Acesso em reverso - relato crítico de todas as atividades
Relato Mesa 1 – dia 25/11 – quarta, das 10h às 12h30
“Cultura de Acessibilidade e “Acesso à cultura”
Se o termo cultura refere-se às manifestações humanas constantemente reproduzidas no ínterim de determinada sociedade, como é possível discutir sobre a acessibilidade que esta mesma gera ao seu patrimônio identitário? Aliás, porque é necessária a construção de acessos aos bens culturais se os produtos artísticos já nascem das relações construídas nas manifestações coletivas.
À acepção antropológica e sociológica de cultura, representando um modo vida universal, soma-se também o sentido mais comum empregado ao termo, como uma junção de atividades artísticas e práticas significativas e neste campo podemos citar a linguagem, as artes e a comunicação.
Assim, por meio destas linhas de raciocínio, defendidas por Raymond Williams, na qual “a sociologia da cultura deve preocupar-se com problemas gerais e específicos da organização cultural” aconteceu o início dos debates, no Seminário sobre Cultura e Acessibilidade, que ocorreu de 25 a 27 de novembro de 2009. A idealização partiu do Centro Cultural da Espanha em São Paulo – CCE/AECID e do Centro Cultural São Paulo – CCSP e também com o apoio do British Council.
Se a cultura dialoga constantemente com a sua produção, transferindo muitas vezes a arte para esfera do consumo, a determinação dos fluxos gera as concepções de poder cultural e do poder individual diante de tais percepções. A princípio temos aqui discussões iniciadas em 1947, suscitadas por Adorno e Horkheimer, em Dialektik der Aufklãrung (Dialética do Iluminismo), com a criação do termo indústria cultural ou mesmo podemos também identificar os conceitos de sociedade em rede, de Manuel Castells e sua argumentação sobre os novos fluxos de poder.
Mas a proposta não foi discutir acessibilidade apenas como algo já criticado nas teorias de cultura de massa ou mesmo na cultura do espetáculo, a abordagem do seminário trouxe a conversa ao plano individual e a exploração inerente a cada singularidade humana. A potência como o simulacro revelador da estrutura clássica imanente, sobretudo a potência automática da invenção ou, em palavras deleuzianas, a própria simulação.
Neste ínterim, ao debater a existencialização humana e como conseqüência seus acessos e modos de sociabilização deu-se início a primeira mesa “Cultura de Acessibilidade” e “Acesso à cultura”, com a participação do historiador Nicolau Sevcenko, professor de História da Cultura da USP e o filósofo Peter Pál Pelbart, professor da PUC-SP. Juntaram-se ao debate também Ana Tomé, diretora do CCE-SP, Martin Grossmann, diretor do CCSP e o secretário municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida, Marcos Belizário.
Para o filósofo Pelbart pode-se concluir que é mais fácil pensar numa massa, na qual somos todos iguais do que enfrentar a diversidade, pois a singularidade afirma a potência. A acessibilidade encobre o despreparo da sociedade em lidar com as diferenças, interferindo na blindagem individual de cada um na busca por normalizar seu próprio mundo. O fato de afetar e ser afetado corrobora e estimularia o convívio coletivo. Sua explanação reafirmou que a inclusão não é só para a deficiência, mas para uma imensa maioria, na qual nem sempre as diferenças são visíveis e aparentes.
A escolha por um debate filosófico na abertura do dia foi apenas o começo das questões sobre construção social e política que envolvem a cultura, partindo de uma grade programação iniciada com um embate macro-cultural e a análise do papel das mediações até chegar à apresentação de propostas efetivas.
Cabe ressaltar alguns pontos da proposta do seminário. Primeiro, o fato ter sido idealizado por diferentes núcleos culturais da cidade de São Paulo, colocando-os no papel de receptores de críticas e multiplicadores das demandas relativas à acessibilidade em São Paulo. Segundo, o fato de não ser vinculado apenas à academia ou órgãos políticos, o que agrega um público mais heterogêneo. E, por fim, é significativamente positivo assumir que centros culturais não oferecerem apenas os produtos artísticos, mas também assumem uma posição de co-autoria no pensamento da participação do indivíduo na formação das instituições culturais.
