Leia íntegra da entrevista com o curador Paulo Herkenhoff
Quando Lygia Clark morreu, em 1988, Paulo Herkenhoff, na época curador do MAM-RJ (Museu de Arte Moderna do Rio), teve 12 horas para conseguir uma Kombi e levar tudo que pôde da casa dela para o museu. Lá ele se debruçou por dois anos sobre o espólio da artista, reuniu suas obras, mandou restaurá-las e pôs em ordem suas memórias.
Essa visão da arte como algo a ser resgatado, em um país em permanente crise institucional nessa área, sempre marcou a trajetória de Herkenhoff. Ele é um dos principais críticos de arte e curadores do Brasil --esteve à frente da mais marcante Bienal de São Paulo recente, a 24ª edição da mostra, dedicada à antropofagia, em 1998, que recebeu rasgados elogios da crítica internacional, e foi curador-adjunto do Departamento de Pintura e Escultura do MoMA, em Nova York.
Um dos curadores da exposição "Brasil: desFocos (O Olho de Fora)", em cartaz no Paço das Artes, em São Paulo, Herkenhoff recebeu a Folha para uma conversa de duas horas.
Ele ataca a direção do Masp, "impermeável", e diminui o problema financeiro do museu, que poderia ser resolvido 'num jantar na Fiesp'. O curador ainda classifica a atual direção do Departamento de Museus e Centro Culturais do Ministério da Cultura como 'stalinista' e acusa o órgão de censura em diversas ocasiões. Também critica a legislação fiscal brasileira e o Ministério Público em relação ao patrimônio cultural.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Folha - Você acha que 2007 foi um ano negro para as artes no Brasil, com o furto recente das telas do Masp e o anúncio da Bienal vazia? Existe uma crise institucional aí?
Paulo Herkenhoff - Eu acho que tem duas questões. A gente não pode misturar Masp com Bienal. Eu acho que hoje o Masp tem uma situação absolutamente esquizofrênica. Entre outras coisas --e não estou falando da coleção, que isso seria chover no molhado--, é o mais importante museu privado do país. Isso quer dizer que o Masp surgiu como uma demonstração de possibilidade da burguesia brasileira. Agora, será que essa possibilidade dependia do grande burguês Assis Chateaubriand? Não existe mais essa burguesia? Essa burguesia só é capaz de destruir?
Nos anos 50 alguns construíam; recentemente alguns destroem. É o caso do incêndio do MAM, no Rio, em 78, e o caso da Bienal. Temos uma sociedade civil totalmente contrária a essa administração, entendendo que não pode continuar assim. Houve equívocos, que não são aceitáveis, e, ao mesmo tempo, vemos uma direção absolutamente impermeável. É isso, não é? Me dá uma sensação de um Getúlio Vargas em sua torre.
A minha pergunta é a seguinte: onde está o nó? O nó para mim não é dinheiro. Se o Masp deve R$ 5 milhões, é pouquíssimo. Se o Masp deve R$ 14 milhões, para uma cidade como São Paulo, é pouquíssimo. Se o Masp devesse R$ 30 milhões, numa cidade como São Paulo, seria pouquíssimo. Quer dizer, num jantar a Fiesp resolveria o Masp. Existem seguramente em São Paulo 200 empresários, 300 empresas, que podem dar R$ 1 milhão pela Lei Rouanet ou por uma lei especial que se faça para resolver essa situação. É muito simples.
Folha - O furto das telas então foi o ápice dessa crise?
Herkenhoff - Não precisaria o roubo de São Paulo. Quando roubaram no Rio o único Salvador Dalí, um dos quatro Matisses, um dos três Monets e um dos cinco Picassos em museu público no Brasil [as telas foram roubadas do Museu Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, em 2006], não se discutiu direito, o Rio de Janeiro não discutiu. Só se resolve quando roubam? No Rio, a diretora do MAM durante o incêndio virou diretora do Museu Nacional de Belas Artes. Resultado: o museu viveu o tempo todo à beira de um incêndio. E o Ministério Público? Eu estou convocando, como cidadão, o Ministério Público a se preparar tecnicamente para superar a capacidade de articulação da opinião pública de alguns diretores de museus para encobrir sua ineficiência.
