Nos termos do outro
Mas você é muito europeu!
A afirmação, em tom acusatório, deve ter soado inusitada para quem, como Hans Belting, acaba de escrever um livro afirmando que não foram os artistas europeus os primeiros responsáveis pela invenção da perspectiva, ou seja, não exatamente a defesa de um ponto de vista eurocêntrico. Mas no contexto da discussão, a reação de Aracy Amaral à apresentação de Belting não era de todo imprevisível. E o curador alemão já parecia ter previsto alguma polêmica. Afinal, a primeira imagem de sua apresentação projetada na grande tela do auditório do instituto Goethe, já avisava: “it is difficult”. A reprodução do trabalho de Alfredo Jaar, que cita um poema de William Carlos Williams, parecia funcionar como epígrafe da palestra, baseada no pressuposto de que a problematização dos termos e dinâmicas da globalização é hoje incontornável. Muito da polêmica que se instaurou no debate vem da proposta de Belting de substituir por “arte global”, termo que teria o mérito de induzir-nos a algum questionamento, o termo “arte contemporânea”, que funciona como uma panacéia aplicável a toda arte feita hoje em dia, produto de um relativismo vazio: tudo pode ser contemporâneo. Contudo, aponta ele, só o que for apropriado para o mercado global merecerá o status de “arte contemporânea”.
A TV funciona como referência temporal para uma retomada do processo de globalização, pelo raciocínio proposto por Belting. Por isso a menção a Nan Jun Paik, cujo trabalho conteria uma discussão sobre identidade frente às transformações midiáticas de sua época, que teriam levado a uma confrontação entre um mundo da arte que sempre se considerou alta cultura e o mundo da comunicação de massa. Hoje, para Belting, está claro que o mundo da arte não pode oferecer ao mercado global o mesmo tipo de produto que os jogos olímpicos, por exemplo, por estes representarem entretenimento e principalmente por evocarem a todo tempo a idéia de unidade global, (ao contrário do mundo da arte, cuja ideologia funciona mais ao redor de uma idéia de diversidade, digamos, pitoresca).
A partir daí, a apresentação de Belting joga com relatos pontuais de fenômenos de mercado e principalmente suas conexões com as novas configurações dos aparatos culturais. Uma data significativa para a virada econômica ocorrida no mundo da arte seria 1989, o início de uma “história da arte global” e serve como referência para que transformações vitais possam ser estudadas. O exemplo recorrente é o nascimento de uma arte contemporânea chinesa, ocorrido entre 1986 e 1989. As encomendas de novos museus feitas a artistas chineses pelo poder atual seriam o mais novo indício da explosão de consumo de arte na China hoje, bem como de uma nova dinâmica entre artistas, curadores e colecionadores. Por sua vez, a exposição “Magiciens de la Terre” de curadoria de Jean-Hubert Martin significa, para Belting, um divisor de águas para o pensamento curatorial, sendo a primeira exposição de “arte global”, onde peças de artesãos e obras de artistas contemporâneos foram apresentadas lado a lado, em uma edição que não respeitava o chamado “contexto histórico” de cada obra. E algo mais difuso, mas também sintomático, foi o modo como a literatura sobre arte passa a ser, a partir deste momento, não mais apenas de autoria de curadores, mas sobre curadores, ou seja, o trabalho que antes ocupava uma função mediadora passa a ser visto como o próprio objeto de atenção, tanto quanto (ou mais até) do que as obras de arte.
O “Museu Imaginário” de Malraux entra como exemplo de uma visão histórica que buscava organizar a arte de todos os tempos, ao contrário de nossa situação atual onde toda arte tem que ser “do agora”. Belting contrapõe ironicamente a visão do livro de Malraux e a ilusão de totalidade causada por qualquer bookshop de museu hoje: um museu de livros onde o globalismo se tornou visível. Aliás toda a apresentação de Belting se guia por imagens de produtos editoriais relacionados ao mundo da arte. Imagens de catálogos, livros, monografias e cartazes são marcos visuais das transformações no plano do discurso, às quais o mundo da arte tem se submetido.
