Arte contemporânea: disciplina e antidisciplina
A mesa “Arte contemporânea: disciplina e antidisciplina” reuniu os palestrantes Stephen Bann, que abordou a trajetória do artista Ian Hamilton Finlay (e sua prática que flutua entre a poesia e as artes plásticas); o filósofo Nelson Brissac que, a propósito de seu projeto “Canteiro de Operações”, apresentou questões sobre os impasses da arte urbana; e também a professora de arte contemporânea na Universidade Complutense de Madri, Estrella de Diego, que descreveu concepções criativas de tempo e espaço dentro de construções narrativas.
O primeiro convidado, Stephen Bann, falou sobre o trabalho do artista nascido nas Bahamas e radicado na Escócia Ian Hamilton Finlay, participante da 30 Bienal de São Paulo. Em sua palestra, intitulada "Poéticas além da disciplina", pudemos conhecer mais do início da trajetória do artista, uma vez que Bann e Finlay conviveram e trabalharam juntos desde os anos 60, quando o primeiro organizava edições de poesia concreta na Inglaterra.
As artes visuais foram um desdobramento do trabalho de Finlay com a poesia. Nos anos 60, o artista participou ativamente da cena de poesia concreta, publicando principalmente através de sua editora Wild Hawthorn Press. Stephen Bann aponta o trabalho “Wave/Rock” (1966), como fundamental para entender o movimento de migração da poesia para a escultura. As palavras "wave" e "glass" gravadas no vidro evidenciam a importância da palavra, usada em outros materiais que não o papel. Antes disso, Finlay utilizava principalmente máquinas Olivetti ou mesmo Letraset para dar forma aos seus poemas, na tentativa de levar a palavra a um outro estatuto. Bann aponta que mudar a técnica é também mudar a poética: um afeta o outro. Ele traz aqui um trecho de uma fala de Finlay:
“if one is going to see language as being meaning plus visual experience, the obvious step is to realize letters in material forms where the visual aspect is obvious. So I want to work in glass and stone. This means, cooperating with people who work in those fields, because the time has come when concrete poetry should have much higher standards of realization than it has had in the past” (em uma carta de novembro de 1966 para o escultor Henry Clyne).
Bann atualmente também é um dos trustees do Little Sparta Garden, localizado perto de Edimburgo, um jardim criado por Finlay que abriga alguns de seus trabalhos em meio a vegetação – iniciativa considerada como o maior projeto do artista. Para concluir sua fala, Bann mostrou um filme com registros sobre o jardim na época de sua criação. Mesmo após a morte do artista em 2006, Little Sparta continua aberto à visitação pública.
Voltando para a cidade de São Paulo, o filósofo Nelson Brissac apresentou o projeto “Canteiro de Operações”, que realiza atualmente ao lado do artista José Resende e da engenheira Heloísa Maringoni. O projeto, selecionado no edital “Arte na Cidade” da Prefeitura de São Paulo, passa por alguns obstáculos, esmiuçados nesta fala de Brissac.
Brissac menciona uma “zona cinza” na qual os trabalhos de arte passam quando saem do espaço expositivo para o espaço urbano, onde problemas de outras ordens são inevitáveis e seus efeitos muitas vezes “escapam do controle”. O artista – e a arte – é colocado a prova, especialmente quando precisa lidar com questões complexas da cidade, como é o caso do projeto “Canteiro de Operações”. Neste projeto, busca-se trabalhar com alguns dos cerca de 40.000 vagões de trem abandonados existentes na cidade de São Paulo (alguns encontrados até mesmo dentro de mananciais), o que evidencia a escala de um verdadeiro colapso ambiental em andamento.
Robert Smithson, "King Kong meets the Gem of Egypt", 1972.
O processo de ‘desindustrialização’ da cidade de São Paulo gerou grandes áreas abandonadas, como a malha ferroviária que fazia a ligação entre o interior e o porto de Santos (e é valido lembrar que o transporte de cargas passa agora pelo mesmo caminho do transporte de passageiros). Neste momento, uma grande faixa de terreno que vai do Bairro da Água Branca até o Ipiranga esta prestes a ser liberada para a cidade, apresentando o risco de ser absorvida pelo mercado imobiliário sem qualquer planejamento urbano. No projeto de Brissac, Rezende e Maringoni, a arte participa no debate sobre o destino da cidade.