Folha - A solução para o Masp então estaria fora do Masp? Como resolver o problema de segurança?
Herkenhoff - Para mim está fora do Masp. Está fora dessa diretoria. Segurança é uma questão permanentemente inacabada. Não existe segurança pronta. Não depende de dinheiro, depende de um plano. Não existe um projeto de segurança num museu do porte do Masp feito da noite para o dia. Existe um paliativo, mas o problema ainda não está resolvido. O acervo está em risco. A questão para mim é a seguinte: se existiu uma, duas tentativas de roubo ao museu antes, já era para ter pedido reforço policial. Precisou roubar para pedir reforço policial?
Folha - O MinC poderia ajudar no caso do Masp?
Herkenhoff - Ajudar como? Um diretor de museu do Iphan ganha R$ 1.500 por mês. O MinC não está aparelhado tecnicamente para melhorar o Masp. Eu não vejo como ajudar. O que o ministério vai fazer? Dar dinheiro como está dando para seus museus federais? Acho que o museu tem a rara oportunidade de ser um museu da sociedade civil, sabe? Imagine se o museu, de alguma maneira, tivesse um convênio com a Fiesp, de gestão? Ou com o sistema de organizações sociais, que é tão bom.
Folha - E a proposta que o Masp fez ao poder público, oferecendo uma vaga no conselho gestor em troca de dinheiro?
Herkenhoff - O que o Ministério da Cultura vai dizer? Sabe quem dirige os museus no Ministério da Cultura? A origem dessa pessoa [José do Nascimento Junior]? É um stalinista. Tinha uma pessoa que mandava os e-mails da diretora do Museu Imperial para ele em Brasília, à revelia dela, sem que ela soubesse. Isso é censura. É isso que se quer? Quer dizer, o Ministério da Cultura não está aparelhado para opinar. Quem é que fica nesse ministério na área de museus? Acho que o Gil está fazendo um trabalho ótimo nas outras áreas, mas na área de museus, me desculpe. Eu não vejo aí uma posição ética. Cancelaram uma exposição do Xico Stockinger porque não gostavam do curador. Isso para mim tem um nome: censura. Foi um dos motivos por que eu saí. Esse ministério é o quê?
E Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso para os museus federais foram a mesma pessoa. O Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) é um órgão federal, mas o ministério então deu R$ 15 milhões para a Pinacoteca, que é um órgão estadual. Deu zero para o MNBA, que era uma instituição de sua responsabilidade.
Folha - Como você recebeu a notícia de uma "Bienal do vazio"?
Herkenhoff - Evidentemente o vazio é uma questão importante do século 20. O vazio está em Heidegger, na arte da Lygia Clark nos anos 50, da Mira Schendel nos anos 60. O vazio está na incompletude que move o desejo... Mas na situação concreta da Bienal de São Paulo é uma solução de economia de tempo institucional, porque, realmente, me parece extraordinário que a instituição tenha demorado um ano para escolher seu curador, a ponto de inviabilizar sua presença. Isso para mim é um dado real, concreto, que precisava de uma resposta. Evidentemente que as duas opções seriam: ou adiar a próxima Bienal por um ano, para que o nosso curador [Ivo Mesquita] tivesse mais tempo ou fazer algo que não comprometesse a Bienal em sua condição de evento artístico, porque eu acho que é uma solução significativa expor o vazio como o melhor espaço para discutir o futuro da instituição. Imagino que haja algumas frustrações. As pessoas vinham se preparando com mais antecedência para o período da Bienal. O mercado sempre tem boas vendas durante esse período. Mas eu vejo como um processo que vai ser produtivo.
