Arquivar o futuro, Leandro Cardoso Nerefuh
Essa última sessão convocou os palestrantes Suely Rolnik, Pilar Garcia e Jaime Reyes, nessa ordem, para falar sobre o que o curador Luis Perez-Oramas chamou de “a primazia do arquivo em muitas práticas de arte contemporânea [...] uma febre de arquivo (Derrida) e uma mania de arquivo (como fala Suely)”. Nesse relato, vou me ater à fala de Suely Rolnik, por essa ter funcionado como uma linha conceitual condutora da sessão que contextualizou as apresentações que seguiram, as quais exemplificavam casos de usos específicos de arquivos: como o arquivo do Museu Universitário de Arte Contemporânea na Cidade do México, apresentado por Pilar Garcia; e o arquivo histórico José Vial Armstrong da Escola de Arquitetura e Desenho de Valparaíso, Chile, apresentado por Jaime Reyes. Portanto, começarei (e de certa forma concluirei) com a apresentação de Suely Rolnik, intitulada Arquivo Mania.
A apresentação de Suely Rolnik, como ela mesmo anunciou, foi uma revisão e resumo de seu texto para o catálogo da Documenta 13, realizada esse ano em Kassel, Alemanha. Rolnik começou falando do crescente interesse por arquivos no mundo da arte: arquivos como novos objetos de desejo. Sejam arquivos pré-existentes ou a serem construídos, que se tornam objetos-fetiche do interesse de museus e também de colecionadores privados (acrescentaria aqui pesquisadores, curadores, arquivistas, artistas e herdeiros) que disputam o domínio sobre os arquivos, considerados preciosos recursos em potencial – e por esse motivo seriam assim, iminentes?
Suely Rolnik chamou atenção para “o assunto seríssimo” relativo aos arquivos do Brasil e da América Latina que estão ‘escapulindo’ para instituições estrangeiras. E, considerando esse atual contexto de caça a arquivos de arte, ela nos pergunta: que tipo de práticas artísticas, que tipo de poéticas estão sendo inventariadas? Em que consiste inventariar poéticas, diferentemente de inventariar objetos? Que situação engendra esse furor de arquivar? Que políticas de desejo geram isso?
Segundo a palestrante, essa ânsia por arquivos dirige-se a um objeto privilegiado: a arte dos anos 60 e 70. Suely defende que, naquela época, ocorreram verdadeiros “deslocamentos tectônicos no regime da arte mundial”. Momento de crítica institucional em que artistas tomaram o próprio meio da arte como alvo de suas investigações e passaram a explicitar e a problematizar este meio como o “nervo central de sua poética” [1]. Mais especificamente, ela aponta para uma cobiça bastante localizada, dirigida a arquivos que abarcam práticas artísticas desenvolvidas na América Latina sob os regimes militares. Práticas que, apesar de suas singularidades, têm um caráter político como denominador comum. E é exatamente esse caráter político que gera um “equívoco nem um pouco inofensivo” na interpretação canônica da arte latino-americana daquele período.
Ao passo que Suely Rolnik enfatiza que as práticas mais contundentes do período não eram de “arte engajada” (de militância ideológica), ela reconhece que foi precisamente através dessa lente que aquelas práticas foram diferenciadas, ou melhor, colocadas de escanteio como “arte política” ou “arte ideológica” por uma historiografia da arte conceitual norte-ocidental. Uma operação que ela chama de “equivoco tóxico da historia oficial da arte”.
Tomando os anos 1960 e 1970 na América Latina como ponto de partida, Suely cartografa uma espécie de genealogia do trauma, apontando um “recalque colonial” – presente há pelo menos três séculos – que carrega índios, africanos e judárabes emigrados. Um trauma que impregnou a formação de vários países latino-americanos, e aqui ela se apoia na sua experiência de psicanalista para enfatizar que os traumas de classe e de raça são os mais difíceis de serem superados e os mais recorrentes até hoje, pois acontecem e repetem-se diariamente.
A palestrante argumenta que o objeto tanto do recalque colonial como da repressão ditatorial é “o corpo em sua condição de vivo”. Mas que, por outro lado, as formas de controle hoje não operam mais através do recalque. Ao contrário, incorporam o trabalho de criação como fonte do capitalismo cognitivo – que se apresenta como uma espécie de "paraíso terrestre de consumo e promessa de apaziguamento instantâneo". Assim, a palestrante liga três momentos de interrupção e recalque: colonial, militar e neoliberal.
Seguindo a linha condutora da apresentação, concluímos que essa ativação do desejo, de que fala Suely Rolnik, era algo que estava acontecendo (ou por acontecer, na iminência?) nos anos 1960 e 1970, e que os regimes totalitários cortaram esse barato de forma brutal. Mas, mesmo assim, ali (nos arquivos) pode estar guardada, soterrada, inscrita, criptografada, essa potência descolonizadora, em forma germinal e virótica [2].
É nesse panorama que Rolnik identifica um embate de forças complicado na arquivomania contemporânea. Ao mesmo tempo em que muita gente vem se esforçando para vasculhar novamente os arquivos artísticos, e de novas formas, a fim de reativar a potência poética-política ali guardada, esquecida e/ou escondida – algo que parece estar apenas recomeçando – acontece também um aprisionamento dessa pulsão, só que "agora com requintes do mercado da arte contemporânea".
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As apresentações que seguiram serviram como 'estudos de casos de sucesso' de arquivos de arte organizados por universidades na América Latina.
