Espaço, aceleração e amnésia: A arte como dispositivo de (re)inscrição
O convite para falar sobre a tríade “espaço, aceleração, amnésia”, aponta para um campo de forças que pode ser assim resumido em poucas palavras: apesar do espaço, ou seja, dos locais e territórios, onde a memória sempre lançou suas âncoras, vivemos em uma era de aceleração e, conseqüentemente, de amnésia. Os pressupostos deste diagnóstico são: a memória necessita de tempo para poder se formar; nossa era nos roubou esta temporalidade. Ao menos desde Aristóteles reconhece-se que a memória necessita de um tempo mediano (nem lento, nem acelerado demais) para poder se formar. Este filósofo fez uma descrição de nosso constructo anímico como um aparelho onde as mensagens se inscrevem com maior ou menor durabilidade, conforme a constituição deste aparelho e a temporalidade das impressões. Para ele, cada pessoa possuiria uma determinada consistência de superfície mnemônica, que Aristóteles aproximou da noção antiga de “bloco de cera” (a metáfora por excelência então para a memória), o que determina a sua capacidade de reter mais ou menos informações. Citemos as palavras de seu De Memoria et reminiscentia (450b 1-10):
em certas pessoas, devido à incapacidade ou idade, a memória não se dá mesmo sob um forte estímulo, como se o estímulo ou selo fosse aplicado à água que corre; enquanto em outras, devido ao desgaste, como em paredes antigas de prédios, ou à dureza da superfície de apoio, a impressão não penetra. Daí os muito novos e os muito velhos terem memória fraca; eles estão no estado de fluxo: o jovem devido ao seu crescimento, o idoso, devido à sua decadência. Pelo mesmo motivo, nem o muito veloz, nem o muito vagaroso parece ter boa memória, os primeiros são mais úmidos do que deveriam ser e os últimos mais duros; nos primeiros a imagem não permanece na alma, e nos últimos ela não deixa nenhuma impressão.
Não tenho dúvida de que nossa era está em “estado de fluxo” e é marcada pela velocidade da circulação. Paradoxalmente podemos dizer que nossa era une as dificuldades de memorização dos jovens e dos velhos: além de ser muito veloz – ou justamente por causa disto – ela está em constante estado de arruinamento. Nossas sociedades sofrem de progeria ou síndrome de Hutchinson-Gilford, ou seja, o envelhecimento rápido e precoce. Tudo que é sólido desmancha no ar – as bases materiais de nossas inscrições mnemônicas já nascem caducas, prontas para serem substituídas por novas bases e suportes. Estes, por sua vez, tendem cada vez mais para o digital, mas nem por isto estão isentos deste movimento de caducidade. A cada par de meses temos que mudar nossos hardwares.
Por outro lado, não precisamos de pensar muito para reconhecer neste conjunto de idéias, uma série de postulados que de certo modo nos acompanham desde o romantismo. Cito, como exemplo, uma carta de Goethe a Zelter de 1825, que Benjamin citou em mais de uma ocasião:
Riqueza e rapidez, eis o que o mundo admira e o que todo o mundo quer. Ferrovias, correio expresso, navios a vapor, e todas as possíveis facilidades de comunicação são as coisas que o mundo culto deseja a fim de se sofisticar e assim persistir na mediocridade. É também consenso geral que uma cultura mediana se torne comum [lembremos do conceito de indústria cultural]: esta é a meta das sociedades bíblicas, do método do estudo lancasteriano e tudo o mais. Na verdade é o século apropriado para as pessoas capazes, práticas e de raciocínio rápido, que, providas de uma certa desenvoltura, percebem sua superioridade em relação à multidão, ainda que eles próprios não tenham talento para atingir o máximo. (Apud Benjamin 1986: 61)
Vemos aqui um verdadeiro modelo de crítica cultural, tal como ela será repetida até hoje. Sabemos que o marxismo, a teoria do desencantamento e racionalização do mundo e boa parte do pensamento crítico do século XX estão calcados nestas premissas. Mas não é menos verdade que também desde o romantismo tenta-se desdobrar uma dialética desta postura crítica: o discurso melancólico do “fim da tradição” e toda a procissão dos discursos “inexistencialistas”, também se fizeram acompanhar, ao menos desde o primeiro romantismo de Friedrich Schlegel e de Novalis, de uma saudação de algo de novo. No caso, estes autores quiseram fundar, pela literatura e pela arte, uma nova mitologia. A arte curaria as feridas metafísicas do eu-moderno. A arte reterritorializaria este Eu sem pátria. Este mote foi retomado por Nietzsche e pelas vanguardas históricas. Aparentemente depois de um predomínio de discursos mais formalistas, ele voltou com força no final do século passado e ainda inspira muito do que se faz e fala sobre arte. Não por acaso Walter Benjamin ainda figura como uma referência central nesta reflexão sobre a sociedade e o papel da arte, que oscila entre a melancolia e uma comemoração da “nova barbárie”. Não por acaso também o Angelus Novus de Paul Klee foi escolhido como o anjo da guarda da última Documenta.
