Como salvar acervos
O incêndio que destruiu quase a totalidade da obra de Hélio Oiticica denuncia a ineficiência do Brasil em salvaguardar seu patrimônio
Hélio Oiticica (1938-1980) tinha muita preocupação com a sobrevida de suas obras. É o crítico britânico Guy Brett, que conheceu Oiticica nos anos 70, em Nova York, quem afirma isso em texto publicado em 2007 no "Tate Papers", jornal do museu britânico Tate. A inquietação do artista se dirigia não apenas à existência de seus trabalhos após a sua morte, mas ao modo como manteriam sua vivacidade. Quando ele morreu, a maneira que seus amigos e familiares encontraram de perpetuar sua obra foi por meio de réplicas e reproduções.
LUTO "Parangolés", que foram vestidos por amigos e passistas, não existem mais
Assim, para serem devidamente "preservadas", obras que foram concebidas para serem vestidas nunca mais foram usadas. Agora, os "Parangolés", que foram "dançados" por passistas da Mangueira, quando Oiticica era vivo, não existem mais. Foram integralmente consumidos pelo fogo junto a um acervo de mais de mil peças, na casa do irmão, Cesar Oiticica, no Rio de Janeiro, onde funcionava a sede do Projeto HO, responsável pelo espólio do artista.
"Sabemos que a culpa é nossa porque nós assumimos a responsabilidade pela guarda. O que não podemos aceitar é a secretária da Cultura dizer que a culpa foi por não termos dado a obra para ela. Nunca passaríamos para ninguém o gerenciamento da obra do Hélio. Eles não entendem de arte, não têm estrutura museográfica, nem sabem quem é HO", afirma Cesar, justificando sua recusa a uma proposta de comodato sugerida este ano pela secretária municipal de Cultura, Jandira Feghali.
A proposta veio após a interrupção de um contrato "de permissão e uso", segundo o qual o projeto recebia R$ 20,5 mil mensais. "O comodato não foi aceito, pedimos uma contraproposta, mas ela não veio. Se essa negociação tivesse sido levada com tranquilidade, já poderíamos ter parte do acervo aqui. Nosso esforço foi de preservação e não conseguimos. Lamentamos, porque sabemos, sim, o que é uma obra de arte", afirma a secretária.
Oiticica Acervo digitalizado
Sob os escombros de um dos mais importantes capítulos da história da arte do século XX, levanta-se agora uma querela: a difícil relação entre o poder público e os herdeiros de artistas brasileiros. "Foi um alerta para as autoridades públicas começarem a se preocupar com sua responsabilidade perante uma cultura que ela pretende valorizar. Mas entendo uma família, com problemas financeiros, que não queira 'entregar' ao Estado uma obra que, além do valor afetivo, teve uma valorização monetária sem nunca ter recebido um apoio público", afirma a crítica Lisette Lagnado, responsável pela digitalização do acervo de Oiticica na internet, o que representa hoje a sobrevida de suas ideias.
O Projeto HO beneficiou-se de um apoio do Estado por 12 anos. Mesmo assim, não deu conta de preservar um patrimônio universal. "O que aconteceu não é uma fatalidade. Será descaso das autoridades se não pegarem esse episódio na unha e dar nome ao que aconteceu: descuido? ganância?", indaga Daniela Bousso, diretora do Paço das Artes e do Museu da Imagem e do Som. O caso ainda não teve perícia técnica. Mas pede urgente mobilização. "O brasileiro só tranca a porta depois de arrombada", afirma o ministro da Cultura, Juca Ferreira. "Precisamos de lei. O público é quem ganha quando há interação da família com o setor privado e o governo. O inverso do Hélio Oiticica é o Iberê Camargo, que ganhou um museu de relevância mundial", diz o ministro, que promoverá audiências públicas para discutir a necessidade de legislação que regule a herança na questão da obra de arte.
Em busca de soluções
Por que temos que viver catástrofes como os incêndios do acervo de Hélio Oiticica e do Museu de Arte Moderna do Rio, em 1978, para que soluções sejam buscadas pelo Estado? Há dezenas, senão centenas, de acervos brasileiros à espera de condições dignas de preservação.
Weissmann: contando só com a sorte
Armazenada em um galpão na periferia do Rio de Janeiro, a totalidade do acervo do escultor Franz Weissmann (1911-2005) está ameaçada por um ambiente com goteiras, cupim, oxidação, temperatura alta e pouca circulação de ar. Em conversas com o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), a herdeira Wal Weissmann tentou negociar a criação de um Instituto, mas nada de concreto aconteceu.
O Ibram tem técnicos que poderiam orientar os herdeiros em situações dramáticas como aquela em que se encontram os trabalhos de Weissmann. "Mas qualquer intervenção precisa ser autorizada pela família e negociada porque envolve dinheiro público. É uma situação bem delicada. O acervo precisaria ser declarado como um bem de interesse público, pela família, para que o Ibram passasse a ser responsável pela fiscalização", explica Mário Chagas, diretor do departamento de processos museais do Ibram.
Leonilson: à própria custa
O Projeto Leonilson guarda em sua sede na Vila Mariana, em São Paulo, todas os obras que estavam no ateliê de Leonilson quando ele faleceu, em 1993. São 1.500 pinturas, desenhos e bordados, além de cadernos e objetos pessoais. Fundado por familiares e amigos de Leonilson, o projeto sobrevive à própria custa, sem nenhum apoio público. "Nossa sobrevivência depende da venda de obras", diz Ana Lenice Fonseca da Silva, mãe do artista, que vendeu um bordado para sustentar o projeto durante todo o ano.
O que pode dar vida nova ao acervo é um acordo de comodato que está em negociação com a Pinacoteca do Estado. "Reconhecemos o enorme valor do acervo de Leonilson, mas há questões jurídicas que demandam tempo nas negociações com coleções privadas", afirma Marcelo Araujo, diretor da Pinacoteca. "Se é possível tirar lições da tragédia do acervo de Hélio Oiticica é admitir que os riscos são reais e que há decisões que devem ser tomadas com a maior urgência. Mas isso depende de uma política mais estruturada. Não falta sensibilidade aos dirigentes. O que faltam são mais recursos."