Por um critério parcial, apaixonado e político!
Relato crítico da abertura do 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea: um projeto curatorial e seus eixos.
O presente texto está configurado em duas partes, a primeira, um percurso pelas intervenções dos participantes da mesa de apresentação; a segunda, alguns comentários sobre a trajetória do Videobrasil e a estruturação deste 17o evento.
1. Intervenções
A mesa da abertura estava conformada por, da esquerda para a direita: Marcos Moraes, Eduardo Dias, Márcio Harum, Fernando Oliva, Valquiria Prates e Solange Farkas. Após as saudações ao público e os agradecimentos a todos os que fizeram possível o evento, Valquiria Prates deu a palavra a Solange Farkas, diretora da Associação Cultural Videobrasil, desde sua criação em 1991, e quem, nesta ocasião, foi curadora geral da mostra.
Solange Farkas começou assinalando a volta do Festival depois de quatro anos de intervalo, um lapso propício para desacelerar, descansar e refletir sobre as novas propostas a serem realizadas. Do mesmo modo, Solange fez um relato dos antecedentes do festival e seu atual objetivo, se propor como um "eixo geopolítico do sul em questão de arte contemporânea"; e daí ressaltou o programa de residências, fundamental para esta edição, e o papel desenvolvido pela SESC-TV na difusão do evento.
Neste ponto, Valquiria Prates retomou a palavra, para enfocar o caráter educativo do festival. Com sentenças de Paulo Freire projetadas, referentes à impossibilidade de cultivar uma inteligência sem comunicação, Valquiria insistiu que a arte devia se encontrar com a vida, que o festival devia ser compreendido como um "lugar de encontro e de troca" e, finalizou, apresentando o cronograma de atividades que será realizado no marco do evento.
Então o curador Fernando Oliva começou sua intervenção. Ele, junto com o curador Márcio Harum (também na mesa) e o artista Felipe Cohen, integrou a comissão encarregada de realizar a seleção dos trabalhos; uma missão nada simples pois foram 1295 inscrições. Fernando começou explicando que o processo tinha sido difícil pelos diferentes perfis, já não das obras, mas dos integrantes da comissão. O que criou - nas suas palavras - uma tensão, da qual a mostra é resultado. "Não existem critérios específicos de seleção", e "só a qualidade" é aquilo que pode primar como regra.
No entanto, o complexo está em determinar o que é qualidade de um trabalho artístico. Fernando expôs alguns pontos, de um lado, eleger obras capazes de assumir riscos, saindo de uma zona confortável. De outro, obras que consigam estabelecer uma tensão com o meio, transitar entre gêneros: vídeo, pintura ou instalação, por exemplo. E, por último, obras que, tendo essas duas características, consigam atuar de forma subversiva, imponderável ou sem explicações possíveis.
No final da sua intervenção, Fernando disse que, de qualquer forma, uma escolha supõe um sujeito, uma pessoa, de modo que sempre o gosto será o essencial. "Seria demagógico afirmar o contrário", concluiu.
E aqui, tomarei a liberdade de fazer um parênteses, trazendo o artigo de jornal de Mário Pedrosa titulado "O ponto de vista do crítico" (1957). Nele, Pedrosa percorre a problemática entre gosto e objetividade, indagando aquilo que pode ser justa causa das escolhas – os juízos – no campo da arte. Para entrar no tema, Pedrosa vai até Baudelaire, que (romântico) responde, "sinceridade". A crítica deve se reconhecer como "parcial, apaixonada, política".
Pedrosa afirma:
O leitor pode engolir o "parcial" e o "apaixonado", mas, estamos certos, tropeça com o político, sobretudo em face das antipáticas e malignas conotações do vocábulo. O "político", no contexto baudeleriano, significava outra coisa, significava principalmente "não eclético". A crítica é sincera, discriminadora e afirmativa, mas não é despida de critério, nem indiferente aos valores e à escada de valores. (É uma de suas funções estabelecer esta escada)[1].
Em resumo, o curador (que é o crítico de nossos dias) deverá realizar escolhas: nisso consiste seu trabalho. Escolhas que serão discriminadoras e arbitrárias (filhas do arbítrio). De 1295 inscrições entraram menos de 50 nomes, porém, o caso consiste em dar a conhecer que essa discriminação nasce de um critério, de um ponto de vista, e por isso, não pode ser eclética.
