Iminências

Relato da Abertura do Seminário da 30a edição da Bienal de São Paulo, referente às apresentações de Homi Bhaba, Giovanni Careri e Peter Pál Perlbart. Por Leandro Cardoso Nerefuh

No primeiro dia do simpósio, Homi Bhabha, Giovani Careri e Peter Pál Pelbart trataram de esclarecer (ou obscurecer) um dos termos que rege essa bienal – iminências. O primeiro falando inglês, o segundo, francês e o terceiro, português. Apesar de estarem no mesmo lugar, na mesma mesa, ao mesmo tempo – a situação não foi suficiente para gerar conexão alguma entre os três palestrantes. Suas apresentações não desenvolveram uma conversa entre sí e, mesmo com o auditório lotado, não foram suficientes para gerar perguntas do público. Apesar disso, as apresentações formaram uma rede de ideias muito específica em torno da noção de iminência. Se pudéssemos representar as falas através de uma nuvem de tags, seria algo como:

Iminências por Leandro Cardoso Nerefuh

Cada qual a seu modo, os palestrantes convocaram trabalhos artísticos como meio de adentrar no tema (Iminências das Poéticas). Homi Bhabha abordou a instalação Public notice 3 do artista indiano Jitish Kallat; Giovani Careri, o afresco Juízo final de Michelangelo; e Peter Pál Pelbart, as linhas de errância de Fernand Deligny.

Preâmbulo do curador. Num portuñol simpático, Luis Pérez-Oramas enfatizou dois sentidos amplos que cabem na palavra ‘iminências’: um denominado de ‘o signo da espera’ e o outro de ‘o signo do retorno’. E reiterou que essa Bienal está marcada por esses signos. Mas, como a função do curador no simpósio residiu em   em ações de introdução, este limitou-se a dizer que a ideia de iminência, ligada à espera e ao retorno refere-se ao tempo coletivo, a dimensão imprevisível do tempo e, portanto, ao fracasso das grandes teorias. E citou brevemente (ou mesmo superficialmente) o ‘maquinismo’ e o ‘messianismo’ como grandes teorias “fracassantes”.

Seguindo adiante, Pérez-Oramas aproveitou sua própria deixa para apresentar o convidado (estrela internacional do dia), Homi Bhabha. O curador diz que foi numa conversa informal entre os dois, em Harvard – “na casa de Homi Bhabha” – que essa ideia de iminências surgiu e, a partir daí, foi se adensando até que se tornou o motivo da 30a Bienal de São Paulo.

 

HOMI BHABHA

Homi Bhabha é uma das figuras mais importantes no campo dos estudos pós-coloniais contemporâneos (de uma perspectiva anglo-saxã, of course). Assim como Gayatri Spivak, ele é parte de uma geração diaspórica que imigrou da Índia em direção às universidades do Reino Unido e dos Estados Unidos. Eu estava ansioso para escutar Homi Bhabha, na esperança que ele fosse arriscar uma baba antropofágica sobre o Brasil e talvez a América Latina (mas, talvez isso seja similar a querer que brasileiro toque samba e macaco coma banana). Mas, sua apresentação pareceu mal reciclada para o simpósio: soava pensada para outro contexto, outro público e outro momento.

Homi Bhabha respondeu à camaradagem do curador com um breve comentário sobre o significado da palavra iminência. Enquanto Pérez-Oramas relacionou ‘iminência’ com espera e retorno, Homi Bhabha acrescentou uma tentativa de relacioná-la com retraso ou retardamento (belatedness). Algo que ressurge no presente de forma tardia, mas que mesmo assim carrega um por vir, ainda não definido. Essa ideia de belatedness ou retrasamento ganha nuances complicadas no Brasil, porque tivemos/temos todo um complexo do “atraso” a tratar, de modernidade tardia, por exemplo (Peter Pal Pelbart também tocou nesse ponto).

Após essa breve introdução, Homi Bhabha passou ao seu “paper” propriamente dito, debruçando-se quase integralmente sobre a obra do artista indiano Jitish Kallat, Public Notice, e em especial Public Notice 3, instalada no Instituto de Arte de Chicago durante um ano (2010-2011) [1].

