Relato de uma intervenção densa ou Relato de uma fala labiríntica

relato da palestra de Sarah Zürcher, por Ilana Goldstein

Parti-pris do relato

 

Sarah Zürchner foi diretora do Centre d´Art Contemporain em Fribourg (FRI-ART), na Suíça, de 2002 a 2007[i]. Ali desenvolveu projetos curatoriais ousados, que lhe renderam prêmios e rechearam sua fala na Mesa 3 deste Simpósio, dedicada ao “Modo documental na arte”. Em linhas gerais, sua intervenção problematizou o tempo e o espaço na produção artística contemporânea e apontou para a permeabilidade de fronteiras entre ficção e realidade. Os outros dois palestrantes da Mesa, Joerg Bader e Mabe Bethônico, foram mais lineares e verticais em suas apresentações, enquanto a fala de Sara, em suas próprias palavras, teve caráter “experimental”.

Sarah disparou para a platéia vários conceitos e metáforas que norteiam sua compreensão da arte contemporânea e que fundamentam sua atuação enquanto curadora, tais como glocalização[ii], nomadismo[iii], desterritorialização, fluidez, espaço líquido, deserto versus labirinto, invisibilidade entre outros, procurando ilustrá-los com trabalhos de artistas jovens e ainda pouco conhecidos. Se por um lado sobrou riqueza e erudição em sua fala caleidoscópica, faltou-lhe talvez clareza e aprofundamento.

Por isso mesmo, é importante explicitar o recorte assumido por este relato: não se trata de repertoriar os muitos pontos mencionados de passagem pela convidada, mas de desenvolver apenas algumas de suas idéias e exemplos, a partir da Mesa de debates e, adicionalmente, de uma entrevista realizada com Sarah Zürcher, logo após sua fala.

Paradoxos de Zenon: tempo, espaço e infinito

Sarah abriu a apresentação mencionando Zenon de Elea (aprox. 490-430 a.C.), grego que criou uma série de paradoxos para apoiar a doutrina de seu mestre Parmênides, segundo o qual as sensações que obtemos do mundo são ilusórias. De acordo com o paradoxo de Zenon, para ir de um ponto a outro, primeiro se deve percorrer metade do caminho. A fim de percorrer a outra metade, deve-se vencer metade da distância restante, ou seja, mais um quarto do percurso. Em seguida, é preciso caminhar por metade da distância que falta, o que significa um oitavo do trajeto. Isso se sucede infinitamente de modo que nunca chegaremos ao destino final, por mais que nos aproximemos dele. Outra versão deste paradoxo de Zenon é a parábola da corrida entre Aquiles e uma tartaruga, que foi citada pela palestrante[iv]. Hoje está provado que os paradoxos de Zenon são falaciosos, mas eles têm o trunfo de semear dúvidas em nossas mentes, questionando o estatuto da realidade e as crenças de senso-comum.

Uma das primeiras obras apresentadas por Sarah Zürchner foi justamente “La flecha de Zenon (1992)”, vídeo de autoria dos artistas argentinos Jorge Macchi e David Oubiña, em que números e frações aparecem, desaparecem e vão se dividindo infinitamente, numa referência à dificuldade de mensurar e de relacionar o tempo, o espaço e o infinito. O vídeo ficou em cartaz na FRI-ART de fevereiro a abril de 2006, no âmbito da exposição “Stopover”.

Em uma exposição anterior organizada por ela - “Mathématiques, ressonances” (2004) - o trabalho de Erwan Mahéo e de Isabelle Arthuis também remetiam a abstrações matemáticas e a paisagens indivisíveis. As fotografias e cartazes de Mahéo, bem como as esculturas e instalações de Arthuis estabeleciam estreitas relações entre si e propunham reflexões metafísicas sobre a paisagem. Sugeriam ao visitante, por meio de um ambiente de forte cromatismo e de uma atmosfera de tensão e estranhamento, que a realidade se metamorfoseia sem parar.  Para deixar claro o quanto é importante estarmos atentos, de um lado, aos ciclos de renovação e, de outro lado, ao legado do passado, a convidada suíça mencionou o fato de que, quando olhamos para o céu e nos encantamos com milhares de estrelas e constelações, geralmente esquecemo-nos de que muitos daqueles corpos e formações celestes já não existem mais.

Em seu trabalho de curadora, a ambigüidade, a permeabilidade e a transformação estão sempre presentes. “Metamorfose” foi, por exemplo, o mote de Janaina Tschäpe, artista brasileira e alemã que, em 2005, expôs na FRI-ART suas fotos da série «Camaleoas» (2002), retratando o destino de quatro mulheres, todas nascidas em uma favela carioca, que construíram trajetórias pessoais e profissionais de modos completamente diferentes.