Na fala de Fernando, percebi o desconforto de alguém que não concordou plenamente, já não tanto num problema das obras selecionadas, mas no denominador comum a ser estabelecido. Fernando poderá me corrigir se estou errada, ou melhor, poderíamos estabelecer um diálogo sobre quais são os critérios para avaliar uma obra em nosso momento (assunto complexo, mas não mais do que em tempos de Baudelaire ou de Pedrosa).
Dito isto, continuarei com a mesa. Marcos Moraes, da comissão de seleção do Primeiro Prêmio Ateliê Aberto Videobrasil - junto com Ana Maria Tavares e José Resende -, encarregou-se de revisar vários pontos concentrados na idéia do "ateliê aberto".
Marcos apontou como esse tipo de ateliê torna possível estabelecer vínculos entre arte e vida, e como seu "deslocamento" implícito gera intercâmbios e possibilidades de coletivo. Assim, o eixo de seu discurso residiu na importância do Festival ter estabelecido uma ponte com a Casa Tomada, espaço onde diferentes artistas são convocados para um ateliê temporal. O que significa que, em algum momento, esses artistas terão de entrar nos trabalhos de seus vizinhos, um fato extraordinário, e quase impossível, nas cidades de nosso tempo. Afinal ninguém sabe o que o outro está criado no apartamento, sala, prédio ou, ainda, quarto do lado.
A residência, diz Marcos, "é uma onda que vem desde os anos 90 e que tem mudado a criação, na introdução de um nomadismo sem regras nem parâmetros norteadores". E concluiu: "Não estou fazendo uma panaceia da residência num mundo de conflitos permanentes", mas esta sim pode ser "uma resposta à globalização".
Eduardo de Jesus abriu sua conversa com a seguinte afirmação: "Isto é um paraíso", referindo-se às possibilidades do trabalho entre um festival de arte e a televisão aberta. Seus pontos versaram sobre como estabelecer uma relação entre arte e televisão de uma forma "relacional e não transmissiva", para o que é necessário "mostrar os eixos" e "desvendar suas formas de construção".
Produzir "ensaios audiovisuais que solicitem a atenção do espectador, porque fazem durar mais suas imagens do que é costume", e gerar uma proposta onde "a imagem tenha preponderância sobre o discurso", diz. Para finalizar sua intervenção, Eduardo mostrou as pílulas do programa, encarregadas de anunciar o evento, tão belas quanto instantâneas.
As palavras de Márcio Harum fecharam a mesa. O percurso de Márcio pelo Festival Videobrasil é um trajeto longo, pois ele tem estado presente desde 1996 em cada uma as edições do projeto. Seu discurso centrou-se na questão do "porque apareceram os países da América Latina no panorama de arte do Brasil, agora". Uma questão que aponta diretamente sobre o nome da mostra competitiva chamada "Panoramas do Sul".
Márcio fez um discurso próximo das reflexões da 8a Bienal do Mercosul sobre a geopolítica. Assim, lembrou as diferentes formas de cartografar o território, trazendo dois mapas fundamentais: o de Mercator, 1569, e o de Arno Peters, 1974. Estes mapas, encarregados de descrever o mesmo objeto, a Terra, apresentam um antagonismo em questão de proporções. No mapa de Mercator, Groelândia aparece do tamanho da África, quando é 14 vezes menor, coisa que continua numa relação norte-sul, onde o norte sempre será o privilegiado. É simples, nesse mapa, o ponto de vista, o olho da câmera, está desse lado da esfera e, consequentemente, não deste. O mapa de Peters corrige este "erro"; mas vale dizer que nós continuamos usando o primeiro desses mapas e não o segundo[2].
Mapa versão Peteers, 1974. Em baixo os mapas oficiais que não se correspondem com os tamanhos por terem a linha equatorial deslocada[3].
Dessa forma, privilegiar o Sul e, com isso, aproveitar para revisar as relações entre os artistas latino-americanos, é procurar um outro ponto de vista. Uma outra possível visão do mundo, porém, assim como explicarei mais adiante, esta edição tem um problema no que se refere ao estabelecimento desse ponto.
Após expor este interesse em abrir espaços e relações entre outras geografias, Márcio Harum fechou a mesa e, com ela, a abertura do evento.
2. Um pouco sobre o projeto Videobrasil e o "Regulamento" da convocatória desta edição
O projeto Videobrasil é grande, e tem dado frutos: a base de dados no portal da internet é uma ferramenta de pesquisa que permite uma aproximação sobre o vídeo e sua trajetória. Assim, além de extenso (1983 até hoje), o trajeto tem sido documentado, conservado, organizado e, mais que isso, aberto ao público, o que significa compartilhado.
