Presa no vazio
matérias originalmente publicadas na Folha de S. Paulo
Artistas de diversas áreas criticam a prisão da jovem Caroline Pivetta da Mota, que pichou o pavilhão da Bienal de São Paulo
Embora tenha fechado as portas há uma semana, continua sem desfecho a 28ª Bienal de São Paulo. Caroline Pivetta da Mota, 24, presa em flagrante quando participou da invasão dos pichadores ao pavilhão do Ibirapuera, no dia de abertura da mostra, completava ontem 49 dias encarcerada.
Uma decisão da Justiça [após o fechamento desta edição] poderia soltar a pichadora, conhecida como Caroline Sustos, mas, mesmo que ela venha a responder em liberdade, o episódio já desencadeou uma onda de debates e ações de protesto que abalou o meio artístico.
O diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa chegou a classificar o caso como "coisa de AI-5". A maioria dos artistas, críticos e curadores ouvidos pela Folha também critica a Fundação Bienal e os curadores Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen pelo que classifica de silêncio, omissão e a perda de uma oportunidade para um debate mais amplo sobre o caso.
Dirigentes de instituições culturais e representantes do poder público também se manifestaram sobre o fato. O ministro da Cultura, Juca Ferreira, vê exagero na prisão. O governador José Serra diz que não pode intervir.
Está marcada para amanhã em São Paulo uma reunião de artistas para discutir a natureza da ação dos pichadores. Também circula na internet um abaixo-assinado a favor da liberdade de Mota. Até o início da tarde de ontem, reunia 233 nomes. Entre eles, os dos artistas Laura Lima, Renata Lucas, Angelo Venosa, Carlito Carvalhosa e Thiago Rocha Pitta; e os dos curadores Luiz Camillo Osorio, Cauê Alves, Marcelo Rezende e Lisette Lagnado.
Mota, que fez aniversário ontem dentro de uma cela, participou de "ataques" coordenados à galeria Choque Cultural, em Pinheiros, e ao Centro Universitário Belas Artes. Enquadrada no artigo 62 da Lei do Meio Ambiente, por destruição de patrimônio cultural, pode pegar até três anos de prisão.
"Prisão pode macular liberdade de expressão"
Ministro da Cultura diz ser "exagerada" a detenção da jovem que pichou a Bienal
Artistas vêem andar vazio como convite velado a pichadores; fala de curadora sobre "gente da periferia" seria outra provocação
A prisão prolongada de Caroline Pivetta da Mota, 24, que pichou o andar vazio da Bienal, foi vista pelo diretor teatral José Celso Martinez como eco do regime militar e punição excessiva. "Os agentes culturais são, de repente, os agentes policiais, como eram os militares em 1968, no AI-5", diz o fundador do Oficina.
"Isso é exagerado e pode macular o momento de liberdade de expressão que estamos vivendo", avalia o ministro da Cultura, Juca Ferreira, que ligou para o governador José Serra e o presidente da Fundação Bienal, Manoel Francisco Pires da Costa, pedindo uma intervenção a favor de Mota.
"Esses dias na prisão são ruins para a cultura, a Bienal e o Brasil; ela não destruiu um patrimônio público, ela pichou uma sala vazia numa Bienal em que o público foi convidado a interagir", acrescenta Ferreira.
Artistas, críticos e curadores ouvidos pela Folha também enxergam o andar vazio desta Bienal como um convite velado ao ataque dos pichadores.
"A curadoria, quando apresenta um andar vazio, faz uma provocação", diz o ator Ivam Cabral. "Eles têm de arcar com as conseqüências."
"Isso tudo foi o que a curadoria provocou, tem de suportar, tem de saber lidar", concorda o curador Agnaldo Farias. "Se eu fosse a curadora, teria de responder pelo andar vazio, ainda mais quando havia a visão de que isso tirava dos artistas um espaço que lhes é de direito", completa a diretora do Museu da Imagem e do Som e do Paço das Artes, Daniela Bousso.
Outra suposta provocação, esta mais direta, foi a fala da curadora Ana Paula Cohen na entrevista coletiva que antecedeu a mostra, sobre a ameaça de um possível ataque de pichadores. "Estão convocando gente da periferia da cidade para fazer isso, e essas pessoas não sabem no que estão se metendo."
"O discurso da curadoria era um pouco estranho. Dizer "gente da periferia" é um grande engano", afirma o curador Cauê Alves, um dos signatários do manifesto que circula na internet a favor da soltura de Mota.