 

 

Deserto e/ou labirinto

 

Eis duas metáforas recorrentes na fala de Sarah e que ela considera fundamentais na construção de textos literárias e também de trabalhos de artes plásticas. O deserto, para ela, significa amplidão, liberdade e infinito. Já o labirinto remete a espaços restritos e a percursos pré-definidos. As pesquisas artísticas costumam tender, ora para um pólo, ora para outro. As obras baseadas na utopia de um mundo sem fronteiras, herdada do século XX, se encaixam no pólo do deserto. Já aquelas que enfatizam ou transgridem as barreiras e controles que se multiplicam no mundo contemporâneo, aproximam-se do paradigma do labirinto.

No entanto, Sarah Zürchner enfatiza que não se trata de um antagonismo absoluto. Trata-se de uma gradação, que pode inclusive combinar elementos dos dois pólos. O curioso é que o Brasil, segundo a curadora suíça, é um “deserto labiríntico”. Em nossa literatura e em nossa produção visual, ela reconhece, simultaneamente, “o desejo de expansão e conquista” e a proliferação de barreiras e separações.   

 

 

Enfoque político na curadoria: uma pequena polêmica

Como bem sintetizou o debatedor Paulo Herkenhoff: “O trabalho de Sarah é quase um manual de cosmógrafo[v]. Ela inclui a nova geografia em seu modo de pensar e traz uma nova forma de curadoria, que utiliza, na arte, conceitos do espaço político”. A importância de questões geopolíticas é inegável, como revelam duas obras curadas por Zürchner às quais fez referência em sua fala. O primeiro exemplo refere-se a Josep Maria Martin, conhecido por realizar obras habitáveis, criando território utópicos com a ajuda de especialistas. No México, por exemplo, construiu um “Canto dos Sonhos“ para crianças de rua e, na Alemanha, equipou um trailer com aparelhos de telefonia que podiam ser usados gratuitamente por habitantes de bairros pobres. Na Suíça, a convite de Sarah Zürcher, Josep Maria Martin construiu uma casa destinada a colocar em xeque os paradoxos envolvidos na negociação, prática presente em todos os campos e disciplinas, do quotidiano à política internacional. Trata-se de uma questão bastante pertinente na Suíça, já que sua suposta neutralidade política faz com que seja terreno privilegiado de negociações de várias naturezas. A “Casa da negociação” pretendia revelar que a negociação, que em princípio pressupõe escuta, respeito aos direitos alheios e a possibilidade de expressar opiniões divergentes, muitas vezes se transforma em uma fachada perversa, que encobre a imposição dos interesses econômicos neoliberais sobre o(s) outro(s). Dentro da casa, foram realizadas oficinas, debates e havia um vídeo com o making off do projeto.

O segundo exemplo diz respeito a um trabalho que está desenvolvendo atualmente, abarcando de Roma até os dias de hoje, que tematiza o imperialismo e a opressão sob diferentes roupagens. A preocupação com o colonialismo cultural transparece ainda em duas obras atualmente em cartaz no FRI-ART, com curadoria de Sarah . Hinrich Sachs discute os interesses políticos por trás da construção dos “museus de civilizações exóticas”, tão comuns na Europa - e cujo ápice foi a inauguração do caríssimo Musée Branly, em Paris, em 2006. A obra gira em torno do discurso do presidente Jacques Chirac na ocasião da abertura do referido museu. Já Uriel Orlow, em “The Visitor”, retraça uma história do Reino do Benin, discutindo a noção de propriedade e o fato de que grande parte do patrimônio cultural material do Benin está espalhado por museus europeus e norte-americanos.

Entretanto, o caráter crítico e político das escolhas curatoriais de Zürchner não parece ter ficado claro para a platéia, em virtude, tanto da densidade de conteúdo, quanto da didática “experimental” da apresentação. Tanto que, no momento do debate, Oliver, do público, acusou a palestrante de se referir a teorias abstratas de Hegel e Deleuze, mas não mencionar conflitos, desigualdades ou constrangimentos materiais que têm papel importante, não só no funcionamento da sociedade Ocidental, como nos próprios processos artísticos. Segundo Oliver, Sarah “higieniza” o espaço social em sua abordagem “neoliberal”, negligenciando os efeitos do globaritarismo - termo cunhado pelo geógrafo Milton Santos para se referir ao imperialismo da globalização.