 

img_public notice 3:

http://www.artic.edu/aic/resources/search-resources/results?related_artist=Kallat

 

Vimos imagens projetadas enquanto nosso convidado explicava que a instalação retoma o discurso de Swami Vivekananda, um dos patriarcas da independência indiana, realizado naquele mesmo prédio na ocasião do primeiro World’s Parliament of Religions, em onze de setembro de 1893. O discurso de Vivekananda é arranjado em telas LED nos entre-degraus da grande escadaria, seguindo uma codificação de cores que remete àquela usada pelo departamento de segurança interna dos EUA para indicar níveis de risco relativos à ameaças de terrorismo. Reproduzindo a explicação do próprio Kallat, Homi Bhabha justificou que o trabalho opera um cruzamento de datas simbólicas: o onze de setembro de 1893 -– discurso de Vivekananda sobre tolerância e religiosidade; e o onze de setembro de 2001 – derrubada das torres gêmeas.

Podemos aceitar que Homi Bhabha havia sido convocado para falar sobre essa obra in situ, no Instituto de Arte de Chicago, e decidiu aproveitar o material para o simpósio da Bienal, dois anos mais tarde. Nada contra comida requentada. Mas, sua fala só ficou mais interessante quando o palestrante deixou de lado o filtro do artista Jitish Kallat e ensaiou uma crítica ao discurso de Vivekananda [2]. Homi Bhabha denunciou um certo ‘suprematismo hindu’ que transparece na teologia política de Vivekananda. Ele chamou atenção para o emprego da palavra remnant (remanescente) no discurso. Mais especificamente, questionou o emprego dessa palavra para identificar algumas minorias culturais/religiosas na Índia, que seriam remanescentes de grandes seitas antigas que, incapazes de reformular suas próprias nações, teriam sido “absorvidas no imenso corpo da fé hindu”.

Remnant ou remanescente é um tema recorrente na bíblia cristã e hebraica e significa: o que sobrou de uma comunidade após uma catástrofe; um pequeno grupo de sobreviventes; traços ou vestígios restantes. Esta noção pode ser relacionada com memória (fragmentaria, em traços, em vestígios), com o registro dessa memória (como é carregada pela tradição oral, escrita, artesanato, inscrições, etc. – coisas que falam) e com sua articulação no presente. Uma relação com o passado que contem algo de presente e de futuro, iminentes.

Na sua função de crítico de arte, Homi Bhabha superestimou a obra de Jitish Kallat, fato que tomou grande parte de sua apresentação. Assim, pouco tempo restou para o desenvolvimento dessas linhas conceituais-filosóficas ensaiadas por ele, que teriam sido certamente mais proveitosas.

 

GIOVANI CARERI

Giovani Careri foi introduzido por Péres-Oramas como “um amigo de longa data e historiador de arte dos grandes mestres”. Ao melhor estilo de aula de Historia da Arte, com direito a apontador laser e tudo, Careri apresentou parte de sua pesquisa sobre a questão da espera nas figuras do Juízo Final no afresco na Capela Sistina, em Roma, pintado por Michelangelo entre 1536 e 1541.

O argumento principal da fala foi que o imenso afresco do juízo final é um dispositivo que produz uma precipitação da história no presente. Mas que esse presente está ainda (e sempre) por vir. Assim, logo de partida, a noção de iminência se fez inseparável de uma temporalidade escatológica, contrariando diretamente o que Péres-Oramas tinha anunciado no princípio da sessão como o “fracasso de grandes teorias messiânicas”. Se para o curador da Bienal a espera e o retorno estão ligados à “imprevisibilidade do tempo”; para o palestrante da vez a espera e o retorno estão ligados justamente à previsibilidade do fim. Nada menos que o fim dos tempos, seja iminente.

Para confundir “iminência” e “messianismo” ainda mais, Careri destacou a “fundação cristã da noção de iminência”, traduzida na distância entre o tempo de anúncio e o tempo de realização (uma distância-tempo). E, seguindo essa linha, argumentou que a Capela Sistina se presta para a construção do tempo e do sense (sentido, significado e ambientação) da historia cristã. Entrar na Capela Sistina significa estar imerso nessa experiência complexa de temporalidade.