Folha - Isso então não compromete a Bienal?
Herkenhoff - O fato de não ter uma exposição para mim não é um comprometimento, pelo contrário. Para mim é uma demonstração de que a instituição está se pensando e nisso acho que a instituição se torna o termômetro das grandes exposições atuais. Eu não sei se eu gostaria de fazer uma exposição grande hoje, se isso me desafia. E a Bienal precisa, de fato, se pensar. Será que ela deve ser bienal? Não deveria ser trienal? Talvez o que o modelo esteja indicando é que dois anos é muito pouco tempo para organizar um evento do porte da Bienal de São Paulo.
Folha - Mas a Bienal sempre ocorreu dessa forma.
Herkenhoff - Sim, mas foi sempre feito bem? Será que não tinha uma mecânica cega que permitia que se realizasse, que eram as representações nacionais? A Bienal sempre foi aberta porque chegava o dia de abrir. Então, quer as obras tivessem chegado ou não, sempre abriu porque estava na hora de abrir. Mas a minha pergunta é se não havia um mecanismo de suas representações nacionais que enchia o prédio e permitia isso. Eu acho que o modelo constituído pela Lisette [Lagnado, curadora da 27ª Bienal, em 2006], que é um modelo que eu também queria, a extinção das representações nacionais, dá à Bienal a oportunidade de construir um discurso mais firme, mais articulado, num edifício extraordinário. Isso faz a Bienal hoje a mais importante exposição do mundo.
Folha - Mais do que a Bienal de Veneza?
Herkenhoff - Mais do que Veneza, sem dúvida. Veneza sobrevive do seu status e também do charme da cidade. Afinal todo mundo gosta de ir de dois em dois anos a Veneza. É um grande prazer. Mas Veneza não tem o poder de articulação que tem a Bienal de São Paulo. Das três grandes exposições, eu sempre disse que a Bienal de São Paulo era a única grande exposição do mundo que tinha uma cidade por trás. Os principais formadores de opinião estão em São Paulo, apesar de muitos terem cabeças muito modernistas, nem sempre voltadas para a arte contemporânea. Mas São Paulo é o grande modelo para o futuro.
Folha - Comente um pouco suas dificuldades na preparação da 24ª Bienal, sobre a antropofagia, que foi uma edição da mostra elogiada em plano internacional.
Herkenhoff - Naquela Bienal, houve um conjunto de fatores positivos, que foram mais fortes que os negativos de uma Bienal. Temos de destacar as figuras de Júlio Landmann [ex-presidente da Fundação Bienal], Adriano Pedrosa [curador-adjunto da 24ª Bienal], Evelyn Ioschpe [responsável pelo projeto educativo] e Paulo Mendes da Rocha [que planejou o espaço expositivo]. Depois, havia uma conjuntura econômica muito favorável. O dólar estava em paridade com o real e tudo isso foi muito positivo. Nós teríamos, finalmente, uma Bienal pensada a partir do Brasil. A Bienal foi sempre lugar de atualização do Brasil com o mundo. Naquele momento, a idéia era a seguinte: dizer ao mundo que nós temos uma tradição, servir o biscoito fino, como falava Oswald de Andrade. Eu acho que o sucesso dela também aconteceu porque não houve nenhum pacote. Não houve nenhuma exposição que veio fechada. Cada obra foi batalhada, negociada. Eram obras de 110 museus.
Folha - Há um grande interesse por arte latino-americana hoje no mundo e obras importantes têm saído do Brasil. Como você avalia a política de aquisições das instituições nacionais?
Herkenhoff - Sem uma mudança na legislação fiscal relativa a obras de arte, as instituições vão continuar paupérrimas. Hoje os críticos dizem que os museus não compram. O que é isso? Se o artista morre, tem que ir uma parte de suas obras para museus públicos. É assim em todos os países. É necessária uma reforma urgente dessa questão no Brasil. A Lei Rouanet hoje é uma espécie de colesterol da cultura porque criou uma série de mecanismos que estão borrando o perfil de um museu. Você opera com um relógio acelerado, submetido ao diretor de um banco.
