Condição: Sul
A mesa Hipóteses para o Sul contou com a participação dos curadores Adriano Pedrosa, Bisi Silva (em uma video-entrevista concedida a Marcio Harum), da curadora Manuela Moscoso (que foi convidada substituindo o curador Olu Oguibe, impossibilitado de comparecer) e tendo como debatedora a curadora Cristiana Tejo. A mediação ficou a cargo de Marcio Harum.
A abordagem de aspectos relativos à uma produção e difusão de arte contemporânea produzida nos contextos de um território que vem sendo denominado ‘Circuito Sul‘ (encarado para além de noções geopolíticas) configurou-se como o foco de atenção do debate público destas apresentações. Contextos caracterizados como situações onde tensão política, social e cultural de diversas ordens alteram a produção de informação e a circulação de imagens foram citados como pontos chave para explorar este amplo conceito que configura o termo ‘Circuito Sul’.
Além destas linhas iniciais, a ideia de um ‘Sul Global’ também foi apresentada – noção esta que parece derivar e atualizar uma série de correntes teóricas cujos focos residem em observações e reflexões sobre campos periféricos aos grandes centros globais (econômicos e culturais) e, neste sentido, ‘Sul’ se mostra mais apto a denominar uma condição que uma região. E é assim que podemos observar na programação desta edição do vídeo Brasil, por exemplo, artistas oriundos da Rússia ou do Leste Europeu. De qualquer modo, ‘impulsos curatoriais advindos da esfera prática em direção aos discursos’ que são influenciados por correntes teóricas que abordam fluxos de migrações, traduções e miscigenações formados segundo dinâmicas multiculturais e pós-colonais, formam o panorama conceitual no qual a conversa desta mesa se inseriu. E é necessário lembrar que tais dinâmicas não impactam somente em esferas artísticas e culturais, mas de forma ainda mais contundente nas reconfigurações geopolíticas recentes que vem ocorrendo por todo o globo (desde fins da década de 1980), alterando o campo e o foco de interesse dos centros culturais e econômicos ocidentais, movimento que se torna, assim, a esfera de trabalho implicado nesta condição ‘Sul’.
A entrevista gravada em vídeo com Bisi Silva, curadora e fundadora do CCA Lagos, iniciou as apresentações. Bisi, que estudou na Inglaterra e na França, explicou que seu retorno à Nigéria se deu por fatores diversos: de um lado uma curiosidade e vontade de estabelecer contato direto com uma cena local (Nigeriana e Africana); de outro, uma falta de perspectiva e de possibilidades práticas reais de trabalho na Inglaterra, pois no período em que terminou sua formação (início dos anos 1990) não era comum ainda as políticas de promoção da diversidade, de contratações paritárias e inclusivas e, sendo Bisi de origem africana (e negra), tornava-se difícil adentrar o estreito mundo institucional da arte na Inglaterra. É interessante notar que este último fator gerava uma contradição entre as teorias multiculturais da época e as realidades práticas da profissão curatorial no Reino Unido. Já em Lagos, Bisi encontrou um cenário mais propício no qual poderia estabelecer uma nova plataforma para trabalhar com artistas ‘mais engajados e de um Sul Global’ (África, Caribe e Oriente Médio) situação que seria, segundo sua visão na época, mais difícil de ocorrer em Londres.
Bisi também comentou que é necessário um maior contato entre as diversas nações, etnias e culturas africanas (pois quando falamos de uma perspectiva externa à África, nos referimos a um continente e não a uma nação específica) assim como criar maior diálogo com outras esferas deste ‘Sul’ (por exemplo, o Brasil, citando, por exemplo, seu interesse nas relações, aproximações e diferenças de manifestações da cultura Ioruba em ambos os continentes, e ainda explanou sobre as condições culturais e econômicas assim como das dimensões da cidade de Lagos, que, como uma das dez maiores megalópoles do mundo, apresenta uma velocidade de crescimento e diversidade cultural estrondosas, mas que se diferencia de São Paulo, por exemplo, uma vez que Lagos é menor em extensão territorial e mais densa (uma ‘mega vila’ nas palavras de Bisi). Ela colocou ainda que a noção de um ‘Sul Global’ é importante não apenas para criar campos de diálogo entre atores do Sul (no continente africano), mas como possibilidade de conectar indivíduos e culturas que historicamente não têm interagido, ou seja, vizinhanças que até pouco tempo eram excluídas tanto das redes legitimadoras (hegemônicas e centrais,) quanto de contato entre eles mesmos.
Adriano Pedrosa trouxe à mesa sua recente experiência de curadoria da Bienal de Istambul ‘Untitled (12th Istanbul Biennial)’ – projeto realizado em parceria com o curador costa-riquenho/ alemão Jens Hoffman. Adriano colocou que, em muitos casos, suas curadorias partem de uma observação sobre o contexto e a história das instituições em que vai trabalhar, procurando assim identificar o contexto, respondendo a este não apenas de modo local ou momentâneo, mas configurando uma ação curatorial que se circunscreve dentro de um arco temporal, local e institucional específicos.