“O juízo final é o momento a partir do qual a história da humanidade passa a fazer sentido [faire sense] e isso implica a catástrofe como ponto de vista [ou perspectiva ou horizonte temporal]” diz o palestrante. Essa sua reflexão está associada à concepção de historia de Walter Benjamin, que tem como alegoria principal o ‘anjo da história’.

Essa passagem sobre o anjo da história de Benjamin se tornou tão corrente nos estudos culturais que Careri sequer explica o que ele quer dizer com tal citação (ou o que ele acha que Benjamin quis dizer com esta passagem), supondo todos a conheçam. Nesta metáfora criada por Benjamim, o anjo da história tem o rosto virado para o passado e as costas para o futuro. Onde vemos uma cadeia de acontecimentos, o anjo vê apenas uma única catástrofe que continua a amontoar escombros. O anjo, que está flutuando de asas abertas, gostaria de ficar e resolver essa confusão (do passado que ele vê). Mas uma tempestade que sopra do Paraíso atinge suas asas abertas e lança-o para o futuro, que está às suas costas, enquanto a pilha de escombros continua a crescer. Benjamin diz que essa tempestade é o que chamamos de progresso” [3].

Careri destaca a figura de uma velha senhora na capela, a quem ele chama de ‘sibile da historia’ – análoga ao ‘anjo da historia’ [4] – porque ela está a ponto de proferir a profecia; aquilo que irá acontecer aos homens[5]. Nesse gesto iminente de sibile, a representação está mise en reserve. “O poder de fazer é duplo – poder de condenar e poder de salvar – e se encontra no limite do regime representativo. A  representação da iminência se constitui como um limite da historia humana; precipita o fim”. Em um instante, todo o passado será reunido no momento do juízo final.

Nesse cenário de juízo final, todo o sentido narrativo da historia é acelerado em direção ao fim e marcado pela espera (de salvação ou destruição). De qualquer maneira, a agência humana parece ser sequestrada. Ninguém mais é atuante ou só pode ser um atuante dissidente, um atuante da exaustão (ou algo similar). O retardatário, o delay, retarda o cumprimento [6].

Careri deu um salto no tempo e nos proveu com outra imagem-metáfora. Na peça Esperando Godot, de Samuel Becket, dois homens esperam ansiosamente e em vão a chegada de um outro chamado Godot. O palestrante equipara esses homens com algumas das figuras secundárias no afresco de Michelangelo, que também esperam em vão. E aqui, finalmente, encontramos uma fresta de ar fresco (na capela e na palestra). Enquanto esperam, as personagens de Becket se entretêm com o absurdo, jogando, cantando, conversando, dormindo, trapaceando. Essa qualidade de expressão produzida na espera por Godot pode ser tanto uma forma de indiferença quanto de resistência. Talvez nesta direção possamos diferenciar o que é messianismo (curatorial) e o que resta; o que é remanescente como potência/iminência poética nesse cenário de esperas e suspensões.

 

PETER PÁL PELBART

Peter Pál Pelbart apresentou ‘algumas variações visíveis da iminência', privilegiando o cinema e linhas de errância (deriva, desenho e o meio fílmico) em suas funções de meio, técnica e transporte capazes de produzir escapes, variações e desvios.

Seguindo sempre Gilles Deleuze [7], o palestrante fala de cinema como aquilo que faz nascer o pensamento. E até mesmo um corpo. Ou seja, na sua capacidade de fazer nascer um outro corpo, virtual e nervoso, o cinema exerce também a tarefa de restituir o discurso ao corpo. O cinema como mobilização do pensamento, do tempo, da memória, do passado. E o pensamento como ato sempre nascendo, sempre vindo (iminente). Pál Pelbart defendeu o cinema como um tempo-espaço no qual se experimenta com o impossível e o impensável. Um desvio que no entanto é pertencente a esse mundo e requerente de uma crença nesse mundo (e não em outros). Fazer cinema seria então filmar essa crença.