Sendo assim, de um lado a diretora do Centro Cultural da Espanha em São Paulo, Ana Tomé comentou “O CCE-SP por ser totalmente descentralizado permite que a instituição conheça bem a realidade cultural da cidade” e, por outro lado expôs o diretor, do CCSP, Martin Grossmann, sobre a viabilização de atividades culturais dentro de um espaço com mais de 50.000m2 e que luta para se democratizar mais a cada dia. “Navegar no mundo da cultura isoladamente não é possível, mas sim com uma ampliação dos horizontes. Cultura não deve ser algo que impõe, mas que se envolve”
Dentro do espectro de discussão sobre acessibilidade e cultura não foi esquecido o papel da universidade pública e neste caso a menção foi direcionada à Universidade de São Paulo - USP, definida como um “castelo”, uma fonte de saber muitas vezes não acessível a sua população, comentou Nicolau Sevcenko. “A cidade de São Paulo é hostil”.
O professor argumentou sobre a política consensual, compreendendo sua amplitude e o rigor do enclausuramento da sociedade. Sua fala relembrou as leis e as primeiras adaptações das calçadas da cidade de São Paulo, mas complementa que ainda é muito pouco: “A construção ética da acessibilidade faz parte da educação pública, são necessárias novas disciplinas nas faculdades de engenharia e design, a sociedade necessita ser conscientizada”.
Sevcenko participou pela internet, via skype, e em alguns momentos foi difícil interpretarmos sua fala, primeiramente pelo som distante e segundo por problemas de conexão. Mas não por isso sua mensagem não foi passada, pelo contrário, o historiador defendeu a cultura de acessibilidade como algo tangível e possível, mas no Brasil ainda muito pouco desenvolvido, devido à lentidão das políticas voltadas ao tema. Sua argumentação diferenciou os conceitos de “acesso à cultura” e “cultura de acessibilidade”.
“A cultura não pode ser gerida pelo Estado. A cultura acontece onde as pessoas estão mesmo que tal público não desloque-se de lá”, afirma Sevcenko. A cultura de acessibilidade agrega a “estética do acesso”, de fragmentação cultural, relembrando do-it-yorself, ou o DIY, em português faça-você-mesmo, uma atitude a qual todos os grupos culturais, sejam estes ligados à dança, teatro, música, artes plásticas estão subordinados. Em seu livro A corrida para o século XXI – No loop da montanha russa , o autor esclarece que para confrontar essa apropriação da cultura pelas elites dominantes, pela política e pelo mercado grupos autônomos de várias partes do mundo decidiram criar uma antiestética das ruas.
Sevcenko acredita no desenvolvimento da acessibilidade cultural quando a estética do acesso for capaz de formar a cultura do acesso. Em vez dos canais convencionais, contaminados pelo conservadorismo, o que praticamente neutraliza o debate político.
A platéia não pode deixar de ser mencionada, apesar de contar com uma escassa participação de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, a participação de dirigentes de órgãos culturais, vinculados à prefeitura a ONGs foi mais expressiva. Questões sobre acessibilidade levantaram o debate nesta primeira mesa do seminário. Foram lembrados os 18 anos da lei Rouanet, quando até então ainda 50% dos recursos públicos captados ficam nas mãos de um seleto grupo de produtores culturais do eixo Rio-São Paulo.
No que diz respeito às leis o seminário pode contar com a participação do secretario municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida, Marcos Belizário. Seu relato foi sobre os critérios básicos para a promoção da acessibilidade, por intermédio da eliminação de obstáculos nas vias e espaços públicos, na construção de edifícios, nos meios de transporte, serviços de comunicação, entre outros. “A cidade de São Paulo possui 30 mil km de calçadas e a quase totalidade delas é inviável para a circulação de pessoas com alguma deficiência”.
Marcos Belizário ainda ressaltou “Existe um projeto de expansão de todas as bibliotecas municipais para adaptação ao Braille, porém, os prédios culturais são antigos e possuem problemas de engenharia técnica. A proposta é criar acessibilidade em todos os 4 mil prédios públicos, principalmente, os culturais”.
Nas indagações que permeiam a acessibilidade e a cultura Peter Pal Perbalt trouxe à discussão o pensamento de Gilles Deleuze, a crise do comum e o estado de descrença. As formas que pareciam garantir consistência aos laços sociais entraram em crise, onde agora somos vítimas do comum e do puro espectro. “A partir da segunda guerra mundial apareceram os clichês, somente assim foi possível encontrar o real filtrando o mundo”. Já não acreditamos mais nos clichês, portanto não acreditamos mais no mundo e ainda relembrou Nietzsche “Talvez caiba às artes nos devolver a crença no mundo”.
