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Sobre a 28ª. Bienal ou "O buraco é mais em cima"

Guy Amado (Canal Contemporâneo, 16 de novembro de 2008)


http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/001936.html

Pelo menos ao longo das duas últimas décadas, a cada edição da Bienal Internacional de São Paulo a situação se repete: discussões acaloradas, críticas e mesmo polêmicas afloram a partir da definição da curadoria e do mote conceitual a ser desenvolvido no evento. O próprio formato "temático" como tradicionalmente norteando nossas Bienais colabora nesse processo: afinal, verdade seja dita, quaisquer que sejam as idéias ou abordagens propostas pela curadoria, tenderão já de saída a serem atacadas. Para cada questionamento há uma expectativa a ser contemplada: representatividade nacional e internacional, coerência e/ou pertinência da proposta curatorial - e até que ponto esta se verifica ou se cumpre -, o papel da Bienal na formação do público e o estatuto da audiência no evento, etc.

Como não podia deixar de ser, desde o anúncio confirmando a realização da 28ª Bienal de São Paulo 2008, feito em final do ano passado, com Ivo Mesquita aceitando encampar a empreitada com pouca verba e menos de um ano para realizá-la, muito se especulou a respeito. Sob o mote "Em vivo contato", a plataforma curatorial de Ivo pautou-se prioritariamente em oferecer uma reflexão sobre a propalada "crise" do modelo bienais de arte como um todo, bem como propor um debate acerca da Bienal de São Paulo em si, visando fazer com que esta "reencontre sua especificidade" e a "coloque novamente 'em vivo contato' com seu tempo" (seja lá o que isso signifique). Para tal, seu projeto prevê não apenas a situação expositiva - ostensivamente árida, ou amortecida, em relação às anteriores, mesmo à última - mas ainda diversos outros produtos: ciclos de conferências e mesas-redondas, eventos musicais/performáticos, uma publicação regular em formato de jornal popular de grande circulação, além do "núcleo biblioteca" instalado no 3º. piso. Todos buscando expandir os horizontes de reflexão em torno do evento; sua vocação, estatuto atual e perspectivas de continuidade.

Assim que veio a público a proposta de manter um ou mais pavimentos do prédio sem obras de arte, num gesto de tensionamento simbólico daquele local (de sua história, importância ao longo do tempo e sobretudo, quero acreditar, das condições atuais de funcionamento), iniciou-se uma série de pseudo-querelas, com artistas, teóricos e outros agentes do meio disparando uma saraivada de críticas em torno de um projeto do qual pouco se sabia. Ou se podia "visualizar". A maior parte da indignação mirou o anunciado "vazio" de forma francamente superficial, numa onda de protestos cuja tônica se mantinha não raro no nível de um ressentimento algo corporativista e provinciano, na linha do "que absurdo, um andar da Bienal ficar vazio com tantos artistas de qualidade que poderiam estar ali". E me refiro a personagens de renome do meio artístico, que chegaram a elaborar ou endossar manifestos e abaixo-assinados eletrônicos em repúdio ao projeto de Ivo (o que aliás me leva a indagar por que não se vê tanta energia e potencial mobilizatório, nesse meio, canalizado para propor ações e protestos similares tão ou mais urgentes, como é o caso do Masp, o maior museu da América Latina e "semi-abandonado em público" há tempos. Mas essa é outra questão).

O VAZIO

Poucos se dispuseram a perceber e discutir – e problematizar - em profundidade o potencial simbólico embutido na proposta, a saber a expectativa de que a instauração do referido "vazio" naquele prédio e naquele contexto pudesse, ou possa, gerar uma reflexão efetiva acerca da instituição Fundação Bienal, esse sim possivelmente o maior vazio a ser ali questionado. O segundo pavimento está de fato desocupado, ou expondo sua "planta livre", para adotar a terminologia do vocabulário arquitetônico modernista recuperada aparentemente em cima da hora pela curadoria. Um "vazio" que, diga-se de passagem, não é nem pode ser "obra de arte"; apesar de se afirmar como um gesto autoral, mesmo "autoritário" para uns, da curadoria, não está ali para ser lido como instalação artística.

Mas para além da, digamos, experiência de "fisicalidade alternativa" ou do impacto visual que o ato de imersão neste vazio possa realmente suscitar, é sua potência metafórica o fator a supostamente ser destacado, apontando para um outro vazio, e que os mais dispostos e informados podem localizar logo acima, no terceiro piso. E não na área expositiva (de desenho museográfico especialmente árido nessa edição, o que sem dúvida foi planejado e deve se afinar ao projeto curatorial; mas que por outro lado compromete, ou "achata" excessivamente o corpo-a-corpo com os trabalhos. Se essa solução estabelece uma espécie de des-hierarquização visual entre obras e artistas, também determina certo desconforto nas relações espaciais entre os mesmos), mas nas dependências usadas pela presidência e conselho que administram a Fundação Bienal. Uma administração que vem se provando seguidamente ineficaz em apresentar algo próximo de um programa de gestão efetivo e seqüenciado, que impeça que a cada edição do evento tenha que se reinventar a roda para garantir sua subsistência e a realização da próxima Bienal. Uma administração cujo conselho deliberativo, não custa lembrar, por muito pouco não reelegeu Edemar Cid Ferreira para seus quadros quando este estava na cadeia, em sua infelizmente breve temporada sob custódia do Estado em 2006, respondendo a uma lista de acusações que tomariam o resto do parágrafo. Chega a ser incompreensível, além de deprimente, que aquela que se gosta de considerar "a segunda mais importante Bienal de arte do mundo" (abstraindo todo o relativismo que esse epíteto possa implicar na atualidade) tenha sua sobrevida perpetuada a partir de uma dinâmica tão precária, marcada pelo improviso, parcerias institucionais episódicas e acordos políticos emergenciais para obtenção de verba.

