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Esta Bienal... reflete a arte contemporânea ?

Aracy Amaral (Caderno 2, O Estado de S. Paulo, 31 de outubro de 2008)

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo // Caderno 2


A gente entra; e de imediato se indaga, constrangida: a “isto” se viu reduzida a Bienal de São Paulo? Mas é bom que se saiba: a indigência presente na Bienal de varias maneiras e que vimos na noite de abertura não reflete a arte contemporânea. Ela é antes espelho da debilidade de uma instituição. Não há necessidade de fazer simpósios ou seminários sobre o assunto. Também entendemos que a Bienal não é festival de artes em geral. Em São Paulo a oferta de espetáculos de dança, música e teatro é imensa o ano todo e teria sido desnecessário o que se despendeu ocupando o espaço com essas atividades.

Quando se viaja ao exterior e se vêm exposições marcantes de artistas em grandes museus como a Tate Modern, em Londres, ou em Viena, no Ludwig Museum, ou em Nova York no MoMA ou Whitney, só para citar alguns, damo-nos conta do que está se passando em arte contemporânea. Como ao visitar uma Documenta de Kassel, por exemplo.

Também as grandes feiras internacionais de arte nos passam uma imagem viva da efervescência do meio artístico, seja com as obras expostas, ou com seminarios que realizam.

Se entre nós o problema foi  falta de verba que caberia à presidência da Bienal providenciar, essa presidência está no lugar equivocado, pois essa é a sua competência. Se a escolha do curador foi tardia, a responsabilidade é da instituição, e da curadoria que aceitou, assim como a proposta e suas limitações, pela simples necessidade de vê-la aprovada por falta de tempo para executar ou conceber outro projeto.

Até detalhes paralelos à “proposta” de Ivo Mesquita podem ser criticáveis. Como a  apresentação de “documentos da Bienal”, pois afinal, o Arquivo sempre esteve aberto a pesquisadores e não precisava ter sido deslocado para o terceiro andar nem facilitar o manuseio de catálogos raros por parte de qualquer visitante sob risco de perda ou vandalismo.

Tentemos falar claro. Esta Bienal parece antes preconceituosa – em sua preocupação em não mostrar artistas de outras tendências mas apenas aqueles rigorosamente conceituais – . Afinal, para citar apenas um jovem artista brasileiro e um do jet set, as imagens poderosas de um Henrique Oliveira acaso foram cogitadas ? um Damien Hirst, artista há 20 anos “estrela” no meio internacional, não seria interessante ter sido apresentado ? A arte chinesa de hoje (e mesmo a coreana !) espanto em grandiloqüência, mas sem dúvida um fenômeno das artes visuais de nossos dias, e atual “darling” de museus e centros culturais de todo o mundo ocidental, porque não está presente ? Na linha de “happenings”, porque não pensar nos 40 anos depois do Grupo “actionista” de Viena, do qual fizeram parte Schwartzkogler e Gunther Brus, performaticos e violentos em suas manifestações e expressões ao vivo e em vídeo? O Ludwig Museum de Viena comemorou com grande exposição em junho-julho ultimo essa documentação forte, embora os jovens de hoje raramente saibam que existiu e creio que pouco se comovessem ao ver esses documentos. A arte também envelhece. Mas enfim, há tantas vertentes das artes visuais no mundo, que a pálida 28a. Bienal póde passar ao visitante incauto a falsa impressão de que nada mais ocorre na área. Ou, que não há nada de outros tempos que bem valeria um gesto generoso por parte do “Conselhão” ou Comissão (?) da Bienal em aprovar, recomendar e levantar fundos para sua apresentação. Afinal, repetimos, fortunas não nos faltam em particular neste Estado. E temos em mente que presidir uma Bienal de São Paulo ou candidatar-se a esse cargo pressupõe minimamente séria responsabilidade.

