Historiador revela mentira sobre vão-livre do Masp antes da construção do museu
Escadaria do Masp com vista para o vão-livre do museu na avenida Paulista - Keiny Andrade/Folhapress
Se a estrutura do Masp parece inabalável, a história que há cinco décadas se conta sobre sua particular forma, na qual a leveza desafia o concreto, está longe disso.
Em “O Trianon do MAM ao Masp”, que chega às livrarias agora, Daniele Pisani desmente a história de que o vão-livre criado por Lina Bo Bardinasceu de uma exigência, na doação do terreno, de manter o belvedere ali existente.
Essa justificativa, repetida em livros e revistas, não para em pé diante do trabalho do historiador, italiano que tem o modernismo brasileiro entre suas linhas de pesquisa.
O terreno não foi doado por Joaquim Eugênio de Lima, como reza a história oficial, e sim vendido à prefeitura por José Borges de Figueiredo, sócio do primeiro no loteamento da avenida Paulista.
Não houve doação nem exigência quanto ao belvedere —embora uma carta de Borges de Figueiredo diga que o lote deveria se manter público.
Pisani encarou “pilhas de documentos inéditos”, concluindo que “nem a documentação mais óbvia e acessível parecia ter sido consultada”.
Trocando em miúdos, diz ele, a lei que registra a transação pode ser lida por qualquer um. “É só querer ver.”
Mesmo os processos de tombamento do Masp recorrem à versão propalada. Na esfera federal, diz Pisani, a história da doação aparece ao lado do contrato de venda, como se não fossem excludentes.
A obra não é sobre o museu criado por Lina Bo Bardi para abrigar a coleção de Assis Chateaubriand, o Chatô, montada pelo marido da arquiteta, o historiador e crítico de arte Pietro Maria Bardi.
Mas “muita gente vai perceber o livro como sendo sobre o Masp”, admite seu autor.
A pesquisa que resultou no lançamento nasceu de outra sobre Affonso Eduardo Reidy —que acabou superada pelas descobertas que Pisani fez ao procurar saber mais sobre um certo Museu de Artes Plásticas, único projeto do arquiteto na capital paulista.
O livro de Pisani parte da história do MAM do título —que não é o carioca, obra de Reidy, mas aquele que o industrial paulistano Francisco Matarazzo Sobrinho, o Ciccillo, quis implantar na Paulista.
Desde o início, o projeto interessou a Pisani não tanto pelo desenho, mas pelo lugar onde se ergueria, um cobiçado lote no miolo da avenida-símbolo da pujança de São Paulo.
O local até hoje atende por Trianon, nome do belvedere projetado por Ramos de Azevedo, com salões onde, a partir de 1916, a elite festejou seus eventos com vista para o centro e a serra da Cantareira.
Mais da metade do livro retraça a história das tentativas de Ciccillo de instalar seu Museu de Arte Moderna de São Paulo ali, onde, após desalojar o Trianon, ele comandaria a primeira Bienal de Arte da cidade, em 1951.
Os objetivos iniciais de Pisani começaram a mudar diante de uma declaração de Bardi, no livro “História do Masp”, editado há quase três décadas.
O crítico dizia que Ciccillo havia perdido para Chatô a disputa pelo Trianon porque o projeto de Reidy não respeitava a tal cláusula da doação.
“Quando reli as palavras do Bardi, soube que alguma coisa era falsa. Não sabia nada da doação, mas sabia que o projeto do Reidy não tinha sido construído porque não havia tempo e dinheiro.”
Ciccillo havia obtido, com muitos vaivéns, a cessão do terreno e chegado a um projeto definitivo, o de Reidy. A ideia era que o museu fosse o palco das artes visuais nas comemorações do Quarto Centenário de São Paulo, em 1954. Mecenas e agitador cultural, Ciccillo era o encarregado dos festejos.
O enredo de como o MAM da Paulista ficou no papel é intrincado. Envolve os interesses flutuantes de Ciccillo, as pretensões de outros para o terreno e desavenças políticas.
No fim, o projeto de Reidy vai morar numa gaveta de Nelson Rockefeller. Fora enviado ao magnata americano por Ciccillo, em mãos de Chatô, numa derradeira tentativa de obter recursos para a construção —prova, defende Pisani, de que o Trianon reúne “uma história global”.
Era 1952 quando Ciccillo enfim desistiu e centrou forças no complexo do Quarto Centenário, desenhado por Oscar Niemeyer no parque Ibirapuera, concebido para as comemorações.
É só mais adiante que Lina Bo Bardi rouba a cena, com um projeto ousado para abrigar, no Trianon, a maior coleção de arte da América Latina —aquela amealhada por seu marido para Chatô.
Os Bardi estavam convictos de que tinham de dar ao mundo um cartão-postal à altura do que o museu conteria. Era sabido que a prefeitura queria fazer ali um espaço para artes; um projeto estava sendo desenvolvido pela administração pública.
Em 1957, levando seus belos desenhos, Lina bate à porta do prefeito Adhemar de Barros e de seu secretário de obras, o engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz, calculista da Oca no Ibirapuera e, depois, do próprio Masp.
Segundo o próprio Bardi diria, naquele depoimento, Adhemar aceitou ceder o terreno e bancar a obra do museu em troca de apoio dos Diários Associados para a sua campanha eleitoral.
Esse aspecto, mais do que a mentira a respeito da doação, é o que mais choca Pisani. “Eles falam ‘a gente fez uma troca’, como se fosse uma coisa legal”.
A realidade do conluio, frisa o autor, é algo “impossível de ser demonstrado”. “Porém quando uma pessoa fala uma coisa feia a respeito de si mesmo em geral é verdade.”
Segundo o autor, há muitos artigos publicados pelas publicações comandadas por Chatô sobre Adhemar de Barros durante a campanha presidencial de 1960 —mas isso é tudo que se pode afirmar.
Quanto ao mito de origem do Masp, como o chama no livro, Pisani quer deixar claro que nada do que se revela tira os méritos do partido adotado para o museu.
“Espero que apareça minha admiração pela Lina e pelo projeto” diz o autor, de certa forma amenizando o efeito do que seu texto traz à luz.
Lembrando que seu apreço não o leva, contudo, a negar os fatos, ele arrisca uma explicação. “Acho que é uma daquelas coisas, se você faz um pequeno passo, depois não consegue voltar atrás. Conta uma primeira mentira para um, depois para outro, fica complicado.”
Outras explicações para a atitude são os gastos públicos com a obra, somados à “dimensão emotiva” do lugar —muitos dos que viram o prédio de Lina abrir na avenida o maior vão-livre do mundo, com mais de 70 metros, tinham ainda recordações do Trianon.
A imposição inventada blindaria o Masp contra críticas, servindo de salvaguarda onde a ousadia e o brilho da arquitetura talvez não bastassem.
“Eles mentiram, mas não para construir uma casinha na praia, e sim um espaço para a cidade”, diz Pisani, lembrando a vocação cívica que o vão-livre assumiu e segue viva, como era desejo da arquiteta.