Museu é uma instituição que coleta obras de arte, que cataloga, que registra, que conserva, que estuda, que expõe. Se de repente você não tem o acervo, mas tem a exposição, isso não é museu. Se você tem o acervo e não expõe, isso não é museu. Se você tem acervo, exposição, mas não tem pesquisa, que é uma parte fundamental de museu, não é museu. Museu é um lugar de construção de pensamento, história e crítica.
Acho que daqui a alguns anos nós vamos precisar viajar para ver arte brasileira.
Folha - Você acha que essa valorização de brasileiros no exterior não está muito centrada em Hélio Oiticica e Lygia Clark? Volpi, por exemplo, não tem o mesmo reconhecimento.
Herkenhoff - Acho que há um incômodo muito grande em São Paulo com o sucesso do Hélio e da Lygia. Eles têm valor porque eles são extraordinários. Não quer dizer que os outros também não tenham direito a isso. Mira Schendel vai ter uma exposição no MoMA. O Volpi chegará lá. Existe Volpi na coleção Cisneros por indicação minha. São de primeiríssima linha. O Reina Sofía, de Madri, adquiriu Volpi. Agora, o Volpi tem um problema semelhante ao Guignard, uma leitura reducionista que se faz no hemisfério Norte desses dois artistas, que tendem a ser considerados artistas ingênuos.
Folha - Como os museus devem ser financiados?
Herkenhoff - Outras associações de empresários poderiam muito facilmente criar um fundo para a sustentação dos museus. Qual museu ou instituição brasileiro vive em paz financeiramente? O Instituto Moreira Salles. Eles têm aquilo que em inglês se diz "endowment", um fundo que é gerido para manter a instituição, para o diretor não ficar carregando pires o tempo todo. Os museus americanos têm uma co-gestão de sustentabilidade.
Folha - Como vê o caso das fundações, como o Centro de Arte Contemporânea Inhotim, em Minas Gerais, que virou uma fundação com um acervo montado a partir de uma coleção privada?
Herkenhoff - Eu acho que fundação é um modelo melhor, porque permite uma intervenção mais direta do Ministério Público. A idéia da fundação é a de um fundo, que pode ser um fundo financeiro, um fundo de bens materiais, um fundo de laboratório, destinado a uma missão de valor social. Ela pode ser privada, não porque os resultados são privados, mas porque ela é organizada pela sociedade civil. E a fundação, então, é submetida a uma fiscalização pelos poderes públicos.
Folha - Além de Volpi, quais outros artistas não são tão valorizados internacionalmente por serem vistos como primitivos, ingênuos?
Herkenhoff - É o caso, por exemplo, do venezuelano [Armando] Reverón, que teve uma exposição na Bienal de São Paulo. Então agora o processo internacional não corresponde àquilo que nós desejamos, ou seja, haverá um momento em que ele será reconhecido, mas o problema de Volpi é um problema curioso. Quando o Rockefeller Center mandou um emissário para a América Latina, durante a guerra, para comprar obras de arte, ele compra tanto os artistas modernos quanto os ditos primitivos ou ingênuos, fez uma coleção. Ele comprou Guignard, que podia ser visto tanto como moderno quanto como primitivo, com esse olhar reducionista. Então ele entra fácil. Eu acho que eu fiz a minha parte no Volpi, quer dizer, tinha uma sala na Bienal, com curadoria da Aracy Amaral.
Folha - E sua tese de que o moderno na verdade já existia no Brasil antes da Semana de 22?