De maneira muito pragmática, Pilar Garcia apresentou o trabalho que tem feito, desde a criação do Centro de Documentación Arkheia do Museo Universitário Arte Contemporáneo, o MUAC, que faz parte da Universidade Nacional Autônoma do México.
Pilar Garcia esboçou uma perspectiva histórica curiosa (e foi uma pena ela não desenvolver melhor esse tema). Pilar coloca que, devido a grande importância do muralismo no México, os arquivos e mesmo o colecionismo das instituições de arte, tinham sido praticamente abandonados, apontando, portanto, a "necessidade de resgatar muito material disperso e não sempre em boas condições, mantidos por artistas ou espaços independentes”. E, depois de apresentar brevemente seus ditames/parâmetros de arquivista profissional, a convidada entrou no assunto que nos propunha: linhas, alcances e efeitos da exposição de arquivos.
No telão do auditório, pudemos ver diversas imagens das instalações daquele arquivo, no contexto de algumas exposições que pautaram a apresentação. Mais que as exposições em si mesmas, a arquitetura e o mobiliário do centro de documentação foram as grandes vedetes da apresentação, causando até uma “inveja sana”, manifestada pelo outro convidado da tarde, Jaime Reyes. Mesas, luminárias, caixas dobradiças que acondicionam e também exibem documentos, módulos e todo um aparato expográfico – que lembravam um pouco as invenções expográficas de Lina Bo Bardi, só que bem mais ‘certinho’ – foi detalhado em plantas 2D, modelos 3D e fotografias competentes. Ficou claro que as estratégias de ativação e exposição do arquivo do MUAC partem do desenho técnico, com a preocupação de criar um ambiente social e didático acessível, user-friendly. Para reforçar (e até ilustrar) o modo como o centro de documentação se integra ao cotidiano do museu, ou seja, à visitação pública, Pilar Garcia destacou algumas imagens do centro com visitantes consultando o material, e completou “la gente si se interessa...”. O que me fez pensar que ela já deve ter escutado diversas vezes “não, ninguém se interessa por isso” até conseguir fazer o que faz atualmente.
Já a apresentação do poeta arquivista Jayme Reyes seguiu duas linhas interdependentes: uma explicação do que há e como funciona o arquivo em que trabalha, e uma especulação sobre a função do arquivo como gerador de memória poética. O que há: “documentação de todas as atividades de vida, trabalho e estudo em Valparaíso, da Escola, da Ciudad Abierta e também todo o material proveniente das Travesías pela América” [3]. Já para falar de que se trata essa memória poética, Jayme Reyes convocou uma personificação de Mnemosyne, “mãe das musas, a quem são devidos todos nossos elogios, quer dizer, todas nossas obras”. E completa, “é ela, Mnemosyne, quem nos convida a narrar o que nos passou, para que, quase mártires, possamos ser testemunhas e testemunhos da verdade”.
Essa coisa de ser “mártires” e “testemunhos da verdade” apitou alto no meu ouvido. A apresentação passou a soar como um lirismo afetado e talvez machista de poeta romântico tardio. Uma sensação que só piorou quando Jayme Reyes lançou outra frase de efeito: “hay que vestirse de héroe para llegar al fondo de un oficio”. O ofício de que fala é o fazer memória.
Eu já tinha visto alguns dos professores da Ciudad Abierta recitar uma e outra vez pedaços do poema épico Amereida [4]. Já tinha entrevistado outros na Mobile Radio BSP, radio que transmitiu ao vivo a partir do pavilhão da Bienal. Sempre maestros (professores/mestres), que parecem ocupar o topo de toda uma hierarquia disfarçada de não sei o que, sempre homens e sempre com um certo tom, uma certa ‘voz’ (já que ‘vozes’ foi um dos motivos dessa Bienal) que traz um ranço de evangelizadores, patriarcas, padres Anchieta e tal. Essa foi a má impressão que tive durante a fala de Jayme Reyes, e que foi reforçada por uma das imagens projetadas no telão: um maestro pregando no deserto, tal qual aqueles empoeirados profetas bíblicos, comedores de raízes amargas. Sem dúvida, o arquivo em questão deve conter mais que “a voz” que lhe foi atribuída pelo poeta arquivista, Jayme Reyes.
[1] O teórico Brian Holmes propõe que até agora tivemos três gerações de ‘crítica institucional’ articuladas por artistas. A primeira teria sido anti-institucional (e aqui entram algumas práticas dos 1960 e 1970), a segunda infra-institucional e a terceira, atual, extra-institucional. Leia aqui, que vale a pena: <http://eipcp.net/transversal/0106/holmes/en>.
[2] Com certeza isso se aplica também a outros momentos e outros contextos que também sofreram de um tipo trauma, como é o caso do construtivismo russo, por exemplo, que foi brecado pelo partidarismo assasino sob o comando de Stalin. Aliás, considerando toda uma história de traumas na história da arte, deveríamos rever essa ideia moderna de “rupturas”, impulsionadora de uma visão de progresso.
[3] Ciudad Abierta, é um projeto coletivo fundado em Valparaíso, Chile, em 1970, que tem no ofício da arquitetura, do desenho industrial e da poesia seus eixos de atuação. Como é o caso de suas “travessias”, uma mescla de expedição com oficina de construção prática. Veja mais em: <http://www.bienal.org.br/30bienal/pt/artistas/Paginas/detalheArtista.aspx?ARTISTA=25> e <http://es.wikipedia.org/wiki/Traves%C3%ADa_%28arquitectura%29>.