Do romantismo descendem tanto o discurso da “arte pela arte”, como o da arte como reauratização engajada do mundo. Na verdade estas são duas faces de uma mesma moeda. A utopia da “arte pela arte” é uma doutrina estética tendencialmente elitista que para existir precisa se opor a uma outra prática artística que é considerada mais próxima da prosa do mundo. Já os projetos românticos e neo-românticos de reauratização do mundo pela arte engajada só funcionam se tivermos em mente que a arte representa uma esfera outra, oposta ao sofrimento do estar-no-mundo, ou que no mínimo permita um relacionamento lúdico com esta “dor do ser”. Ambos os projetos, no entanto, coincidem em seu desejo de construir uma saída de emergência para o homem moderno pela porta do estético. A arte seria capaz de propor uma outra esfera de vivência interpessoal para além do domínio das relações de interesse regidas pela instância econômica. Paradoxalmente, desde o romantismo a esfera do estético é encarada como uma espécie de “estado de exceção” que permitiria um enfrentamento de uma sociedade calcada ela mesma no “estado de exceção” político e que demanda a toda hora o consumo de “carne humana” sob a forma da espoliação pelo trabalho ou pela marginalização e exclusão desta sociedade.
Estas considerações preliminares deverão estar em nosso horizonte no que segue. Do que disse aqui, fica claro que podemos ver uma continuidade entre a Modernidade e a nossa era e deste modo nos aproximamos de um dos motes que guiou a documenta 12 que se encerrou no mês passado. Neste texto gostaria de tratar rapidamente dos três motes desta exposição, a saber: 1) A modernidade é a nossa antiguidade?; 2) a vida nua e 3) a formação, para em seguida voltar ao tema proposto para esta mesa, ou seja, a relação entre espaço, aceleração e amnésia. Procurarei abordar estas questões inspirado por esta última documenta.
Ao procurar retomar os laços com a Modernidade acredito que os organizadores da Documenta Roger Bürgel e Ruth Noak estavam intervindo no debate sobre o fim da modernidade, que se desenvolveu nos anos 70-80. A proposta seria a de uma retomada da modernidade, de seus mitos e utopias, para além de qualquer inocência que apostaria em uma continuidade pura e simples. Contra o mainstream que hoje aponta para uma ruptura radical com o passado, um mergulho na realidade virtual, no cibercorpo e que flerta com um certo despudor com o mercado como instância que governa nossa relação com a arte e os artistas, os curadores propuseram uma documenta voltada para questões tanto políticas quanto estéticas. Eles apostaram na força da arte como meio de abalar nossas políticas de globalização, exclusão ou de consumo do homo sacer, para falar com Agamben. Existe, portanto, uma relação muito estreita entre as três questões acima mencionadas: manter a conexão com a modernidade implica uma reinserção do político na arte e o compromisso (iluminista) de formar o público para combater a “vida nua” enquanto figura do ser humano sacrificado. Por outro lado, com Agamben, a “vida nua” também é aproximada da noção foucaultiana de biopolítica. Assim como Benjamin criticara o caráter sagrado da vida, que a reduz à “vida nua”, mera subsistência, Foucault mostrou que a vida é vista na modernidade cada vez mais como um conjunto de necessidades fundamentais que são geridas pelo Estado. Mas contra Agamben e com Foucault existe no projeto curatorial da documenta também uma tentativa de se resgatar a ambigüidade da noção de biopolítica: ou seja, se vivemos em uma era na qual a biopolítica comanda o processo político como um todo, por outro lado podemos tentar intervir no sistema por dentro da própria biopolítica.