Herkenhoff - A cidade de São Paulo fica muito nervosa quando perde o bonde, quando não está à frente das coisas. Almocei recentemente com o professor Júlio Katinsky, da FAU. Sabe o que ele me disse? De repente ele sai com isso: "Puxa, eu vejo certas coisas que se fazia no Brasil antes da Semana... a história da arte brasileira tem que ser reformulada". Nós não estávamos falando de Semana de Arte Moderna, falávamos da arquitetura de Bilbao. De repente, ele começou a falar disso e a citar alguns artistas como o Belmiro de Almeida. A Semana virou um ícone preguiçoso.
Folha - Quais foram os artistas modernos antes da era moderna? Rego Monteiro?
Herkenhoff - O Vicente do Rego Monteiro, em 1922, era o artista mais sólido do Brasil. Sólido em termos de programa teórico, em termos de desenvolvimento da forma, em termos de ter um vocabulário pessoal. Eu brinco que a Semana de Arte Moderna de 22 foi em Paris, porque é o momento que se reúne em Paris o Vicente; o irmão dele, Joaquim do Rego Monteiro, que também era um pintor extraordinário; e o Gilberto Freyre. Gilberto Freyre e Tarsila do Amaral são pares nas ciências sociais e na pintura. Mário de Andrade era um folclorista. Não era nem um etnólogo, era um folclorista. Por que se privilegia a pintura na Semana de Arte Moderna?
Folha - Por exemplo, a Semana não teve fotografia...
Herkenhoff - Não teve fotografia. A caricatura que teve não tinha a produção do J. Carlos. O J. Carlos é de 1905. A música, em 1920, já tinha uma história da música moderna no Brasil, os principais compositores, naquele momento, eram o Ernesto Nazareth e o Tupinambá. Qual o espaço que Ernesto Nazareth ocupa na musicologia do Mário de Andrade? Foi posto de lado, ele não estava ainda no hospício.
Folha - Você não acha que boa parte de seu trabalho foi trazer à tona artistas pouco conhecidos?
Herkenhoff - Pode até ser. Por exemplo, quando a Lygia Clark morreu, eu tive 12 horas, domingo à noite, para arranjar uma Kombi para às 9h da manhã pegar o arquivo dela, todo o material que os filhos não queriam, e depois levar para o MAM. Durante dois anos eu tratei desse arquivo. Conseguimos obras de nove outras fontes, esse material que eles não queriam. Tudo isso foi limpo, restaurado. Eu gosto muito da questão da direção de museus, eu adoro, mas eu não quero mais, nunca mais na minha vida.
Folha - Você não acha que existem lacunas nos estudos da história da arte brasileira?
Herkenhoff - A historiografia brasileira é mesquinha. É mesquinha por interesses geopolíticos. É mesquinha porque ela reduz o que é bom, o que é passível de receber o douto olhar dos críticos. Via de regra, a crítica de arte no Brasil é inferior à arte brasileira. Penso nisso quando vejo a arrogância de alguns críticos com relação a alguns artistas. O exemplo de Iberê Camargo é clássico: foi ignorado durante duas décadas, no ápice de sua obra, de meados dos anos 60 até o início dos anos 80, pela crítica universitária que depois se apoderou de seu espólio. Nossos artistas estão construindo a história da arte num plano internacional; o mesmo não se pode dizer de nossos críticos com relação à constituição de uma teoria.
Folha - Tem artistas que você resgatou, como a Zélia Salgado....
Herkenhoff - Ela sofreu um acidente 'artístico' na vida. Toda a obra dela de 1957, 1958, com metal retorcido, desapareceu, se perdeu. Então, é como se ela não tivesse feito. Ela não entra na história da arte? Não é que ela seja melhor do que o Amilcar de Castro, mas temos de olhá-la também. Isso também é nosso. Isso também construiu o tecido cultural do país.
Folha - Como está sua atividade profissional hoje?