Para Deleuze criar é resistir e resistir não é apenas dizer não, mas sim inventar. Perbalt fala sobre um capitalismo cognitivo que nos trouxe faculdades ao que é mais comum. Um capitalismo em rede ou até rizomático, aquilo o que se faz comum é posto para trabalhar em comum, colocando em circulação aquilo que já patrimônio de todos, seja a linguagem ou a própria vida. Isso se faz acompanhar a expropriação do comum empreendida pelas empresas, máfias e Estado. “A linguagem tornou-se o cerne da intelectualidade de massa, com a circulação ininterrupta de fluxos. O comum passa hoje pelo agenciamento vital material e semiótico, que é hoje o núcleo da produção de vida. É a potencia de vida comum. O comum é o que é visado pelo capitalismo. O comum é uma matéria anorgânica”
Já multidão, adiciona Perbalt é o contrário de massa. Massa é homogêneo. Multidão é a heterogeneidade. No fundo a multidão é dinâmica entre o comum e o singular. Invenções de modos de vida, invenção de novos possíveis. “Na comunidade não é mais a relação do mesmo com o mesmo, mas sim do outro com o outro” e conclui “estamos falando do socialismo das distancias de Barthes”, algo como uma solidão interrompida de maneira regrada, um comum às distâncias.
Por fim, a filosofia existencial de Pelbart nos trouxe a noção de quando a cultura é um impedimento, questionando o coletivo e referindo-se ao grau de potência do indivíduo, o poder de afetar e ser afetado. Talvez poderíamos acrescentar dentro deste campo do afetar também a palavra acessar e o conceito de tornar o convívio acessível.
Iniciou-se assim, emblemático, do individual para o coletivo e de dentro para fora, o Acesso em Reverso, um seminário de discussão sobre acessibilidade que se propôs a ocorrer no berço de um dos maiores núcleos de exposições e representações artísticas de São Paulo. Admitindo questões sobre como um ser humano deve assumir um outro no seu mundo e conservar as relações da mutação social que almejamos. Será possível a permissão do papel de afetados? Segundo a fala de Pelbart, “somente descobriremos ao sabor dos encontros”.
Relato Oficina 1 – Dia 25, das 14h às 17h
Dimensões do Acesso à Cultura
Se a discussão da parte da manhã instigou o público, a oficina na parte da tarde corroborou a fala do filósofo Peter Pál Pelbart por meio de uma conversa em forma de bate-papo com os participantes do seminário. O tema foi acessibilidade e a participação dos indivíduos na cultura. O horário, quarta-feira à tarde, é demasiadamente complicado, mas, embora, não existissem muitos profissionais de departamentos de mediação e comunicação de outras instituições, os profissionais do próprio Centro Cultural São Paulo participaram significativamente.
Pelbart, além de ser professor de filosofia, coordena um grupo de teatro que pesquisa novas linguagens, experimentando diversas estéticas: a Cia. Teatral Ueinzz, formada por pessoas com distúrbios mentais. Seu objetivo na oficina foi trocar suas experiências com os demais participantes, discorrendo sobre arte, coletivo e individualismo. “O objetivo é através do olhar interpretativo do teatro ponderar sobre as diferenças. E perguntar sobre o lugar da vida verdadeira. Qual é? E qual será?
Durante a oficina Pelbart novamente nos presenteou com os pensamentos de Deleuze, Foucault e Nietzsche, sempre oferecendo ao seu público “a aventura de pensar diferente do seu pensamento” e como desmontar as figuras prontas. “Às vezes é preciso suspender a máquina do mundo, somos prisioneiros da distribuição dos papéis.”
O debate consistiu no controle da vida e no fato de estarmos todos nos controlando ao mesmo tempo, dentro de uma perspectiva foucaultiana. No contexto contemporâneo, para Pelbart, “O poder tomou de assalto à vida, o poder penetrou todas as esferas da existência. O poder é o capital e até mesmo as instituições culturais. O poder é exercido em rede, incidindo nas maneiras de perceber, amar e criar. Mesmo a vida onírica não foge aos mecanismos de controle. O poder não se exerce desde fora, mas sim por dentro – o biopoder e a biopotência”.
Segundo sua argumentação, a força invenção, a própria vida revida, as maneiras de ver, sentir e pensar e até morar, por mais singulares que sejam tornam-se interesse do capital. O capital se apropria da subjetividade. Já a subjetividade é um capital biopolítico.
Diante do bate-papo cada participante contou um pouco de suas experiências inclusivas, colaborando individualmente com a afirmação ou negação das próprias experiências em relação à acessibilidade. Trabalhou-se a noção do coletivo dentro das diferenças visíveis e aparentes e dentro da qual entendeu-se que a singularidade segue sempre afirmando a potência.