Fernand Deligny, um dos (não)artistas dessa Bienal, fez essa espécie de cinema. E também fotos, desenhos, mapas e linhas de errância que registravam a perambulação de crianças autistas vivendo em comunidade, no interior da França. Peter Pál Pelbart pensa as linhas de errância de Deligny e seus autistas como uma meditacão sobre “o que seria um mundo anterior à linguagem ou ao sujeito, regido por outra coisa”. Para Gilles Deleuze e Felix Guattari:

"Fernand Deligny transcreve as linhas e trajetos das crianças autistas, faz mapas: distingue cuidadosamente as 'linhas de errância' e as 'linhas costumeiras'. E isso não vale somente para os passeios, há também mapas de percepções, mapas de gestos (cozinhar ou recolher madeira), com gestos costumeiros e gestos erráticos. O mesmo para a linguagem, se existir uma. Fernand Deligny abriu suas linhas de escrita para linhas de vida. E constantemente as linhas se cruzam, se superpõem por um instante, se seguem por um certo tempo" [8].

Peter Pál Pelbart se inspira na filosofia rizomática de Deleuze e Guattari que se inspiraram nas linhas errantes de Deligny. E, de idéias compartilhadas, emerge a imagem de uma rede, uma teia ou mesmo um emaranhado composto de linhas mais duras e reguladores (linhas de controle) e outras linhas flutuantes e de fuga (linhas de errância). Pode-se dizer que essa rede é o ambiente em que atuamos.

Para o palestrante, a anormalidade e disfuncionalidade dos “autistas de Deligny” [9] abrem brecha para a indeterminação no sujeito. É por este caminho que ele propõe a instauração de uma vida como esboço. Vida-projeto: “uma arte de viver que atravessa hesitações e corre o risco de sucumbir antes de vingar [...] talhar na própria matéria da existência uma virtualidade em processo de instauração”.

Saltando para outra espécie de linha de errância, o palestrante destacou o desastre, ou melhor, a escritura do desastre, conforme elaborada pelo ensaísta francês Maurice Blanchot. Blanchot teorizou o desastre como o reino da pura queda (chute). Na palestra de Giovania Careri, essa queda seria a expulsão do paraíso, de acordo com uma temporalidade escatológica. Já para Peter Pál Pelbart, a queda é o contratempo, a desordem nômade. Isto quer dizer que já não se gravita em torno de um centro que possibilita a formação de uma exterioridade sem centro (o extravio).

Traçar linhas de errância – seja no cinema, no desenho ou na deriva – significa planejar a retirada. Escapar da “nossa maneira de medir o tempo” – tempo seta do progresso, tempo escatológico, tempo linha, tempo círculo, tempo racional, tempo laboral. Para concluir, Peter tratou de incitar o acontecimento que se dá no entre-tempo, na espera e na reserva. Não o cronos funcional e sim o aion. O tempo sem medida. O tempo de algo que vai suceder, e de algo, que acabou de acontecer.

 


 

[1] http://www.artic.edu/exhibition/jitish-kallat-public-notice-3

[2] Leia aqui o discurso de Vivekananda: http://www.artic.edu/aic/collections/resource/1082

[3] Essa passagem pode ser encontrada na IX Tese sobre o Conceito de Historia de Walter Benjamin.

[4] Só ignora que o “anjo” de Benjamin está mergulhado em misticismo judaico, num momento crítico de perseguição aos judeus pela Europa. Mas talvez essa seja uma outra historia.

[5] O palestrante enfatizou também a conexão entre o seio à mostra e a profecia (o que deixou algumas mulheres irritadas). O seio, que normalmente representa abundância, está murcho, velho e esvaziado. Essa sibile parece não ter mais o que proferir. Algo que o palestrante interpretou como a “posição paradoxal de profeta do passado”.

[6] Apesar da intrigante conexão entre essa idéia do retardatário, na apresentação de Careri, e a noção de belatedness (retrasamento) apresentada por Homi Bhabha, não surgiram discussões sobre esses pontos.

[7] Pete Pál Pelbart mencionou e citou das obras Cinema 1: imagem-movimento e Cinema 2: imagem-tempo, de Gilles Deleuze.

[8] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1996, pp.77. Com essa breve citação, já nos damos conta de quão importante foi o trabalho de Fernand Deligny e sua concepção de linhas de errância para o desenvolvimento do pensamento rizomático de Gilles Deleuze e Felix Guattari.

[9] E talvez também da trupe de teatro Ueinzz, formada por usuários de saúde mental na cidade de São Paulo e coordenada por Peter Pál Pelbart.