O papel do curador segundo Sarah Zürcher

É possível que outros presentes tenham saído com a mesma impressão que o inconformado Oliver, como se Sarah Zürchner fosse uma dessas teóricas de países do Primeiro Mundo mais interessadas em metateorias do que em realidades sociais concretas, cruas e cruéis. Vale abrir um parêntese para destacar que Paulo Herkenhoff chegou a utilizar o termo “espetacularização” da miséria, em uma de suas intervenções enquanto debatedor. Não se referia explicitamente à Sarah, mas chamava a atenção dos presentes para o perigo de se estetizarem e neutralizarem mazelas sociais por meio de intervenções artísticas. Talvez estivesse pensando nas obras apresentada por Márcio Botner, da interessantíssima Galeria A Gentil Carioca[1], na Mesa 1 do Simpósio, em que foram colocadas, na parede externa do prédio, grandes beliches, que rapidamente se tornaram camas para homens em situação de rua - que ali também defecavam, suscitando reclamações na vizinhança. Ou então à performance organizada pela Tate Modern, em Londres, na qual cantores de hip hop e boxeadores foram convidados a se apresentar conjuntamente em um evento da renomada instituição. Não que Herkenhoff acredite que a arte deva transformar diretamente a realidade, o que propôs foi que a arte “mude a maneira como pensamos a realidade”. Feche-se o parêntese. 

Seria injusto acusar Sarah Zürchner, seja de cegueira social, seja de espetacularização das desigualdades. Durante a palestra, Sarah declarou que sua luta pessoal é no sentido de repolitizar a sociedade. E, na entrevista concedida a esta relatora, após o encerramento da Mesa 3, revelou se tratar de uma curadora aberta, generosa e bastante preocupada com questões da atualidade.

Em sua opinião, o papel do curador é acompanhar o artista em sua pesquisa, ajudá-lo a produzir novos trabalhos, esclarecer e mediar as condições que envolvem a produção das obras e revelar talentos ainda pouco conhecidos. Mas não é só isso. Deixemos as palavras de Sarah desfazerem qualquer eventual mal-entendido acerca de sua postura supostamente apolítica:

 

“Nossas exposições não são elitistas. Ao contrário, fazemos um esforço particular para torná-las interativas e escolhemos temas que interpelem a todos. (...) O objetivo é permitir aos visitantes que se interroguem sobre nossa sociedade e que apreendam de outro modo o mundo que nos cerca”. [vi]

 



[1] Link para a galeria citada: http://www.agentilcarioca.com.br/indexpor.html



[i] O site do museu, conhecido como FRI-ART, é: http://www.fri-art.ch. Disponibiliza descritivo das exposições ano a ano, agenda de eventos, bem como materiais pedagógicos sobre as obras e artistas.

[ii] O conceito de glocalização foi cunhada por Ulrich Beck, para contemplar a interdependência entre o global e o local em todos os recônditos do planeta, em virtude do capitalismo tardio e da comunicação de massa. Para ver uma entrevista do autor em português sobre o assunto, acessar: http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ulrich.htm

 

[iii] Sarahh Zürchner utiliza o conceito de Gilles Deleuze, segundo quem o nomadismo é um modelo de resistência ao poder, ligado à liberdade do movimento. Ver: DELEUZE, Gilles. Conversações.  São Paulo: editora 34, 1992 e também DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997.

[iv] Aquiles desafia a tartaruga, certo de que irá vencer, já que é mais rápido do que ela. Deixa a tartaruga sair na frente e se propõe a chegar até onde ela está numa determinada hora. Porém, quando atinge o ponto em que estava a tartaruga, ela já avançou mais um pouco. Aquiles anuncia que vai chegar rápido no ponto 2, em que a tartaruga se encontra naquele exato momento e, quando chega ao ponto 2, a tartaruga já não está mais lá. Isso se repete sucessivamente, de modo que Aquiles, mesmo sendo mais rápido e mesmo se aproximando bastante do animal, nunca consegue ultrapassá-lo.

 

[v] Originalmente, a cosmografia é a parte da astronomia que se preocupa com o estudo do universo de um ponto de vista geocêntrico, descrevendo a esfera celeste e os corpos que a integram a partir da Terra. Até hoje, a astrologia, a navegação marítima e a navegação aérea fazem mais apelo à antiga cosmografia do que à astronomia propriamente dita. Fazendo uma analogia, pode-se inferir que a cosmografia de uma sociedade, por exemplo, seja sua concepção visual do céu, da terra e dos lugares que os diferentes seres neles ocupam.

 

[vi] Tradução da relatora. Entrevista disponível no link: http://www.lagruyere.ch/archives/2004/04.05.04/fribourg.htm