A cultura de defesa das minorias cristalizou identidades de guetos, inclusão e encarceramento e segundo o grupo, há de se tomar cuidado e repensar sobre conceitos de paternalismos, vitimização, protecionismo, assistencialismo e impotência auto-vitimada. A acessibilidade deve primeiramente transparecer de um processo interno até atingir o todo. Deve-se levar em conta não normalizar a diferença e sim o que fazer para afetar e ser afetado na ambição de tornar-se uma potencia de fato.
Nesta ocasião aconteceu uma crítica positiva dos funcionários do CCSP sobre o seu próprio espaço, e o cuidado para a acessibilidade não reverberar-se apenas como uma ferramenta marketing para as instituições culturais.
Relato Mesa 2 – dia 25/11 - das 17h30 às 19h30
Mesa de apresentação de projetos e práticas
Cultura de acessibilidade e Acesso à Cultura
A última mesa do primeiro dia de seminário foi totalmente diferente da carga teórico-filosófica que permeou a manhã do evento. As contribuições e apresentações foram pautadas em projetos práticos com a mediação de Flavio Scavasin, coordenador de programas da Secretaria Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência, mais a participação da publicitária Isabela Abreu, do Grupo Terra e Cultura de Acessibilidade, além de Ariana Chediak, terapeuta ocupacional e cineasta e os profissionais e consultores de avaliação Marieta Boimel, Antonio Carlos Grandi, da empresa social Museus acessíveis.
Infelizmente, a discussão aconteceu com poucas pessoas na platéia e a presença de dois deficientes visuais na mesa trouxe mais argumentações fidedignas aos projetos apresentados. Flavio Scavasin iniciou a abertura da mesa com a demonstração de novos projetos da secretaria, como uma parceria com Faculdade de Educação da USP para a realização de cursos de áudio-descrição e a criação de maquetes ambientadas em instituições culturais de São Paulo.
Segundo os dados divulgados em sua fala, as ações ainda são poucas e a cidade precisa gerar muito mais acessibilidade aos seus cidadãos. “O censo de 2000 demonstrou a existência de cerca de 25 milhões de pessoas com deficiência. Tratando-se apenas das questões visuais são mais de 16 milhões. Agora, provavelmente, se consideramos as pessoas com mais idade e que começam também diagnosticar problemas, ultrapassamos estes números facilmente.”
Isabela Abreu trouxe a experiência iniciada no ano de 2002 do Grupo Terra e Cultura de acessibilidade, que tem por objetivo contribuir com a qualidade de vida das pessoas com deficiência visual por meio de passeios ao ar livre. As atividades acontecem sempre na proporção direta de voluntários para atender todos os participantes do grupo, ou seja, um voluntário para cada deficiente visual. Os passeios visam a troca de experiência e o acesso à cultura, descrevendo as mais diversas sensações e percepções de cada detalhe do lugar visitado, que poderá ser um museu, teatro, parques ou mesmo passeios a praias e cachoeiras por meio de trilhas.
“Como fazer a natureza se tornar acessível, com tantos obstáculos físicos, para quem não enxerga?”, começou a argumentação de Isabela. “A acessibilidade na natureza passa por três pontos: o sentir, a áudio-descrição (como você percebe que é belo através do outro, a observação dos detalhes) e a sistematização dos processos.” Em seguida, sua sugestão foi uma atividade prática para o entendimento de seu trabalho. Os participantes da platéia vendaram os olhos e trabalhando em duplas, um vendado e o outro não, cada um descreveu uma série de fotos que aparecia no telão.
“Não é preciso ver para sentir. A natureza nos ajuda a despertar os outros sentidos. Para admirá-la precisamos somente interpretar o contexto dos significados. Se você acha algo bonito, uma pessoa cega também pode achar”, finalizou Isabela.
Ariana Chediak contou como foi possível aliar a produção cinematográfica de dois filmes a sua experiência profissional como terapeuta ocupacional. Primeiro, Zona Desconhecida; um curta-metragem, que aborda a sexualidade de pessoas com deficiência física através da personagem Mara Gabrilli, hoje, então, vereadora da cidade de São Paulo. Segundo, o documentário Cidade dos Anões, produzido no sertão de Sergipe, em Itabaianinha, a 120 quilômetros de Aracaju, onde a cada 300 moradores, um é anão, uma incidência na média populacional cerca de 20 vezes maior do que a brasileira.
“Discutimos a deficiência, mas pouco se fala do ananismo. Somente a partir de 1999, com as cotas, os anões começaram a ser reconhecidos como pessoas com mobilidade reduzida. As pessoas de Itabaianinha nunca ouviram falar de acessibilidade. É uma cidade explorada pela mídia e, em razão disso, muitos não queriam gravar.”, comentou Ariana.