Que a biopolítica está onipresente não há dúvidas: massacres e genocídios são feitos em nome da vida; os limites do humano se embaralharam com os das máquinas e de outros animais; o paradigma biológico coloniza as demais áreas do saber; nossa memória passou para a era computacional e, em seguida, para a ciber-memória; a ecologia é instrumentalizada pela grande política; os corpos são transformados em apêndices de gigantescos sistemas da indústria da saúde; propaga-se uma “nova eugenia” a partir das novas técnicas de reprodução e sintetização da vida; o Estado faz a gestão da vida por meio do controle da pesquisa genética; ele define os limites entre a vida, a pré-vida (quando o corpo amorfo ainda pode ser material para pesquisas) e a morte (lembremos dos debates em torno da eutanásia); a sexualidade é constantemente observada e regulamentada por políticas de saúde; nunca uma percentagem tão grande da população mundial esteve mantida em presídios e em campos de refugiados; o saber psicanalítico foi cada vez mais reduzido a instrumento de poder da família e do Estado; as políticas dos países centrais se dão com debates em torno de questões sexuais (casamento homossexual, aceitação de homossexuais no exército etc.) ou migratórias (fechamento do primeiro mundo por detrás de uma nova “cortina de ferro”); a grande parte da população mundial, pertencente às camadas mais pobres, é excluídas das “benesses” da moderna era tecnológico-biológica e criminalizada. É neste quadro que se gestou a idéia de se pensar a esfera artística na sua relação com a biopolítica. Praticamente todas as questões acima arroladas reverberam dentro deste espaço estético.
Um dos pontos de partida desta proposta de Documenta é, portanto, a reflexão sobre a confluência entre os campos estético e o político. O estudo desta convergência foi intuído por Benjamin em seu conhecido texto de 1936 sobre a obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (que constatou a estetização da política no nazismo) e pesquisado de modo aprofundado por autores como Philippe Lacoue-Labarthe e Jean Luc Nancy (2002). Estes autores analisaram a criação de um mito identificatório para o “povo alemão” que tinha como núcleo a construção de uma Grécia dionisíaca. Inúmeras obras de arte/literárias atuaram neste sentido desde o século XVIII. O nazismo teria representado uma fusão deste mito, talhado pela estética, com o político. Esta interpretação é importante de ser recordada aqui como um modelo de pensamento onde convergem a abordagem política e a estética em um contexto claramente biopolítico (a política nazista representa tanto para Foucault como para Agamben uma espécie de suma do biopolítico). A idéia agora seria a e se pensar uma arte capaz de agir no sentido oposto do modelo da estetização do político, mas sem cair na politização da arte no sentido de sua instrumentalização. Este dilema entre a tarefa política e a valorização e uma certa autonomia da esfera artística marcou claramente o projeto de curadoria desta documenta. Neste ponto ela se diferencia das duas documentas anteriores (de Catherine David e de Okwui Enwezor), que também tiveram uma pauta marcadamente política. A tentativa de retomar os laços com a Modernidade, por um lado, e uma postura crítica diante dos grandes nomes da máquina da arte-negócio, perceptível também na abertura para grande quantidade de obras de artistas do terceiro mundo que não faziam parte do establishment, deram um tom diferenciado a esta documenta 12. Ao se voltar para trás para poder ver melhor nosso presente, atitude também marcadamente benjaminiana, ela deixou de lado a arte eletrônica e nem se compara o número de obras em vídeo presentes nesta e na documenta anterior.
Como Bürgel e Noak escreveram na abertura do texto do catálogo da documenta: “Die Grosse Austellung hat keine Form”, “A grande exposição não possui forma.” Qualquer tentativa de se reduzir uma documenta a um denominador comum pode ser desmentida com contra-exemplos extraídos dentre as obras da própria exposição. Mas isto não deve impedir que tentemos refletir sobre certas características desta exposição. Estamos falando de 109 artista provenientes de 43 países. O número de visitantes, 754.301, já está aproximando a Documenta do número mítico de um milhão de visitantes da exposição Entartetkunst, organizada pelo regime nazista. Aqui e ali a arte é pensada dentro de uma política: no nazismo como uma potente alavanca de construção da identidade, de esmagamento do que era projetado como sendo o inteiramente outro, de criação de uma Gestalt de um povo que se queria puro. Na Documenta, pelo contrário, a arte é vista como dispositivo não mais de identificação mimética e repressora, para lembrarmos expressões de Adorno, mas sim como reflexão aberta ao jogo da diferença, à fragilidade das identidades. A arte é pensada também muitas vezes como modo de retraçamento e reinscrição de identidades marcadas por rupturas. Este era o caso da obra de Amar Kanwar “The lightining Testimonies” de 2007 que trata, em oito telas onde se projeta frases e falas não contínuas, da questão da violação de mulheres na Índia. Também o trabalho de Romuald Razoumé trata de violência, no caso a pobreza africana que condena milhares a morrerem em pequenas embarcações que fazem para chegar a Europa. Seu “Dream”, uma instalação que tem no centro um enorme barco construído com galões de transporte de gasolina, é um verdadeiro anti-dispositivo biopolítico. Outra obra que pode ser lida como oposta ao modo de recepção de arte mimético e autoritário é o trabalho Artur Zmijewski. Em “Them”, um filme apresentado no centro cultural Schlachthof, podíamos acompanhar a construção de diferentes times ideológicos que em uma espécie de experimento laboratorial estabelecem conflitos que chegam às raias do ódio e desejo de eliminação recíprocos. Assim como os antimonumentos de um Jochem Gerz apresentam o modo e funcionamento da memória, mais do que fatos a serem rememorados, aqui vemos o modo de funcionamento da sociedade como dispositivo político de criação da “vida nua”.
