Nesse sentido, um museu é um palácio de tesouros e de objetos sagrados. De artefatos deslocados no tempo e no espaço ininteligíveis aos olhos comuns.

Tal perspectiva me ajuda a elaborar a morte do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista no qual trabalhei como antropólogo social por cerca de três décadas.

Ao vê-lo ser impiedosamente lambido pelas chamas, pensei nos meus mentores – Luis de Castro Faria, Roberto Cardoso de Oliveira e David Maybury-Lewis – responsáveis pela transformação do Setor de Antropologia num dinâmico Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, que é hoje uma referência mundial.

O que sentiriam esses fundadores ao ver a catástrofe anunciada pelo total descaso de múltiplos governos, partidos, posicionamentos e hipocrisias tão nacionais e tão isentas ao perigo de incêndio? O que diriam eles que, seja como pesquisadores, professores e administradores como, aliás, foi o meu caso, jamais perderam o rumo da honestidade intelectual para privilegiar suas preferências ideológicas e partidárias? Essa malvada dialética do ser isso ou aquilo vai suicidando o Brasil.

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Em todas as minhas pesquisas entre os jê-timbira gaviões e apinajés, encontrei quem me tomasse por um disfarçado espertalhão que se apresentava como etnólogo, mas que, de fato, buscava pedras preciosas, ouro ou urânio naquele mato tomado dos índios e destruído para dar lucro. Para muitos, estudar índios era não apenas uma utilidade dos imbecis, mas uma malandragem inteligente para enricar. Até hoje ouço que pesquisar para compreender e não para tomar partido, é uma mitificação. É triste constatar que não temos neste Brasil, cada vez mais castrado por si mesmo, lugar para o professor, para o estudioso, para o investigador que sabe que não sabe e trabalha na esperança de acrescentar mais um pouco ao saber humano, mesmo seguro de que será inevitavelmente superado e esquecido.

O Museu Nacional não foi uma vítima somente do descaso. O descaso é o resultado da mais absoluta ausência em nosso horizonte cultural do lugar do professor. O descaso é irmão da nossa aliança com a ignorância, o oportunismo e a esperteza. Ele é filho dileto do abandono dos governos e de governantes orgulhosos de nunca terem lido um livro, mas que se concedem o direito de falar de tudo, sobretudo do que não entendem. Ele é fruto de uma cultura aristocrática, autoritária e beletrista que se compraz nos folguedos de poesia e pensa que contar casos é sabedoria. Um museu que morre por falta de apoio oficial é o que se colhe quando se elegem governantes ignorantes e burros, doutores narcisistas que pensam que entendem de tudo, quando não são meros ladrões patológicos dos bens coletivos. Dessa ópera trágica nacional na qual o papel de professor é nulo, nasce a indiferença muda que testemunha o assassinato dos museus. Fizemos estádios e reformamos o Maracanã ali ao lado do Museu Nacional, que nem sequer foi visitado por alguma autoridade. O Brasil é recordista em incêndios de museus ao lado de ser um fenômeno no que tange ao roubo do povo em seu próprio nome!

Um país no qual a luta pelo poder não tem limites acaba destruindo ideais, valores e a mais chã moralidade. Estudar, investigar e compreender para sondar o escuro e o terror que se esconde em cada um dos nossos corações é algo sem valor. Aí está, sem dúvida, o fósforo que toca fogo nos museus.

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Roberto Augusto DaMatta (Niterói, 29 de julho de 1936) é um antropólogo, conferencista, consultor, colunista de jornal e produtor brasileiro de TV. É Professor Titular de Antropologia Social do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Professor Emérito da Universidade de Notre Dame (EUA). Graduado e licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (1959 e 1962) possui curso de especialização em antropologia social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1960) bem como mestrado e doutorado em 1969 e 1971 respectivamente pela Universidade Harvard. Foi chefe do departamento de Antropologia do Museu Nacional e o coordenador do seu programa de pós-graduação em Antropologia Social (de 1972 a 1976).

Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-morte-de-um-museu,70002488041