Para esta Bienal, a proposta de Pedrosa e Hoffman derivou da observação de certa tradição da Bienal de Istambul em lidar com esferas e diálogos entre arte e política. Porém, agora com uma maior preocupação em basear a experiência artística da mostra nas relações formais e estéticas de práticas visuais informadas pela política, sem necessariamente estarem engajadas em lutas políticas diretas ou como instrumentos para documentá-las (característica presente em muitas edições passadas desta Bienal, marcadamente na última, a 11a edição).
O eixo curatorial foi então inspirado e desenhado na poética de um artista que articula a política, o corpo e temas pessoais com preocupações visuais e estéticas: o cubano/ porto-riquenho Felix Gonzalez-Torres. Esta escolha se deu pelo fato do trabalho de Torres apresentar uma importante aliança entre poética e política, que aborda preocupações formais e linguísticas da arte com temas e conteúdos de um cotidiano político e pessoal que é acessível a todos, tratando de temas como morte, amor, doença, perdas... (É importante lembrar a condição de Torres como imigrante, homossexual e artista engajado, como, por exemplo, em sua atuação no Group Material.) A Bienal era dividida em cinco áreas temáticas que se relacionavam às obras do artista: Abstração, Ross, Passaporte, Historia e Death by Gun – idéias que informavam a fase final do trabalho de Felix Gonzales Torres, antes que morresse em consequência de Aids em 1996.
Adriano explicou que a articulação do projeto curatorial ocorreu numa tênue linha entre preocupações formais, políticas e de linguagem, explorando padrões de visualidade que por vezes procuravam linhas derivadas de narrativas oficiais da arte ou de interpretações miscigenadas de movimentos e correntes culturais diversas. Desdobrada entre salas temáticas coletivas e núcleos de projetos individuais, a Bienal de Istambul procurava dar maior ênfase à mostra – manifestação primeira da produção de arte e que não quer dizer menor atenção às esferas de mediação de um evento como tal, ou seja, os catálogos, programas educativos e seminários. Porém, com um caráter que apresentava maior atenção e força aos aspectos formais do que aos políticos, nesta Bienal é possível reconhecer uma espécie de alinhamento ou. ao menos. referência a um tipo de curadoria (mais tradicional) pautada em uma ação que privilegia a objetualidade e materialidade da obra de arte que leve a diálogos entre matérias, artistas e raciocínios visuais, geradores assim das linhas de significação, de discursos, de associações e de referências do projeto. As impressões da fala de Adriano, e do vídeo documental que exibiu, nos deram a sensação de um projeto pautado em um jogo entre leituras mais sérias e intelectuais aliadas ao prazer da experiência estética-visual, fornecendo espaço a novos diálogos, ampliando e alterando a forma com que vemos certas esferas do mundo; configurando-se como impulsos visuais constituintes de esferas complementares da experiência artística (estética, materialidade cultural e política).
Diferentes formas para o papel do curador configurou-se como foco da fala da colombiana Manuela Moscoso, que apresentou ainda um estudo de caso sobre Quito como ilustração de sua reflexão. Artista formada em Londres, Manuela fixou-se em Madri logo após graduar-se na Saint Martin School, iniciando em 2001 juntamente com a artista Patricia Esquivias o espaço alternativo 29 enchufes (29 tomadas). Como um espaço organizado e gerido por artistas, este foi iniciado de forma mais orgânica e gradualmente dirigiu-se a ações específicas nos contextos locais. Posteriormente o projeto termina, e um novo espaço surge, em um contexto comercial numa uma alameda de comércio, onde os artistas participantes são chamados a lidar e responder a esta condição ‘comercial’ daquele novo contexto. Neste momento Manuela opta por continuar na área de curadoria e deixa sua produção plástica. Ela frisa que, apesar da Espanha ser considerada um ‘Sul Europeu’, existia até há pouco tempo um sistema de suporte e financiamento artísticos incríveis, mas que de certo modo era guiado por questões relativas à identidade e nacionalidade (questões orientadas por certos discursos e ideologias) e que acabavam por definir demasiadamente o acesso às bolsas e aos suportes financeiros.