Outra obra que inclui o biopolítico para criticá-lo na sua versão totalitária é o projeto de Ai Weiwei de levar 1001 hóspedes chineses a Kassel durante a documenta. Uma obra que trata pessoas como material e objeto poderia ser vista como um autêntico dispositivo autoritário, gestor da vida no sentido de controlador destas vidas. Mas a proposta de Weiwei pode ser lida a contra-pêlo: levar estes chineses a Kassel pode significar um aprendizado para se conviver com a diferença, ou mesmo para relativizá-la. Outra obra de Weiwei que assumiu um papel quase que simbólico durante a documenta 12 foi o seu “Template”, um templo feito com portas e janelas da dinastia Ming-Quing que despencou espetacularmente no quarto dia após a sua inauguração sob o impacto de uma tempestade. Weiwei achou que a obra ficou ainda melhor destruída e, levando-se em conta a visada benjaminiana da exposição, ele sem dúvida tem toda a razão. Outras duas obras foram vítimas da natureza: a plantação de arroz de Sakarin Krue-On, ao lado do castelo Wilhelmshöhe, e a plantação de papoulas de Sanja Ivekovic, diante do Fridericianum. Elas foram vítimas do clima e das condições do solo. Esta intervenção da natureza em uma exposição que retoma motes românticos como o da arte pela arte e o da formação do público, não deixa de ser sintomática. A arte, que também já foi pensada como tecné, técnica, e ainda guarda resquícios desta sua origem grega, é um modo de domesticar nosso medo diante da natureza. No romantismo esta relação hierárquica entre uma arte/técnica e a natureza era patente, como vemos nas transfigurações do faústico e do prometeico de então. Não por acaso a pintura e paisagem só se tornou plenamente reconhecida no romantismo. Mas este homem faústico e prometeico romântico foi capaz de gerar tanto as obras de um Cézanne como as bombas atômicas do século XX. A volta do recalcado, ou seja, da natureza dominada externa e internamente, tem servido parta modificar profundamente esta visão romântica da arte. Nas suas configurações ao longo do século XX o homem não aparece mais como o herói trágico prometeico, mas como um híbrido sem bordas definidas com a natureza. Esta indefinição entre a natureza e o que seria cultural, que é característica de nossa era biopolítica como vimos acima, é vista com olhos críticos por boa parte das obras desta Documenta. Este gesto de tentar preservar a diferença entre o cultural e o natural pode ser lido como uma tentativa de se preservar uma esfera para a atitude crítica. Ainda não conseguimos pensar uma crítica interna à natureza. Daí os discursos sociais darwinistas tenderem sempre para o totalitarismo. Mas a intervenção da natureza nas obras de Weiwei, Krue-On e Ivekovicé digna de nota porque serve como uma espécie de lembrete para o fato de que o artista não tem a autonomia que pensou ter diante da natureza. Daí também porque as obras de arte abandonam a cena da grande política e de seus discursos tradicionais e se voltam para falas mais frágeis. O engajamento revolucionário deu lugar a uma micro-política da identidade, a uma exploração dos meios da arte, incluindo ai incursões sobre os limites entre a esfera privada e pública. Este, que também é um tema típico romântico, agora, sob a égide do biopolítico e da vida nua, assume um sentido totalmente diverso. O corpo assume um papel central aqui, como se ele representasse o último bastião do indivíduo em uma era pós o sonho do indivíduo burguês autônomo.