Mas, ou se apresenta evento digno dessa tradição – Bienal de São Paulo – ou se reformula a existência, ou freqüência do evento como sugerimos há mais de 30 anos em simpósio latino-americano ocorrido aqui na Bienal mesmo, para que ela se transforme em trienal ou quadrienal. Embora nossos profissionais, enquanto curadoria, sejam dignos de respeito, nada mal se em bienais alternadas tivéssemos curadores convidados de outros paises, do mais elevado nível, para formar e diversificar as equipes que se formam no Parque do Ibirapuera.

Se não se pertence ao circulo fechado do “Conselhão”, ou dos que decidem o que entra e o que não entra - pois estamos distantes da organização por parte dos paises convidados para que tragam seus artistas indicados pela curadoria da Bienal -  nunca será veiculado quais os que foram convidados e não compareceram, por recusa, ou porque não houve orçamento possível.

No terceiro andar, sem duvida o que mais chama a atenção são os móveis de marcenaria de mesas, cadeiras e bancos que seriam muito benvindos em centros culturais sem recursos ou mesmo em creches de nossos bairros mais carentes. Portanto, como descobrir uma proposta interessante da fértil Rivane Neuenschwander, em meio às mesmices expostas, como as reproduções nas paredes, ou papeis em vitrines que dificilmente despertam nossa atenção? Referimo-nos à monotonia da arte conceitual, a nos recordar das maçantes exposições de galerias dos anos 70 em Nova York, (“como são chatas!” nos dizia Helio Oiticica, só para citar um nome respeitado em nosso meio). Naquele tempo, só de penetrar numa dessas galerias, dar uma olhada às pranchas penduradas com palavrórios mil e cálculos matemáticos, já era suficiente para nos expelir do recinto.

Não deixamos de notar o assédio curioso de uma obra por parte do publico que ocasionou  a unica longa fila que vimos no dia da abertura – a possibilidade de penetrar no tobogã do belga Carsten-Holler - para poder usufruir da adrenalina na queda vertiginosa. Na verdade, esse trabalho, de verdadeira interação com os visitantes, talvez seja o único da Bienal a alcançar a escala de bienais passadas em termos de expectativa : “quero ir à Bienal para ver tal trabalho”.

Allan McCollum, uma raridade igualmente, parece ter trazido, com seu envio, aquilo que eu consideraria um “trabalho para um espaço de Bienal”.

Porisso me pergunto, espantada diante do que está exposto, como preparar visitas guiadas de escolares ? Como explicar “artes visuais contemporâneas” a um publico infantil ou adolescente nesta Bienal? Ou, como justificar a existência das Bienais ?

Convenhamos: como ouvir tranquilamente que é “genial” o piso geométrico de Dora Longo Bahia, que deve ter sido de difícil implantação, por certo, para seus auxiliares, com desenhos a nos lembrar azulejos hidráulicos magnificados, ou de inspiração islâmica ?

Na verdade, ao ver a diminuta peça de Iran do Espírito Santo, parece que esta Bienal, salvo exceções, pelo teor das propostas, parece feita de presenças antes para a elite freqüentadora de galerias do que baseada numa concepção considerando o grande publico. O que significa isto ?

Significa que num evento “bienal”, “trienal”, em particular num país como o Brasil, de extrema desigualdade social e educacional, os espaços, a cidade, as obras e os visitantes, devem ser pensados em termos interativos, como alvo de motivação e não apenas de exibição.

Assim foi o propósito, a meu ver, que ocasionou a vinda da “Guernica” (em 1953-54), da sala de Mondrian, da sala Picasso, da sala Van Gogh, do Pop norte-americanos já em meados dos anos 60, e de tantas outras salas especiais, como a dos artistas modernos e modernistas da Bienal da Antropofagia. Ou mesmo da Bienal da Grande Tela, sob a curadoria de Sheila Leirner, em 1985, ao trazer-nos a nova pintura dos anos 80. Claro que o Brasil mudou, e nossos museus e centros culturais idem. Assim, temos tido grandes exposições nos últimos 10-12 anos. Mas quem sabe os tempos agora ficarão mais magros e teremos que batalhar por novas oportunidades ?