Manuela também comenta, como parte da introdução de seu percurso curatorial, a organização da mostra Antes de Todo, uma exposição co-curada com Aimar Arriola no CA2M (2010, Madrid) e que teve como foco a produção artística espanhola dos últimos 20 anos, focando não em influências históricas, mas sim em diálogos geracionais. Depois de uma pausa em sua carreira, onde retornou à academia para um mestrado em estudos curatoriais no Bard College, Manuela agora está baseada em Nova York, trabalhando na Bienal do Queens Museum (que funciona através de chamada aberta): uma curadoria colaborativa cujo foco aponta para uma espécie de mapeamento de artistas que vivem e trabalham no bairro do Queens, possuindo também uma diretriz de buscar artistas que ainda não estejam inseridos no sistema de arte. A multiculturalidade do bairro foi colocada como um fator de preocupação (por poder determinar demasiadamente as escolhas e reforçar uma ideia superficial de internacionalismo), mas, segundo Manuela, ao final os resultados da chamada aberta foram surpreendentes. Manuela terminou esta parte de sua fala explicando seus interesses em uma relativamente nova linha filosófica, o Realismo Especulativo, que dialoga com campos da antropologia e sociologia (com autores como Viveiros de Castro, Bruno Latour, entre outros) e que informa diversas possibilidades de especulações (de diversas ordens) sobre as relações entre material/ imaterial, e que agora ocupam o interesse da curadora.
A segunda parte da fala de Moscoso tratou da cena cultural do Equador, onde tem atuado mais como observadora (pois apesar de ter nascido em Bogotá, Manuela cresceu em Quito), abordando ao final alguns aspectos de uma nova cena coletiva que esta se desenvolvendo no País. Nesta cidade, explicou Manuela, antes não havia estrutura alguma para arte contemporânea, fator que se altera agora com um novo momento que vem se configurando, ao passo de uma maior estabilidade política e social. Situado entre Peru e Colômbia, dois fatores são importantes para entender a situação cultural do atual Equador: a história do pintor Oswaldo Guaizamin e a crise econômico-política dos anos 1990. Manuela explica que Guaizamin foi um dos expoentes artísticos (internacionais) do Equador. Prolífico, tratava das mazelas e problemas sociais da região, utilizando uma espécie de realismo expressionista e simbolismo revolucionário. Porém, este foi também um grande comerciante e uma espécie de embaixador da arte equatoriana, estabelecendo uma espécie de monopólio sobre uma certa produção de visualidade no país, atuando muitas vezes com pouca generosidade diante de outros artistas e obtendo um enriquecimento financeiro considerável. Num contexto frágil como o de Quito, qualquer iniciativa feita pelo pintor, por menor que fosse, teria surtido efeito benéfico caso fosse implantado de forma mais aberta democrática, fato que não ocorreu, pois a única coisa que este deixou foi um museu particular dedicado a promover sua própria obra.
O segundo ponto tratado por Manuela é relativo à crise dos anos 1990 no Equador: um fator pouco divulgado e agravado pelo fenômeno do furacão el niño que, aliado à queda do preço do petróleo em 1999 e a uma instabilidade política (na qual diversos presidentes passaram pelo governo, chegando a ter três em uma única semana) devastou o país física e moralmente. Mas, em 2001 na universidade de Quito, fundou-se o primeiro curso de Belas Artes que, ao misturar três gerações distintas de artistas e dar uma grande liberdade curricular, fomenta uma nova série de iniciativas, mostras e coletivos que surgem a partir deste contexto. Deste cenário temos, por exemplo, o SAPO Inc.: grupo que realizava de forma coletiva projetos específicos de indivíduos, como uma forma de produção coletiva e generosa que almejava potencializar e produzir ideias que, para o grupo, poderiam ser interessantes como execução e apostas de sucesso. Outra iniciativa citada é a cooperativa Seleta: um grupo de interessados em aspectos do folclore e arte popular (textos, escrituras e visualidade), e ainda o Transvia Zero, que passa a atuar de forma local e situacional no sul da cidade de Quito, em bairros mais periféricos, menos organizados (e assim problemáticos). Estas ações específicas buscam engajar-se em situações sociais e participativas como foco principal. A fala de Manuela trouxe um bom impacto sobre a observação de que hoje os produtores de arte e cultura migram e mudam de papéis a todo momento (artista, curador, editor, produtor, agitador, critico...), revelando que uma noção fixa de papéis não é a única forma de gerar produtos e tecidos culturais saudáveis, e que um ambiente mais ‘poroso’ também pode injetar novos ares em cenas desacreditadas.
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Na abertura ao debate público, Marcio Harum citou um trecho do texto ‘Geopolítica Cafetinagem’ (Suely Rolnik, 2005) e passou a palavra à debatedora Cristiana Tejo. Ela apontou sua opção (política e até ideológica) em ficar no Nordeste do Brasil, e atuar ali buscando desenvolver uma base local ao mesmo tempo que busca diálogos mais globais, e pergunta: “Quando somos o Sul? Quando deixamos de ser periferia e nos tornamos centro?” Seguindo este raciocínio, fez referência ao termo ‘zonas de silêncio’ usado por Gerardo Mosquera para tratar da falta de ligação direta (dialógica e infra-estrutural) entre países ou regiões vizinhas. Este termo é evocado como metáfora para entender certas dinâmica de dependência do ‘Sul’ em relação aos centros de legitimação da produção da arte, legitimação essa que primeiramente é cultural e reflete-se na esfera econômica. Como entender essa nova geopolítica e economia da relação agora estremecida entre Sul > Norte? Cristiana terminou perguntando: “Até quando seremos Sul (o Brasil)?” E se “as vias de legitimação estão já descentralizadas ou não”.