Silêncio
"A penalização exacerbada desta jovem é indecente", opina o videoartista Maurício Dias, em e-mail que divulgou. "Muito mais grave do que o crime de uma jovem pichadora são os de colarinho branco, de corrupção da já velha direção da própria Fundação Bienal."
Na opinião de outros artistas e curadores, a omissão da Bienal sacrificou a oportunidade de transformar o episódio em debate. "Acho lamentável que não tenha havido um diálogo", afirma Lisette Lagnado, curadora da 27ª Bienal. "Será que essa discussão não interessaria mais do que a série de debates que eles fizeram durante a Bienal, que não passava de uma conversa entre amigos?", questiona Daniela Bousso.
Outros artistas e galeristas reconhecem, no entanto, que houve um ato de vandalismo, passível de punição. "Desconsidero que isso seja expressão artística", afirma a artista Adriana Varejão. "Esses pichadores exageram no argumento."
"Quem depreda patrimônio tem de ser punido, mas tem o lado injusto de que ela certamente virou um bode expiatório", afirma a galerista Márcia Fortes.
"É uma tática terrorista", diz Ivo Mesquita
O curador da 28ª Bienal Ivo Mesquita rebate as acusações de silêncio e omissão, dizendo que já se manifestou sobre o ocorrido, mas reafirma que não cabe à curadoria realizar qualquer intervenção a favor da pichadora.
"A curadoria não pode fazer nada, nem deve fazer nada", diz
Mesquita. "A curadoria é um serviço terceirizado, que a Bienal contrata
apenas para fazer um projeto."
Mesquita classifica a ação dos pichadores como "arrastão". "Uma coisa é
grafiteiro, pichação; outra coisa é uma tática terrorista de arrastão,
40 a 50 pessoas, com um histórico nada bom, que invadem lugares como a
Belas Artes e a Choque Cultural e destroem obras de arte."
Sobre uma possível intervenção a favor do relaxamento da prisão de Caroline Pivetta da Mota, Mesquita concorda com boa parte dos artistas e curadores ao dizer que "a pena é pesada", mas descarta a possibilidade de tomar qualquer tipo de ação. "Eu não sei o que a curadoria tem a ver com isso."
Procurada pela reportagem, que ligou diversas vezes para seu telefone celular e deixou recados a dois de seus assistentes, que afirmaram que ela estava ciente dos pedidos de entrevista, Ana Paula Cohen não se manifestou.
O presidente da Fundação Bienal de São Paulo, Manoel Francisco Pires
da Costa, que concordou em dar entrevista por e-mail, ignorou boa parte
das questões enviadas pela reportagem, limitando-se a uma resposta de
um parágrafo, em que voltou a lamentar "profundamente" o ocorrido, "bem
como a situação por que passa a jovem".
"No entanto, nosso corpo jurídico está à disposição da advogada da
jovem para contato", diz Pires da Costa. "Entendo que, se de fato
trata-se de ré primária, o caso poderia ter tratamento diferenciado",
afirma.
Pires da Costa também ressaltou, no entanto, que "não há como intervir diretamente". "A jovem cometeu crime contra o patrimônio público tombado e em flagrante delito."
FRASES
"Isso é exagerado e pode macular o momento de liberdade de
expressão. Ela não destruiu o patrimônio; pichou uma sala vazia numa
Bienal em que o público foi convidado a interagir"
JUCA FERREIRA, ministro da Cultura
"Os agentes culturais são, de repente, os agentes policiais, como
eram os militares em 1968, no AI-5. Por que fazem a Bienal do Vazio,
então? Vazio, para qualquer artista, é uma coisa que deve ser
preenchida"
JOSÉ CELSO MARTINEZ, diretor
"Acho um escândalo a prisão. A Bienal é, em princípio, uma
trincheira da resistência da liberdade de expressão. A reação da
instituição foi histérica"
AGNALDO FARIAS, curador
"A curadoria não pode fazer nada, nem deve fazer nada. A
manifestação foi um arrastão. Uma coisa é grafiteiro, cultura urbana.
Outra coisa é uma tática terrorista de arrastão"
IVO MESQUITA, curador da 28ª Bienal de São Paulo
"A Bienal perdeu uma oportunidade importante para discutir essa
questão. Se eu fosse a curadora, teria de responder pelo andar vazio,
ainda mais com a visão de que isso tira dos artistas um espaço que lhes
é de direito"
DANIELA BOUSSO, diretora do MIS e do Paço das Artes
"Não acho que isso seja uma manifestação artística. Acho que é
vandalismo. Os pichadores exageram na desculpa, no argumento por trás
dessa expressão"
ADRIANA VAREJÃO, artista plástica