Relato Geral

Relato geral Por Beto Shwafaty

“O simpósio da 30a Bienal de São Paulo – Iminência [1] das Poéticas [2] – busca trazer problemas e questionamentos acerca do motivo da exposição, com a intenção de dar lugar a perguntas fundamentais que motivaram a curadoria.”

 

O trecho acima citado, apesar de bem colocado no material de apresentação do simpósio, se mostrou de difícil acompanhamento para o público. Mesmo que as apresentações tenham colocado interessantes pontos de reflexão, estas oscilaram em termos de precisão e conexão, pois ora focavam em artistas específcios desta Bienal (como por exemplo Xu Bing, Fernand Deligny ou Ian Hamilton Finlay), e ora buscavam problematizar os temas e conceitos do projeto curatorial. Por vezes, as abordagens trazidas pelas apresentações convergaim apenas em certas afinidades (amplas e temáticas), fato que as desarticulava enquanto conjuntos de reflexão, configurando assim quasi-monólogos ao invés de conversas ou debates. Existiu uma certa consistência nas questões que emergiram, mas estas tornavam-se claras apenas quando eram reelaboradas e alinhavadas ao final das mesas, de modo perspicaz e eficiente, pelo curador Luís Perez-Oramas. A mediação é de fato um dos papéis e responsabilidades inerentes à curadoria, mas ali, nos pareceu demasiadamente centralizada na figura do curador.

No transcorrer do simpósio, sentimos uma oscilação de velocidades: ora um tempo dilatado, ora dinâmicas que quase atropelavam a necessidade de um outro tempo para as densas reflexões propostas. Restavam sempre poucos minutos para perguntas, sempre sob a pressão iminente do controle do relógio (do tempo-evento), ou pior, do fechamento do teatro.  O mote (arquitetônico-moderno) less is more poderia ter sido de auxílio, dada a necessidade de maior espaço-tempo para o desenvolvimento pleno dos assuntos levantados. E nesse sentido, esse espaço-tempo diferenciado geraria um outro tipo de acesso ao público [3], que resultaria certamente em diálogos mais abertos e claros acerca dos conceitos e assuntos que nortearam esta densa 30a edição da Bienal de São Paulo.

Assim, aqueles que esperavam por desdobramentos filosóficos e teóricos claros a respeito dos conceitos curatoriais empregados na mostra, saíram provavelmente desapontados desses intensos três dias de simpósio. Nem o conceito de iminência, quanto o de poética, tornaram-se mais palpáveis (como também não ocorreu em relação à outros termos utilizados pela curadoria, como por exemplo em relação aos concetios ‘constelações’ e ‘vozes’). O projeto curatorial perdeu, neste sentido, a oportunidade de criar correlações teóricas, práticas e conceituais que pudessem fornecer ferramentas de fruição mais autônomas ao público. Um tom hermético permeou muitas das apresentações, dificultando em muitos dos casos a elaboração de perguntas pela platéia.

A sensação que se instaurou durante o simpósio remetia certamente à uma noção de ‘constelações de saberes’. Porém, quando estes ligam-se à produção de novas idéias e universos particulares, e são articulados por signos e formas visuais diversas – e não discursivas, como em muitas obras desta Bienal – o acesso do público aos intrincados discursos propostos torna-se, no mínimo, um desafio. E esta observação é pertinente pois, tanto no simpósio quanto o projeto desta Bienal, era cara a noção de constelações de conhecimentos: noção ligada à atos que por vezes precedem a palavra mas que, ao mesmo tempo, embasam uma pulsão comunicacional primordial. Porém, para desdobrar estas noções à um público mais amplo, seria necessário um outro registro e articulação que permitissem delinear formas e focos mais nítidos. Nesse momento público de reflexão em que se constitui o simpósio, tal noção poderia ter sido partilhada e mediada de modos talvez mais simples, e não tão autônomos em relação aos conceitos curatoriais.

Mais inclinada a articular coleções do que questionar (ou reorganizar) arquivos; mais poética e lírica do que política; correndo menos riscos e apostando em uma maior modéstia (uma aposta talvez em um de-growing do espetáculo de arte bi-anual?), todas estas são características a serem observadas nesta Bienal. Mas estas, não foram trazidas à tona ou tocadas pelo simpósio. Julgá-las pode ser ainda precipitado, mas refletir sobre estas certamente não.

Os métodos elaborados por Fernand Deligny [4] certamente teriam fornecido um maior campo de experimentação e riscos ao simpósio (e mesmo à proposta da Bienal). Como uma babel de imagens, a Bienal expõem conjuntos intrincados de textos, vozes, personagens, objetos e constelações. O evento conforma assim, universos ricos e subjetivos mas que correm o risco de também serem auto-referênciais: mesmo quando estes são decodificados, abrem novos campos e outros universos, particulares e subjetivos por sua vez; multiplicando então os graus de intelegibilidade. Um movimento em espiral, um eterno retorno, o trauma, a perda da fala, a recorrência de imagens, os vestígios, o suporte a outras linguagens, velocidades – todos elementos de uma contemporaneidade que, em sua iminência, nos encanta ao mesmo passo que nos assombra. Este me pareceu um ponto de interesse desta bienal, ao evocar a ideia de iminência. Ecos destas situações puderam ser até intuídos no simpósio, mas não forneceram aquela situação de complementaridade que espera-se destes momentos de reflexão. Por vezes, o próprio simpósio mostrou-se de difícil decodificação.