A partir deste diagnóstico, Belting propõe a questão: a "história da arte" já não é importante para a "arte contemporânea"? E ainda: qual a possibilidade de recontextualização do trabalho de arte? Não ficam todos parecidos, circulando por vários museus de “arte contemporânea” ao redor do mundo? O que ocorre, segundo ele, é a globalização de uma idéia de arte, que funciona como a imagem cultural da arte.
Daí as colocações de Aracy Amaral e sua discussão com o curador alemão:
_A chamada arte global é a arte que representa pouquíssimas galerias de arte no Brasil. É possível pensar numa noção unificada da arte? Eu acho que não.
A nova geografia passa pelo poder econômico. Há alguns anos atrás ocorreu o mesmo com os japoneses. Agora é com os chineses. Trata-se do poder econômico e político imposto ao mercado de arte.
_Concordo com tudo que você disse!
_Mas você é muito europeu.
_Por quê?
_Pela ênfase que você dá às etnias. Isso mostra a atração pelo "outro". O "outro" é fantástico. E seja na Europa, seja nos Estados Unidos, nós somos os "outros". Não adianta! Nós ainda somos os "outros".
Parece mesmo que, ao tentar dar conta das transformações ao redor do globo, Belting muitas vezes se apóia em definições ligadas àquilo que já se chamou de “arte étnica” ao se referir a alguns dos agentes locais envolvidos, mas sem defender este tipo de definição. Será que o simples fato de retomar e problematizar o termo “arte étnica” representa já sua reativação? A primeira pergunta, feita por Marcelo Araújo, traz exatamente o pedido de uma definição mais clara de “arte étnica”. Belting responde:
_Todos os estes termos eu uso entre aspas. Os termos nunca são auto-explicativos. “Arte étnica” antigamente era a arte do “outro”, em relação à “arte européia moderna”. Não quero justificar o termo, que é uma herança dos tempos coloniais. No meu ponto de vista os termos são algo móvel e perecível. Eles não caem do céu.
Contudo, por mais que Belting problematize, fica evidente sua preocupação, aliás, seu esforço em construir novos termos que representem novas referências para o discurso teórico, como “arte global”. Se os termos erodem, o trabalho para substituí-los por outros faz parte da disputa de poder intrínseca ao campo discursivo. E, como ficou claro a partir das questões colocadas pelos participantes do debate, é neste campo que é travada a batalha descrita por Belting. Afinal, a globalização funciona como um discurso que tem por estratégia colar-se ao plano econômico a fim de realizar seu projeto de hegemonia, baseada em sua capacidade de se autoprofetizar como a única certeza pertencente ao futuro. Por isso a proposta de Belting merece alguma oposição inicial: o termo “global” tem sido positivado há tempo demais para que funcione como parte de uma estratégia de problematização. O que não quer dizer, evidentemente, que o termo “arte contemporânea” não seja ideologicamente menos carregado do que qualquer outro. “Contemporâneo”, afinal, talvez tenha se transformado em um valor universalmente mais hegemônico do que termos como “globalizado” ou “global”.
Se não me engano, Aracy Amaral já não estava presente durante a segunda mesa, que contava com Ivo Mesquita, Laymert Garcia dos Santos e Jens Baumgarten. No entanto, a discussão sobre identidade e a formação do conceito de “outro” se desenvolveu e possibilidades de transposição daqueles questionamentos me pareciam pertinentes. Tomando emprestado o ponto de vista de Aracy, o que significaria ser “muito latino americano”, ou "muito brasileiro"?
A fala de Ivo Mesquita ajuda a reposicionar a pergunta. Para ele, faz parte mesmo de nossa identidade um constante questionamento acerca de nosso pertencimento, ou seja, uma identidade que se funda na dúvida, na ocupação de um lugar intermediário. Como ele mesmo diz, na terceira margem do rio.
De certa forma, uma colocação feita por Ana Letícia Fialho na mesa anterior já antecipava esta questão. Ela apontava justamente para a localização questionável da América Latina como parte integrante do que Belting havia chamado de Ocidente.