Herkenhoff - Eu estou terminando o texto da exposição sobre pintura que eu fiz há um ano e meio atrás [sobre pintura até os anos 60, no Instituto Tomie Ohtake], mas é um texto grande. São glosas, porque não pretendo fazer um texto corrido, mas vou lançando questões. Estou lutando terrivelmente para fazer uma exposição da Lygia Clark com a Katarzyna Kobro, uma extraordinária artista polonesa da geração entre o suprematismo russo e o concretismo e a arte construtiva. Estou fazendo junto com o diretor do Museu de Lodz, na Polônia. Vem para o MAM do Rio.
Folha - Qual artista você acha que pode ser o próximo a ter ressonância internacional?
Herkenhoff - Tem um artista que me intriga muito, que é o Waldemar Cordeiro. Acho que o Waldemar Cordeiro é muito cerebral e, ao mesmo tempo, muito visceral no momento de tomar posição. Ele era como se ele tivesse um conflito interno muito forte e pagou para ver. Eu até discordo de certas posições dele, muito ortodoxas, mas eu tenho um fascínio, porque ao mesmo tempo em que ele era capaz de ser ortodoxo, era capaz de romper radicalmente com a própria ortodoxia. Isso me interessa. É um artista que eu gostaria de fazer uma exposição.
Folha - O Cordeiro é colocado sempre como a figura paulista que era o opositor do neoconcreto, tanto que o Willys de Castro e o Hércules Barsotti deixam de se filiar ao grupo paulista e se alinham depois com os neoconcretos do Rio.
Herkenhoff - Eu acho que tem uma deformação aí que é a seguinte: na verdade, o neoconcretismo não é uma dissidência do concretismo. São dois movimentos paralelos com programas diferentes. O programa do Waldemar Cordeiro é uma questão do século 20 e tem um interesse filosófico no [Konrad] Fiedler. Ele tem uma postura política filiada ao Gramsci, que é a maneira como você arregimenta o artista dentro da classe operária também. Então, ele tem um programa, e é isso que eu quero ver. Ele não é um cara imune ao pensamento, porque ele é ligado ao Fiedler, que fala do pré-visibilismo. A forma tem que ser pré-visível. O Fiedler também estava no manifesto neoconcreto. Isso não quer dizer que ele tenha, em outros momentos, também, se preocupado com outras coisas. É que eu acho que no Brasil se pratica ainda muito pouco a leitura de obras. E na exposição de pintura, eu coloquei um 'pop creto' dele que era muito interessante, porque era uma cadeira que tinha uma sombra pintada na sua própria estrutura e depois tinha uma sombra que se projetava. Então, essa relação entre o real e o convencional, o duplo do duplo, quer dizer, a sombra da sombra pintada, me parece um conjunto de problemas muito interessante e que eu quero, de certa maneira, até confrontar com algumas coisas do Joseph Kosuth.
Folha - Tem algum artista jovem que você esteja mais interessado?
Herkenhoff - Olha, eu estou muito interessado em trabalhar com artistas novos, fora do eixo Rio-São Paulo e fora do Brasil. Então, eu estou indo muito à América Central, muito, bastante, começando a escrever, e tenho ido muito a Belém. Estou começando a ir a Recife e a Fortaleza. Fui às duas cidades, no ano passado, estou voltando agora, por algumas vezes. Você tem o Alexandre Sequeira, que expôs agora aqui em São Paulo [no Itaú Cultural. Bené Fonteles fez um trabalho interessante na Bahia, há a Paula Trope, Rosana Palazyan...
Vi, por exemplo, em Fortaleza, um cara chamado Solon Ribeiro, filmes maravilhosos. Porque eram tão assim surpreendentes? Porque o pai e o avô tiveram cinema no interior do Ceará e, em todo filme interessante, eles pediam ao projetista para cortar um fotograma das cenas principais. Depois, montaram álbuns lindos assim com a seqüência dos filmes. O Solon pega esses fotogramas e os rearticula. É lindo, lindo, lindo.