Desta forma, o simpósio não se constituiu como momento de alinhavar as diversas errâncias e derivas do projeto curatorial. Talvez um momento perdido, e não sabemos identificar bem o porquê: decorrência de um certo ar de fragilidade? Devido a uma informalidade ou espontaneidade, ao assumir que o público possa chegar facilmente às complexas especulações e divagações acadêmico-teóricas, ali condensadas em tão curto espaço de tempo? É difícil definir. Talvez o simpósio decorra, como esta Bienal, de um amplo e complexo panorama de poéticas, de formas e visões sobre a realidade, de um ver e adentrar mundos particulares (e seus assuntos); mas que em suas tonalidades poéticas, fecham-se e correm o risco de tornarem-se mudas, talvez demasiadamente autistas.

Pois, poderia então a iminência das poéticas – como emergência de um por vir de visões sobre (e para) o mundo – ser contrastada contra o peso de uma uma poética das iminências – uma forma de ver e expressar que se impõem e regula o que está, o que vem e virá? Este poderia ser definido como um dos elementos de nossa arte e nossa contemporaneidade? Uma condição de iminência (externa) que busca se impor ou disciplinar, e que se contrasta a uma poética (da antidisciplina) que só se constitui como tal quando recusa a ser dominada por aquilo que foi (anacrônismo), tornando-se assim uma manifestação atual, nova e iminente, então contemporânea. Mas é ali que pode residir a contradição, pois a resistência não escapa da iminência imposta primeiramente, apenas a transforma – e se subjuga ao final àquela força primeira, de ser sempre algo novo e iminente. Que condição existiria então para além da iminência, da necessidade deste por vir muitas vezes imposto ou inerente à nosso tempo? Como transformar essa exigência (iminente) de ser sempre novo e autêntico (e talvez poético)? Entretanto, tudo se torna fugaz, na medida em que o próprio tempo e espaço perdem-se nas constantes regulações desse loop, desse ser e estar num estado de constante iminência, de infinitas mutações semelhantes.

O projeto dessa bienal seria um momento propício para repensar o mutismo em contraste ao discursivo; rever o colecionismo (em suas formas como obsessões subjetivas e tidas por vezes como irracionais) que contrastam às forças, políticas e controles disciplinadores instaurados pelos e nos arquivos (e em suas extensões, os museus e instituições sociais similares). De fato, a resistência errante de Deligny – assim como as obsessões de Warburg – nunca pareceram tão pertinentes e necessárias a um pensamento e campo artístico-curatorial como o atual, super regulado por interesses diversos. E devemos tal constatação, da importância e reintrodução destes pensamentos (de Deligny e Warburg), ao projeto desta bienal.

Fica a dúvida se seria a ‘iminência’ um novo regime ou situação de imposição (ou  pressão) da qual não conseguimos escapar; e a poética – como forma de ver e expressar um (dentre vários) mundos – o único estado de resistência a tal situação. Soaria belo, se não corresse o risco de tornar-se messiânico.



 

[1] i.mi.nên.ci:a – qualidade de iminente; que está por vir; que ameaça acontecer em breve, proximidade. Do lat. imminentìa, ae (o que é superior, o que está próximo).

[2] A palavra poética está ligada à poesia, como uma forma de ver (e expressar) uma visão sobre a realidade e o mundo. Se este conceito envolve um processo de criação e interpretação, nas artes plásticas o termo veio a ser utilizado para representar o conjunto de idéias, conceitos e modos de fazer que fornecem uma “resposta” para os “comos e porquês” de uma determinada produção visual, intelectual e artística.

[3] Como exemplo, podemos citar o convite feito ao músico, ator e performer Antonio Nóbrega, que aliou uma demonstração performática com um discurso, criando certamente um dos pontos altos do simpósio. Ainda que sua apresentação pudesse apresentar certos risco, mostrou-se desafiadora em vista da utilização de linguagens diversas, e até inusitadas para o contexto.

[4] Escritor e pedagogo francês que integra o projeto desta Bienal. Fernand Deligny influenciou uma série de artistas e intelectuais. Seu trabalho exemplar e radical sobre o autismo teve impacto direto sobre Deleuze e Guattari na elaboração de suas teorias sobre o rizoma. François Truffaut observou suas idéias para completar o filme Les 400 Coups. Em suas pesquisas e filmes, Deligny explora as possibilidades da câmera de cinema, diagramas e outras formas de comunicação não discursivas como formas de viver e pensar o sujeito humano, em toda sua complexidade assim como em maior proximidade.