O percurso de Videobrasil tem duas etapas, a primeira de 1983 a 1991 e a segunda de 1992 até agora, 2011.
Em 1983, o festival foi aberto para dar conta dos trabalhos que vinham sendo realizados em vídeo, reunindo, assim, as possibilidades desse meio desde o sucesso que teve nos anos 70. O vídeo se apresentava como sinônimo de uma liberdade sem antecedentes (assim como o foi a imprensa no século 16), porque 1. escapava de qualquer categorização - rompia os limites entre arte e experiência - e 2. porque era capaz de atravessar a fronteiras sem restrições políticas em plena Guerra Fria, Ditaduras e Apartheid. O vídeo, mais do que produção, era uma possibilidade de comunicação, e é por isso que teve uma relação direta com a arte postal, carimbo ou xerox, todas múltiplas e possíveis de ser compartilhadas sem limites. Videobrasil foi um esforço para abrir as portas desse meio.
Em 1991, começou a parceria com o SESC e nasceu a Fundação Videobrasil dirigida por Solange Farkas; e em 1992 foi realizada a primeira edição do evento em sua nova condição de bienal. A década de 1990 introduziu seus novos suportes, abrindo categorias específicas, para computador ou internet. Porém, em 2003 essas mesmas categorias se dissolveram, pois já não era possível estabelecer uma divisão consistente entre DVD, arte eletrônica ou vídeo.
Nesta última edição, 2011, a colagem chegou a ser total, o festival abandonou seu caráter de "vídeo" e recebeu outras formas de arte, a pintura por exemplo. O que dá conta da problemática profunda que temos hoje, na categorização do conhecimento. De fato, num mundo onde tudo é informação, como estabelecer as fronteiras entre uma coisa e a outra?
Videobrasil é um processo de 28 anos que expõe a arte contemporânea, não só por ter feito um trabalho de arquivo aberto (na web), mas pelo fato de percorrer com ela o assunto de categorização que implicam as novas formas de reprodução e comunicação.
No entanto, a 27a edição do Festival delata uma incoerência, porquanto as partes não conseguiram estabelecer um diálogo. A primeira dissonância reside no título da mostra, "Panoramas do Sul", cujos requisitos, publicados na convocatória, estipulavam:
...artistas visuais nascidos nos países da América Latina, Caribe, África, Ásia (exceto Japão), Europa do Leste, Oriente Médio e Oceânia[4].
Esta eleição de lugares não consegue propor uma rede. De fato, o único vínculo parece ser a inexistência em ditas regiões de um poder político-econômico decisivo. Assim, seu denominador comum não é válido, pois longe de residir nelas, reside nos eixos de poder dos quais o festival quer escapar.
De outra parte, ainda aceitando que o quebra-cabeças do mundo explodiu com a Queda do Muro de Berlim, resulta um tanto difícil conceber artistas da Rússia num "Panorama do Sul". Galina Myznikova e Sergey Petrov, nascidos em Moscou e residentes em Nizhny, a terceira cidade maior da Rússia, não cabem nessa denominação.
Assim, o critério de escolha, já não dos artistas, mas das mesmas regiões fica confuso. Parece que o parâmetro de consistiu em não pertencer ao (já antigo) "Primeiro Mundo". De fato, era possível ser coreano, mas não japonês. O que dá a sensação de uma discriminação investida.
O outro fato é o seguinte, se o critério de participação na mostra teve como denominador uma determinada zona geográfica, resulta estranho apresentar, já não sob a categoria de competidor mas de convidado especial, uma artista de outra zona: Olafur Eliasson[5]. Em resumo, a determinação não é clara, o ponto que regula a escolha, a qual bem pode ser parcial, apaixonada ou política, mas jamais conciliadora ou eclética.
[1] Mário Pedrosa em Jornal do Brasil, "O ponto de vista do crítico", fonte primeira: 17 de janeiro de 1957. Ver: http://juliabuenaventura.blogspot.com/p/mario-pedrosa-por-matta-clark.html (última consulta: 1.11.11)
[2] Ver José Roca Carto-Gráfico: http://bienalmercosul.art.br/blog/wp-content/uploads/cartografico-esp.pdf (última consulta: 11.10.11)
[3] Ver http://blog.asturiesxafrica.org/?tag=mapa-de-peters (última consulta: 11.10.11)
[4] Ver Regulamento: http://www2.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/inscricao17/regulamento_pt.htm (última consulta: 11.10.11)
[5] Olafur Eliasson nasceu em Copenhagen, Dinamarca, e passou sua infância entre esse país e a Islândia. Hoje mora e trabalha na Alemanha.