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Patrimônio: uma nova sustentabilidade

Teixeira Coelho (Folha de S. Paulo, 08/11/2009)

EM CASA onde falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão.
Esse é um velho ditado que os "antigos" usavam nos tempos em que o discurso politicamente correto felizmente não imperava. O ponto é este: ninguém tem razão. É bom considerar essa hipótese. Pelo menos como exercício. Pensar sempre desde outra perspectiva, ver se os dados e os parâmetros em jogo continuam válidos é uma obrigação.
O tema é o incêndio que destruiu parte do acervo de Hélio Oiticica. Que fazer com o patrimônio artístico? A família é a melhor guardiã da obra de um artista? Ou será o museu? Museu do Estado? Museu "privado"?
É possível que não exista neste momento, no país, um único museu que possa receber -para guardar e conservar- qualquer coleção significativa que lhe seja oferecida. Por falta de espaço e de dinheiro.
O número de artistas e de obras cresce exponencialmente e, com ele, o numero de obras que, na visão tradicional, devem ser preservadas. O número de museus, no país, não cresce -nem exponencial nem linearmente.
Os centros de exposição, mantidos pelas grandes estatais ou pela iniciativa privada, estes, sim, proliferam.
Mas sua lógica, diante da obra de arte, é diferente da lógica dos museus.
Os centros de exposição funcionam segundo a lógica do mercado, que, cada vez mais, é a lógica do "just in time" ou do estoque zero. Tenho um espaço disponível, tenho dinheiro para uma exposição, tenho obras à mão, faço uma exposição. Elas chegam no momento certo e partem no instante correto. Mas aqui não fica nada, meu estoque é zero até que chegue o próximo estoque.
A lógica é perfeita, é compatível com a lógica maior do mercado e o todo funciona. E o "just in time" permite pelo menos que a obra circule: não é pouca coisa.
(Importante: tenho reservas quanto ao mercado, mas não sou contra o mercado -em arte ou fora dela.)
Mas, para um museu, para um patrimônio, a lógica é outra: é a lógica do "late in time", do tempo represado, do estoque pleno. Essa lógica vai contra a lógica dominante.
Como resolver o conflito? Na Europa tampouco há espaço disponível para o patrimônio, mas há (ainda) dinheiro. Até para a cultura.
Fundações com coleção, assim como galerias, constroem ou alugam galpões longe da cidade, a preços em conta, e ali guardam suas obras, seus excessos, seus tesouros não tão imprescindíveis. Tudo isso envolve despesas adicionais (climatização, segurança, transporte).
Por enquanto, ainda há dinheiro. E quando não houver mais dinheiro?
No Brasil, os museus (públicos e "privados") não têm recursos para tanto. Coleções que são vendidas para o exterior, como acontece de vez em quando, ficam mais bem protegidas lá fora.
Aqui dentro, que fazer? Não construir mais museus e construir depósitos? Depósitos partilhados, gerenciados em comum? Pagos por quem?
Há pouco, em reunião com colegas diretores de museus europeus, desenhamos um cenário provável para os museus em futuro próximo: com o custo crescente das grandes exposições e, mesmo, da manutenção da própria coleção exposta, é imaginável que, daqui a pouco, todas as obras de um museu fiquem apenas em seus depósitos, que os museus se transformem em imensos depósitos. Quando alguém quiser de fato ver uma obra, pedirá ao museu, irá ao depósito e a obra lhe será ali mostrada.
Fim do espaço expositivo (porque há um conflito entre expor e preservar), fim dos curadores, fim das explicações: ver a obra e pronto. Volta ao estado pré-1789, pré-Louvre aberto para todos.
Se me lembro bem, Pasolini acreditava no fim do mundo, e o fim do mundo era a explosão demográfica. Pois vivemos agora a explosão demográfica da arte e a implosão pura e simples dos museus e de outros depósitos de patrimônio.
O poder público, o governo, é culpado? Ou culpado é o artista que quer ser preservado? Errada é a ideia de preservar arte? Qual? Errados estão os centros de exposição (os centros culturais) que trabalham "just in time"? Culpada é a iniciativa privada, o mercado?
Em casa onde falta pão, todos gritam e ninguém tem razão. Ninguém. Quando se aceita esse princípio argumentativo, a alternativa é virar o problema e colocá-lo em outro ângulo de abordagem.
Um novo formato de sustentabilidade precisa ser buscado. Um novo contrato social para os museus (para os preservadores de patrimônio) precisa ser buscado. Se a palavra "social" está desgastada, então que a palavra seja "societal", como sugere M. Maffesoli e que coloca no lugar da lógica do "deve ser assim" o princípio do "mais vale que seja assim".
O momento é de audácia na criação de um novo modelo. Logo.


JOSÉ TEIXEIRA COELHO NETTO , 65, é professor titular aposentado da ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Pulo), crítico e curador do Masp (Museu de Arte de São Paulo). É autor de "Dicionário Crítico de Política Cultural", entre outras obras.