Mas, afinal, o que eu vi na abertura da Bienal ? Muita “arte de processo” , tendência típica dos anos 70, ou simulacros, como uma pseudo-loja de rua reproduzida no interior da Bienal (Chaveiro, de Paul Ramirez Jonas), pseudo-gráfica com impressão de jornais (Erick Beltran), folhetos conceituais humorosos (ou não), e por vezes criativos, como sempre são distribuídos nas Bienais ao longo do tempo; entre vídeos modestamente dispostos, ao largo do circuito “nobre” do espaço, como alternativa para eventual outra visita do apreciador.

Melhor não mencionarmos a museografia, a organização do espaço desta Bienal. Nem ha etiquetas dos autores dos trabalhos em suas proximidades. Talvez entendam os curadores que os folhetos com mapas impressos sejam suficientes... Não o são. Passa uma idéia de descaso para com o visitante, de falta de tempo para os “finalmente” do evento.

O que é o “espaço vazio” da Bienal ? Prédios e habitações vazias em nossos tempos são um convite certo à “invasão”. Se não ocorre “ocupação”, vamos ocupa-los. Assim pensaram visitantes de um museu, cujo diretor, na década de 80, deixou o espaço vago para motivar  a população, numa cidade no sul da França, a ocupa-la com objetos e obras que traziam de casa. Mas acontece que hoje vivemos em tempos bem mais agressivos.

Colocar como alvo de admiração o espaço concebido por Niemeyer, e que usufruímos há mais de cinqüenta anos poderia ser projeto para uma Bienal de Arquitetura de São Paulo. Mas esta é a 28a. Bienal. Assim, não tem sentido, e mesmo a definição desse espaço pela curadoria parece-nos equivocada se não for de humor (?) dúbio[1]. Assinala falta de idéia, de concepção, de tempo, de orçamento. Ou tudo junto. Se o desejado é a polêmica sobre a provocação, então o objetivo foi alcançado. Mas o “void” , com certeza, é uma omissão. Nada tem de rebeldia. E se o curador, Ivo Mesquita, aceitou as regras do jogo, quando aceitou, pode-se dizer que ele fez mais para a presidência da instituição do que apenas “salvar” a  Bienal por ter ela sido realizada em menos de um ano.   E certamente poderá até ser elaborado um catalogo bilíngüe pleno de textos sobre a filosofia da arte de nosso tempo.

Na verdade, há algo de cinismo murmurado, reconhecido e vivenciado no meio artístico contemporâneo. O conceitual é bem imaterial, mas aqueles que sobrevivem vendem, ou viajam a convite para expor suas criações. A própria critica, as curadorias, a mídia, o sistema de galerias e museus, todos enfim contribuímos amplamente para esse fim, apesar do que se publica em vários paises sobre esse fenômeno. Isso se deve ao fato de se escrever, em geral em literatura pouco acessível ou pedante, sobre obras sem nenhum ou parco valor, para um publico reduzido que acredita erroneamente que quanto mais hermético mais elevado.

Mas é certo que a criação contemporânea é um instante de transito, entre o passado e o futuro, pois como prever qual será exatamente o tipo de expressão visual dentro em pouco com os avanços da nanotecnologia, da internet, do papel eletrônico ou da fotografia digital, que influenciarão varias formas de manifestação ?


nota: publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo // Caderno 2 [Sexta-Feira, 31 de Outubro de 2008]


[1] No folheto distribuído ao publico é definido esse espaço e sua concepção: “2O andar: Planta Livre – Ao contrario das bienais anteriores, que transformaram todo o interior do pavilhão modernista em salas de exposição, desta vez o segundo andar está completamente aberto, revelando sua estrutura e oferecendo ao visitante uma experiencia fisica da arquitetura do edificio. O termo “planta livre” refere-se ao conceito criado por Le Corbusier, em 1926, para definir um dos cinco princípios da nova arquitetura.”