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Vão do Masp

Blog Vitruvius, nov.2013

Uma viagem no tempo e a dura realidade atual

Antonio Fabiano Jr

 

Deixo claro no começo: é um texto desabafo. Meu desabafo e de mais ninguém. Assino cada palavra dele, cada vírgula que coloco no lugar errado e cada posição que vai sendo construída por essas mesmas palavras e vírgulas minhas.

Eu sou grato à Lina (1). Às vezes as pessoas me perguntam porque eu escolhi ser arquiteto e nunca respondo a mesma resposta porque, na verdade, ela vai sendo construída todo dia, de um jeito estranho, meio caótico, meio sem certezas mesmo. Mas sei que ela, se não foi a responsável, é um alento para eu ver que tenho que continuar.

Quando pequeno fui ao Masp (2) e lembro-me de tê-lo visto como se estivesse vendo o mar pela primeira vez. Era o mesmo impacto, a mesma vontade de chorar e de rir, o mesmo deslumbramento, encanto, surpresa. Não tinha cheiro de sal, não tinha o ar molhado que cola na nossa pele, nem a areia fina que vai massageando a sola do nosso pé. Mas tinha um piso inteiro com quadros voando colados em vidros e tinha aquele vazio gigante embaixo do prédio, imenso, sem fim como o mar em cima da minha cabeça. Era um outro horizonte, o horizonte que vinha do céu, o horizonte cinza do concreto de uma cidade também cinza que se abria para mim.

Acho que nunca mais vou esquecer aquele piso emborrachado, aquele salão sem fim e aquelas obras que dançavam a dança mais legal que já vi. Porque para mim o Masp é mais do que um bom acervo. É um espaço experimental, onde eu encontro gente de todo tipo. Embaixo do mesmo teto. É onde vejo (via, infelizmente) Van Gogh (obrigado Marjolijn por me ensinar a falar certo o nome dele) do lado de Monet, do lado de Anita Malfatti, do lado de Modigliani, do lado de Degas, do lado de Portinari, do lado de Di Cavalcanti. Todos do mesmo lado, todos vistos hoje porque é assim que é.

No Masp a gente vê (via) a arte feita ontem (e tudo que não é hoje é ontem sendo ela de dez, 50, 1.000 anos atrás) toda junta. E toda misturada porque nossa cabeça é assim. A história é assim, a criação é assim. Sempre fico assustado e simplesmente não compreendo quem fala que para apreciar uma obra de arte é preciso uma certa neutralidade em volta para compreendê-la de fato. Assustado porque, louco que sou, fico pesquisando fotos de ateliês de artistas e vejo que todos eles, absolutamente todos, pintavam em ambientes carregados e lotados de interferências. Tinha cachorro do lado, garrafa de café, música tocando, carteiro chegando. A criação não é asséptica e acho que Lina tinha total razão de nos mostrar que a visualização dela também não deveria ser.

Isso mudou há alguns anos. Hoje aquela caixa livre, o meu mar, virou pequenas piscinas de condomínio cheias de cloro. Virou salinhas e os artistas não conversam como deveriam conversar. Não interagem como deveriam interagir e talvez por isso não fazem meus pelos arrepiarem como arrepiam quando sinto o sal e o vento molhado. Coisa que aquele prédio já me fez sentir.

E agora querem fechar seu vão. Querem cercar o espaço que pode tudo, que aguenta tudo, que carrega tudo. Tive um princípio de taquicardia quando li esse texto escrito pelo jornal O Estado de São Paulo (3) propondo o fechamento do vão por grades, com a anuência do curador do museu Teixeira Coelho, e só posso concluir que ambos provavelmente não entendem o que é São Paulo, o que é o Masp e o que é a experiência do mergulho na arte do vazio da cidade.

E aqui não falo de datas, nem de análises pormenorizadas dos quadros mas do mergulho sensível que é viver aquilo que se vê. Que é sentir o que se vê. Que é ver de fato o que se vê. Eu sempre frequentei aquele vazio e sempre sentei no meio de todo mundo que ali se mistura. Já fiz centenas de desenhos do prédio. Bem dali, do vazio. Bem ali desenhei O vazio. Rabisquei aquilo tudo, os drogados, os mendigos, os gringos que visitam seu acervo lá em cima.

Toda vez que posso, paro por minutos naquele teto sem fim como o horizonte do mar e vejo que lá é nossa praia. Lá é onde a gente se encontra, é lá que o espaço público ganha forma. E agora, que já domaram o vazio de dentro, querem domar o vazio de fora, o vazio urbano, o vazio que é nosso. Mas não entendem que o vazio não é domado. Nunca é porque a partir do momento que domam o vazio, o vazio deixa de existir. E vazio só é vazio quando recebe gente. Se essa gente é rica, pobre, se mora na rua, no palácio, se é drogada, letrada pouco importa. Porque o vazio conversa com gente; com caldo de gente, com milhares de gentes; com múltiplas gentes. Assim como a arte, que está lá porque a gente precisa dela. Porque a gente quer ela. Porque a gente não vive sem ela.

Mas só quem entende o que é vazio e o que é gente, sabe do que estamos falando.

 

notas

1 FABIANO, Antonio. “Vontade de morar aqui”… TV Petiscos, São Paulo, 22 maio 2013 <http://juliapetit.com.br/colunas/antonio-fabiano/vontade-de-morar-aqui>.

2 Website do Museu de Arte de São Paulo – Masp <http://masp.art.br/masp2010/>.

3 É preciso preservar o Masp. Editorial. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 20 nov. 2013 <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,e-preciso-preservar-o-masp-,1098579,0.htm>.

4 Sugiro que leiam também a linda resposta ao texto do Estado de São Paulo dada pelo Abílio Guerra: GUERRA, Abilio. Os retrógrados. Sobre o fechamento do vão livre do Masp. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 160.05, Vitruvius, nov. 2013 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.160/4961>.

sobre o autor

Antonio Fabiano Junior, arquiteto, é mestre pela FAU USP e professor da FAU PUC-Campinas.

Link para a matéria original: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.081/4969