Aqui também encontramos o tema da memória e do esquecimento proposto para esta mesa. Nosso corpo foi desvelado agora como um arquivo em suas bases materiais e não apenas como metáfora arquival. Com a quebra do genoma e dos procedimentos de inscrição neuronal de nossos diferentes níveis de memória, a ciência entrou em um campo que as humanidades dominavam com uma soberania que, agora vemos, era muito precária. Paralelo a estas descobertas ocorre também a passagem para a era digital, a criação do universo da Internet, que apenas aos poucos compreendemos seu impacto. Esta “nova América” também abala nossa visão de mundo: a revolução midiática, a superação dos suportes tradicionais de inscrição, apresenta o mundo, a história e o conjunto de todo saber como uma “citation à l’ordre du jour”. Nossa cultura letrada se transforma em cultura eletrônica-digital. As fronteiras entre o eu-arquivo e o mundo-arquivo aberto pela era da computação abalam a identidade do humano. Ora, esta Documenta se apresenta de um modo geral como um conjunto e discursos que se colocam resistentes a esta tendência generalizada à digitalização. Ela aposta mais nas estratégias analógicas de inscrição. Contra a tendência à aceleração, as obras exigem uma reflexão, uma recepção não-distraída e que não distrai o expectador dos problemas da sociedade, como os produtos da indústria cultural o fazem. Pode-se criticar um traço conservador desta documenta, como muitos críticos o fizeram, mas este traço também pode ser lido como gesto corajoso desta curadoria: não se dobrar aos ditames do mercado e dos cânones constantemente reinventados por ele.
Assim, para concluir, podemos voltar ao tema da mesa, ou seja, a equação entre espaço, aceleração e amnésia. Com relação à aceleração é importante notar que apesar dela levar a um rápido envelhecimento, nossa sociedade sofre ao mesmo tempo de pânico diante da morte. A aceleração leva a uma alta velocidade que nega a durée, ou seja, o tempo denso, que remete tanto à experiência como a um diálogo com a morte. Trata-se de uma aceleração que nega o tempo. No limite, nossa sociedade tem seu ideal nos deslocamentos risomáticos de um Matrix, onde a equação espaço-temporal é destruída. A aceleração total leva ao seu fim, como ao rompermos a velocidade da luz. Mas nosso padrão de aceleração da circulação das informações ainda é outro e remete ao que falei na abertura deste texto ao mencionar que nossa sociedade está em fluxo. Tudo que pode ser digitalizado se arquiva e circula. Vivemos numa era de hipermnésia. Mas gostaria de destacar a amnésia e a hipomnésia, como faces não menos importantes da nossa hipermnésia. Como lemos em um dos mais influentes textos dos últimos tempos sobre esta questão, o Mal de arquivo Derrida, “Não haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical, sem a possibilidade de um esquecimento que não se limita ao recalcamento.” (2001 32) Este esquecimento pode ter muitas faces: o apagamento, a tentativa de borrar da história, uma amnésia provocada por catástrofes naturais, ou ainda um esquecimento decretado que, no fundo, é uma contradição nos seus próprios termos.
Nossa cultura arquival e da memória é uma cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em torno da chave de arquivos e de certas interpretações da nossa memória cultural. Podemos ler nas guerras fundamentalistas, tentativas de deletar da memória da humanidade as informações culturais e genéticas contidas nos grupos que são tentativamente dizimados. Tanto os genocídios, como as guerras políticas e as ditaduras, que marcaram o continente sul-americano na década de 1970, levam a graves conflitos em torno dos arquivos do terror. Em 2006, para citar um exemplo bem atual, foi anunciado que o arquivo de Bad Arolsen, na Alemanha, contendo mais de 25 quilômetros de estantes com dados sobre as vítimas da Segunda Guerra Mundial, finalmente seria aberto aos pesquisadores. Ou seja, apenas depois de mais de 60 anos de controle que os historiadores puderam (não sem conflitos) ter acesso a estas fontes documentais primárias. No Brasil, apenas recentemente o governo federal abriu os arquivos da ditadura, mas esta abertura ainda é limitada e não é o suficiente para resolver o paradeiro dos desaparecidos pela ditadura de 1964-1985. Tudo no arquivo é político.