Os vagões que sobraram neste terreno fazem parte do espólio estadual do Governo de São Paulo e serão leiloados. Brissac observa que a siderúrgica Gerdal compra e recicla cerca de 300 toneladas de metais por dia na cidade, e a intervenção deste projeto é justamente em meio a este processo de desmontagem dos vagões para sua posterior reciclagem: a proposta do trabalho de Rezende é realizar intervenções – utilizando, por exemplo, areia de terrenos vizinhos – para realizar jogos de equilíbrio e contrapeso com os vagões, içar outros com guindastes ou cobrir quilômetros de vagões com tela. Apesar do apoio do Estado, da Prefeitura e da própria Gerdal, o projeto está emperrado, pois a empresa que recolhe os vagões e entrega para a Gerdal não realiza sua parte com eficiência, causando justamente o acúmulo desses trens abandonados. Ou seja, ‘indiretamente’, o projeto acaba chamando a atenção para esta situação ao evidenciar a ineficiência do serviço, o que gerou um obstáculo político bem maior do que a vontade de ter obras públicas na cidade.
A terceira palestra foi da professora espanhola Estrella de Diego. Ela teceu uma construção lírica e erudita que tem como eixo artistas e obras de origens díspares, mas todos orbitando ao redor do conceito de iminência. Temos, por exemplo, “As Mil e Uma Noites”, Cy Twombly, digressões sobre uma fotografia do arqueólogo britânico Sir Charles Leonard Woolley encarando uma estatueta arqueológica em Ur, passagens sobre a leitura de Michel Foucault sobre “As Meninas” de Velázquez, Jacques Lacan e, finalmente, Derrida.
Leonard Wooley durante escavação em Ur.
Para Estrella, a arte contemporânea livrou-se de toda uma carga teórica estanque e pôde, então, abrir-se para a liberdade e a indisciplina, porém, ainda assim, ressente-se de explicações. No caso da descrição da foto de Leonard Woolley, onde o arqueólogo aparece limpando uma escultura que acabara de encontrar, Estrella de Diego traça um pequeno jogo poético sobre o que se busca e a relação com o que está prestes a acontecer: neste caso, o encontro entre duas histórias e dois momentos históricos. Estrella também aproxima o imprevisível e o intempestivo às histórias de Shérazade, pela perturbação desses encontros, esperados e inesperados, que nos mantém aguardando por um próximo relato. O mundo infinito onde uma história nos leva apenas a outra história, como na pintura de Velázquez e, como colocado em um momento da palestra, a iminência como momento em que algo está na ponta da língua e de repente desaparece, uma posição incômoda. Analisando a fotografia de Wolley, Estrella pergunta: Quem vem do passado e quem vem do futuro? O homem ou a estátua?
Se nesta fotografia residem todos esses estratos de tempo, em “As Meninas” temos diferentes espaços: há a instabilidade entre o eu e o outro, como nas análises de Jacques Lacan sobre o estado de espelho. Ou, ainda, de Michel Foucault, que descreve o quanto não nos sentimos seguros diante dessa pintura, pois mesmo o artista espanhol abandonou seu lugar nela. Estrella continua a análise dessas relações de determinação de espaços e papéis entre o espaço do espectador e do trabalho artístico, abordando outras obras, como a série de fotos de Thomas Struth no Museu do Prado.
Estrella continua sobre a indeterminação com a obra de Tacita Dean, vendo aqui uma busca por relatos, por pequenas histórias, junto à uma consciência da extinção daquilo que se gostaria de narrar. Há uma relação de indeterminância: o discurso da iminência, daquilo que está sempre prestes a acontecer. Aquilo que foge pelas bordas, que se deseja, que se nomeia, mas que ao mesmo tempo se extingue - como o que ocorre na poesia. Estrella cita uma constelação de artistas e autores, como Cy Twombly, Merce Cunninghan, Leo Steinberg (entre outros), descrevendo iminências formais e semânticas em diversos trabalhos artísticos, nos quais o artista aparece sempre como uma espécie de estrangeiro à própria criação. Ela discorreu de forma mais específica, a respeito desse conceito “de estrangeiro”, no final da palestra: estrangeiro é justamente este encontro entre outros tempos e espaços, outras narrativas (voltando à foto de Wolley na escavação em Ur).
E é também o encontro entre o próximo e o distante, quando podemos abrir a porta ou fechá-la, nos levando a pensar, então, na idéia de hospitalidade, sobre a qual Jacques Derrida dedicaria alguns textos do final de sua trajetória intelectual. Quando somos os anfitriões nos abrimos às perguntas do estrangeiro, perguntas que podem, porém, demonstrar nossa vulnerabilidade... perguntas impertinentes, pois nos fazem questionar nossas posições, que podem colocar em dúvida nossos sistemas e implicam em sua transgressão. Devemos também exigir ao estrangeiro compreender-nos? Derrida nos sugere a abertura completa ao “Outro Absoluto” e àquilo ao que não temos referência, a nos abrirmos sem perguntas, nem sequer às perguntas essencialmente poéticas como as propostas por esta Bienal.