Interessante também a menção por Ivo Mesquita do papel histórico de Portugal, fundamental para a compreensão de nossa fortuna local, como agentes de uma globalização primeira, ao transformarem o mundo pelo língua, plantando e deslocando termos mundo afora, e pela botânica, repatriando elementos de paisagens distantes entre si. Indo além, ele lembra que a transferência do reino para o Brasil é vanguarda de uma situação pós-colonial e de como a fundação identitária do Brasil está ligada ao internacionalismo de um movimento como o barroco. Neste sentido vale mesmo questionar o museu e seu novo papel, mas lembrando que o museu enquanto instituição baseada na república também se trata de algo transposto para cá, ou seja, ocupamos posição peculiar em relação a estes movimentos internacionais. Assim, se este movimento culturalmente contagioso corrói uma idéia de arte talvez muito idealizada, qual então a importância da manutenção deste conceito? Complementar a esta pergunta, um questionamento mais específico é colocado: “surpreendente é ver como a China utiliza padrões e princípios da arte ocidental baseados na idéia de humanismo, estando politicamente tão distante deste humanismo enquanto princípio”.
Neste ponto do debate, Laymert Garcia dos Santos faz uma analogia com a produção atual das populações indígenas e sua apropriação de novas tecnologias. Novamente a questão do outro (os índios ainda são "o outro" para os brasileiros?).
Faz-me lembrar o primeiro relato que fiz para este fórum, de uma palestra do indianista José Carlos Meireles sobre grupos indígenas em situação de isolamento. Havia ali algo precioso para se pensar a situação global. A mera existência destes grupos poderia parecer uma possibilidade de isolamento enquanto resistência. Contudo não se tratava de um real isolamento econômico. A movimentação pelo território dos grupos isolados mantinha conexão direta com as possibilidades de exploração de recursos da mata, recursos que eram disputados com os seringueiros.
Não deixa de ser sintomática a inserção das populações indígenas neste debate. Estas ainda funcionam como ícone do primitivo às voltas com o progresso enquanto condição transformadora sempre iminente. A recuperação, por Laymert, da questão “tupi or not tupi” é pertinente: mesmo ao apropriar-se da imagem do antropófago, Oswald revelava a condição intermediária de que falou Ivo Mesquita. A identidade pode se realizar como preço para quem transita entre culturas. E é preciso cuidado para não empobrecê-las pela comparação mais imediata.
Baumgarten concorda que o “entre” faz parte da historiografia brasileira. Narra algo que presenciara em uma livraria de Toronto como ilustração para retomar um ponto da discussão presente na fala de Belting: o papel das livrarias de museu na construção de imaginário e na organização de categorias. Sem ter encontrado nenhum livro de “arte brasileira”, pergunta sobre o assunto ao livreiro, que lhe indica a prateleira de “arte étnica”. Explorando a sessão, encontra publicações referentes ao modernismo brasileiro. Novamente as publicações sobre arte aparecem como marcos culturais de discursos em transformação e dos dilemas surgidos quando da reorganização dos arquivos (museus ou prateleiras): como reordenar as categorias para a arte? Como renomear os fichários necessários para a construção de uma visão histórica?
O debate ocorrido ao longo do dia pôde desvendar bastante das dinâmicas atuais a que está sujeito o campo da arte, mas por meio de uma análise cultural próxima da antropologia: a questão do eurocentrismo, e sua relação com o outro, a questão da linguagem como forma identitária, as movimentações macroeconômicas e suas conexões com formas sociais de expressão, etc.
No entanto, o limite de uma discussão como essa, por mais rica que seja, é que dificilmente se chega a analisar e discutir formas mais particulares, especialmente as obras de arte. Se a maioria delas hoje circula, servindo de forma mercadoria modelar para o capitalismo recente, é por não apresentarem resistência, por aderirem à lógica de circulação do mercado global, que funciona fazendo migrar seu foco de exploração, de cultura para cultura, e criando para elas novos mercados demandantes.
Por isso, o poema de W.C.Williams, de que se apropria Alfredo Jaar, me parecia muito promissor como abertura de uma apresentação que se propunha a relacionar arte e mundo globalizado, por apontar, a meu ver, para a necessidade de um olhar mais atento à forma e ao que ela contém enquanto possibilidade de apropriação do real.
it is difficult
to get the news
from poems
yet men die miserably
every day
for lack
of what is found
there
"Asphodel, That Greeny Flower", W.C.Williams