Uma leitura mais adequada do esvaziamento ou não-ocupação do segundo piso talvez fosse assim a de uma suspensão. E não a suspensão da percepção, antes pelo contrário: é a partir da ausência de quaisquer 'estímulos visuais' convencionais alheios à arquitetura nua num evento do tipo (a saber, trabalhos de arte) que se pode talvez enxergar além, ou perceber melhor a capacidade de ruído que este silêncio convoca. E aí de fato não entendo o porquê da curadoria insistir em "dourar a pílula do vazio", agregando discursos da arquitetura e de uma "experiência de imersão" àquele vazio, ao invés de deixar que este fale por si.

O que é de se lamentar em boa parte do que se vê de ataques e críticas negativas a essa Bienal na grande mídia, por especialistas ou pessoas não tão familiarizadas com as idiossincrasias do meio da arte contemporânea, é a tônica em se questionar apenas a superfície. Ou seja, a tendência em se emitir opiniões e juízos inflamados a respeito do "vazio" ou da "aridez expositiva" sem se buscar atingir o ponto que deveria ser realmente abordado, a saber a Bienal de São Paulo em si, ou antes a Fundação por trás do evento. Pela singularidade de seu projeto curatorial, com seus méritos e defeitos (a potência do agenciamento simbólico embutido na proposta e a dificuldade em se verificar objetivamente o alcance ou o sucesso de seus postulados), esta não me parece ser uma Bienal a ser lida, analisada ou comentada na mesma chave que nos habituamos a adotar nas anteriores. Qual o sentido em se lamentar a ausência de obras no 2º andar se isso estava previsto desde a concepção do evento? Alguma "surpresa" nisso? Ou de atacar a montagem das obras expostas no terceiro piso desconsiderando a óbvia intencionalidade de unidade orgânica do projeto museográfico, certamente problemática mas igualmente planejada? Há sem dúvida diversos aspectos a serem questionados neste evento, sobretudo no que tange a certa ambivalência conceitual entre seu discurso e objetivos e possibilidades reais de consumá-los; mas, se é assim, que ao menos as pessoas se disponham a atacá-la com procedência, obrigando-se a familiarizar-se minimamente com os postulados da curadoria.

CONTINGÊNCIA X PERDA DE POTÊNCIA

O que nos leva a um ponto que me parece altamente relevante: até que ponto se cumprem, ou podem se cumprir, os objetivos algo quixotescos aventados no mote curatorial? E até que ponto estes seriam passíveis de ser mensurados? Claro que em se tratando da matéria "curadoria de uma Bienal de arte contemporânea" - e não abordando diretamente a questão mercantil, cada vez mais incomodamente indissociada de eventos deste porte e perfil - não se pode falar de eficácia em termos objetivos; seria mesmo algo ingênuo supor que se pudesse ter ao alcance das mãos uma planilha de resultados nesse caso. A meu ver, um grave empecilho nesse sentido é a convergência de fatores contingenciais minando potencialmente a força de tal projeto. Ou seja, constatar que por mais legítima, pertinente e relevante seja a proposta de Ivo, esta se presta perfeitamente, gostemos ou não de admitir, a suprir as demandas "pouco tempo + pouco dinheiro" já conhecidas de antemão. E que, para efeito institucional (leia-se Fundação Bienal) e de repercussão midiática, alimenta ou reforça posturas e discursos na linha "vejam, apesar das adversidades, realizou-se/realizamos a Bienal". Tenho minhas dúvidas se essa empreitada de Ivo Mesquita – que, ressalte-se, talvez mais que ninguém neste país merecesse poder conceber e realizar uma Bienal com prazo e recursos dignos, dada sua competência e notória relação profissional e afetiva com a mesma, culminando drasticamente na Bienal que tiraram de suas mãos há alguns anos numa operação política -, para além de "pôr em xeque" a instituição, não colabora involuntariamente na perpetuação de um regime de sobrevida marcado pela inoperância de seus supostos gestores. Chego a sugerir, de modo algo pueril e pouco propositivo, que "vazio por vazio", talvez a não-realização da 28ª Bienal este ano fosse mais eficiente. Quem sabe mais um hiato de quatro anos (o último ocorreu entre 1998-2002) não estimulasse uma reflexão mais candente sobre tal vazio... realmente não sei. Por outro lado, reconheço que o debate foi lançado; aguardemos os acontecimentos, até porque o evento segue ainda em curso, com sua plataforma orgânica de estratégias e iniciativas extra-expositivas de ativação da reflexão, para verificar a real extensão de sua potência conceitual. E qualquer que esta se dê a ver, que ao menos vá além do diagnóstico, já anteriormente conhecido.

Seja como for, o vazio, ou o buraco, parece ser mais em cima.