Adriano frisa que é importante estabelecer certo distanciamento crítico frente às pressões que advém do crescimento e aumento de interesse nesse ‘Sul’, advogando que é necessário manter o caráter experimental e de liberdade que a condição ‘Sul’ nos dá, citando como exemplo a Bienal de São Paulo e o perigo que vetores de mercado (baseados em interesses hegemônicos) possam ameaçar as possibilidades de discursos alternativos e produções mais autônomas ao tentar inscrever uma subjetividade hegemônica em uma situação local (através de uma grande instituição).
Assim, podemos constatar um problema que se refere a como são sustentados estes eventos e iniciativas de arte em regiões diversas deste amplo “Sul Global” (há aqui o perigo de homogeneizar um campo vasto e diverso, assim como suas particularidades e riquezas). A dependência econômica de apoiadores externos (do chamado ‘eixo Norte’) é uma marca presente nas esferas culturais do Sul, e se configura (por bem ou por mal) como uma situação contraditória de diálogo ao mesmo tempo possível e instável. Por exemplo, apesar de apresentar um engajamento real com a cena e contextos locais, o CCA Lagos mantém-se quase que totalmente com recursos e patrocínios do ‘Norte’ (por exemplo, da Mondrian Foundation, Prince Claus Fund, entre outros), e sem estes sua existência seria praticamente inviável. E esta é uma situação recorrente em grande parte, senão na maioria, das instituições deste ‘Sul Global’ (basta observarmos como são patrocinados e apoiados em parte o próprio Videobrasil, ou a Residência Capacete, ambos no Brasil).
Então, ser independente no Sul significaria ser sempre dependente (ainda que parcialmente e de forma relativamente livre) do Norte, a fim de escapar dos interesses locais, uma vez que estão mais próximos? Ou, em que medida estes órgãos de fomento externos influenciam as cenas locais? Qual é a relação de dependência que se cria nestas condições? Seria o apoio externo a única forma de sustentação destas plataformas culturais, ou outro movimento paralelo e em cooperação (arte/ sociedade civil/ governo) deve ser desenhado, a fim de criar, fortalecer e entender que há sempre economias e políticas implicadas nestas realidades culturais? Seria o caso de aliar-se ao capital local como outra forma de sustentação, mas que apresenta um grande perigo de instrumentalização, o que configuraria já um ato também de colonização ou exploração (mesmo que interna)? Em que medida a inclusão destas zonas periféricas sob um grande conceito (Sul Global) de fato abre novos vetores locais, ou apenas funciona como mais uma plataforma de entrada para influências externas? Como desenhar um campo de diálogo, engajando-se mais e mais em contextos locais a fim de gerar maior independência? Estas parecem ser algumas das perguntas que continuarão a atravessar os fluxos deste novo ‘Sul Global’ e com as quais, mais cedo ou mais tarde, teremos que lidar.
E se a tarefa de fato não é fácil, dada a escassez de recursos destinados à cultura nestas regiões ‘Sul’, também é passível de observação o fato que ‘arte’ em certos contextos deste ‘Sul Global’ é artigo de luxo. Torna-se difícil vislumbrar saídas ou alternativas a esta estranha condição de diálogo e de dependências em suas ordens diversas. Mas talvez sejam exatamente nestas condições – em seus problemas, particularidades e precariedades, e as formas com que localmente estas são enfrentadas – onde parece residir o diferencial entre Sul e Norte que deveria talvez ganhar maior espaço e foco, permitindo que a partir destas possam-se desdobrar ações culturais, programas públicos e uma agenda de trabalho comum. Senão, permaneceremos, de certo modo, sob a influência de agendas externas, que como sabemos não são neutras, obviamente, e são passíveis de atuarem de formas relativamente colonizadoras. Surge então uma pergunta final: como pode o crescente Sul Global, agora num momento de crise mundial (ou seja, crise do Norte, de uma cultura de capital em relativo declínio), aumentar a sua autonomia sem perder o diálogo com o Norte ou sucumbir às mazelas de um desenvolvimento não partilhado, baseado apenas e ganhos econômicos e de mercado? De fato, não será replicando as mesmas estratégias e modelos do Norte, mas desenvolvendo, a partir das especificidades locais e contextuais, vetores e ações culturais que, quando partilhados, façam sentido e sejam acessíveis para aqueles que ali transitam e sobrevivem.