[Benjamin também estava consciente dos limites deste processo de arquivamento, ou seja, dos riscos da hipermnésia. Em uma frase curta e seca de seu livro de fragmentos Rua de mão única, de 1928, ele anotou: “Überzeugen ist unfruchtbar.” (Benjamin 1972: 87) Ou seja, desdobrando o conceito de Überzeugen, que pode funcionar como uma palavra-valise: “convencer é infecundo” ou “infrutífero”, mas também, “testemunhar demais é infecundo”; ou ainda, “super-gerar é infrutífero”.[1] Não por acaso a avalanche de testemunhos que o século XX gerou com seu acúmulo de catástrofes provocadas pelo homem tem conduzido a reações defensivas entre os historiadores e teóricos da cultura. Para além dos positivistas, que negam qualquer valor de conhecimento aos testemunhos, mesmo entre os pensadores que tradicionalmente estão abertos para o fenômeno testemunhal constata-se hoje uma espécie de ressaca.
Mas o dito de Benjamin que condena o Überzeugen (ou seja, ao mesmo tempo o super-gerar e o super-testemunhar) também pode ser transposto para nosso universo virtual. A questão é como selecionar. Ou ainda: como controlar a sede da web, como usar os sites de busca e como acessar – ou não – os documentos por eles listados. A web reproduz nossa estrutura mnemônica já descrita por Aristóteles como um misto de memória e reminiscência. (Aristóteles 1957) No computador temos tanto os hard-disks correspondendo à memória, como também programas de busca internos ou externos (na web) ao nosso computador. Nestas buscas recordamos, we recollect, como se fala em inglês mais precisamente. Mas se no computador existe a tecla deletar (que significa jogar no rio Lete) e se, ainda por cima, existem programas especializados em apagar totalmente determinados documentos de nossos computadores, o mesmo não se pode dizer com relação às informações na nossa mente. Afora os problemas físicos causados por mutilações, acidentes ou pelo envelhecimento, ainda não inventaram uma ars oblivionalis efetiva. Segundo o semiólogo Umberto Eco, tal ciência seria classificada como impossível, uma vez que ela seria uma tentativa de aplicar a “arte da memória” (a mnemotécnica) de modo negativo. Mas ocorre que a arte da memória é uma semiótica, ou seja, uma arte “capaz de tornar presente algo ausente”. (Eco 1988: 258) Ao se presentificar o que se quer esquecer apenas o reiteramos. Não existiria uma arte do esquecimento. Como no exemplo da famosa anedota sobre Kant, que, ao querer se esquecer de seu criado Lampe, anotou em um bilhete posteriormente encontrado em seu espólio: “Tenho de esquecer completamente o nome Lampe.” (Weinrich 1997: 107) Dificilmente este método pode ter funcionado. Assim podemos dizer que indivíduos que sofrem de “memória demais” (uma das definições do traumatizado, segundo Freud), podem no máximo tentar diminuir o teor de maldade ou de tristeza de suas memórias.]
Não podemos negar que o número de informações acessíveis na ponta de nossos dedos e sob o nosso nariz, na tela brilhante do computador, aumenta vertiginosamente a cada dia. Projetos mamute de digitalização de bibliotecas estão sendo levados adiante por Amazons e Googles. Se não podemos ir às bibliotecas, elas vêm a nós. Sem contar os milhões de outros tipos de informações, jornalísticas, musicais, cinematográficas, artísticas etc. que também estão on-line. O autêntico desejo de esquecimento do sobrevivente vai ao encontro agora de nosso desejo de também não nos afogarmos dentro do crescimento exponencial de informações que nosso mundo virtual permite. Sofremos concomitantemente de hiper- e de amnésia. A memória demais leva também a um “apagamento” da informação por impossibilidade de metabolização da mesma. Como no Funes Memorioso de Borges, nossa super-memória ameaça nos enterrar na mediocridade. Por outro lado, podemos pensar que mais vale sofrer de informação demais do que de falta e de censura da informação. Passado o pânico do bug do milênio – que, destruindo nossos arquivos, prometia nos lançar nas trevas de uma nova idade média – só nos resta esperar que o bug não se dê em nossos computadores, que a cada par de meses têm sua capacidade de memória suplantada ou, muito pior, que este bug não ocorra diretamente dentro de nossas cabeças. Antes que isto aconteça podemos deletar alguns arquivos de nossos computadores: em nossas cabeças, sem uma ars oblivionalis à vista, só nos resta recorrer à arte do esquecimento contida na própria literatura e na arte.... com toda a sua carga de memória. A documenta 12 contém inúmeros exemplos desta prática de inscrição ambígua que não permite opor memória e esquecimento.
[1] Partindo de um estudo da Orestéia de Ésquilo analisei a relação entre uma determinada tradição do testemunho, próxima à cena da sala do tribunal, na sua relação com o “testemunho da masculinidade”. Cf. Seligmann-Silva 2005.