Já a última apresentação do dia foi dedicada aos projetos criados para a difusão da acessibilidade cultural da Museu Acessíveis, cujos objetivos são a formação teórica e prática, seminários e a formação de educadores e agentes. Os trabalhos divergem entre a elaboração de áudio-guias, produtos isolados, treinamentos de equipes, cartilhas, comunicação acessível e publicações alternativas.
Dentre as experiências que Marieta Boimel e Antonio Carlos Grandi, ambos deficientes visuais, trouxeram destacam-se as maquetes táteis dos edifícios, a criação de sonorizações, percursos multissensoriais de esculturas e pinturas e folder informativos dos centros culturais ou mesmo catálogos de obras do acervo em Braille, com imagens em relevo.
“Dizer que a visita aos museus é uma atividade banida da vida dos deficientes visuais não é verdade. Quando o museu obedece a critérios de acessibilidade a visita é tão prazerosa quanto ir a um teatro, concerto ou show”, afirma Marieta.
Antonio Carlos, professor de biologia a agora instrutor de informática comenta o fato exposto sobre uma criança com deficiência visual conhecer o que é um mosquito da dengue manuseando um protótipo feito de arame. “A acessibilidade deve ser um fato natural na vida das pessoas. Os limites estão dentro de nós mesmos. Ao se perder a visão prestamos atenção nos outros sentidos e ganhamos sensibilidade”. Logo após, Marieta complementa: “Na verdade, com o passar dos anos esquecemos que não enxergamos. Eu hoje creio que enxergo, mas do meu jeito”.
O final do primeiro dia de seminário alcançou uma interpretação bastante sinestésica sobre as relações humanas em relação ao quanto de estímulos desperdiçamos na organização de uma sociedade pautada significativamente na visão. A visualidade muitas vezes embute semelhanças com o objeto concebido ou imaginado a partir de seu fundamento, mas nem sempre é uma garantia de representatividade. Principalmente, sendo imagem um conjunto de signos distribuídos em um espaço concreto, seja este virtual ou pensamento.
O debate suscitou, mesmo que involuntariamente, questões semióticas pela interpretação de natureza humana e pelo processo mental que ocorre no indivíduo quando iniciada a recepção das mensagens. Pois, pelo o viés da fenomenologia, como algo inerente às vontades humanas e com significados geradores de conhecimento decifráveis, interpôs uma crítica à consciência e o que é percebido, conseguindo ir além da evidência dualista de percepção, que coloca o mundo exterior muitas vezes dentro de uma perspectiva cartesiana.
Os projetos apresentados nesta mesa convergiram esteticamente por não enfatizarem apenas uma percepção de sentido ou estética. Neste contexto, observou-se uma dedicação à sensorialidade em oposição ao materialismo da objetividade científica. As três experiências relatadas traduziram uma característica artística e sútil que refere-se ao trabalho da expansão sensorial, habilidade inerente e presente em todo ser humano, independente de deficiencias específicas e que muitas vezes é esquecido nas agendas das instituições que promovem cultura na cidade de São Paulo.
Relato Mesa 3 – dia 26/11 - das 10h às 12h30
Paisagem Circulação e acesso
O segundo dia de seminário objetivou demarcar os trabalhos desenvolvidos na área de circulação e acesso e começou com a presença do professor Euler Sandeville, arquiteto, urbanista, arte-educador, mestre e doutor em estruturas ambientais urbanas e professor da USP.
Euler Sandeville inicia sua fala solicitando às pessoas que se depreendam da noção de paisagem como uma realidade visual ou uma simples apreciação estética. Mas como múltiplas possibilidades de contato humano com a natureza. Sua participação teve início com a apresentação do projeto Espiral da Sensibilidade e do Conhecimento, que tem como base a experiência de paisagem compartilhada e socialmente construída.
Sandeville explica que a Espiral realiza trabalhos com pessoas em processo de exclusão por meio de intervenções do espaço público, intervenção de processos naturais e sensibilização em áreas naturais, gestão urbana, incorporando uma metodologia colaborativa. Alguns trabalhos expostos foram realizados em Heliópolis, outros na Brasilândia, na Serra da Cantareira, em Embú, comunidades quilombolas no Vale do Ribeira e em Goiás, há também na Zona da Mata e em Santa Catarina, entre outros. “Realizamos trabalhos experimentais e podem não dar certo, enquanto resultado, mas sim como aprendizado”
“A investigação consiste em focos culturais das paisagens, com a imersão e vivencia do pesquisador, a proposta resume-se em aprender em ação com os outros, por contatos assistemáticos, experimental e interdisciplinar. As paisagens são as nossas rupturas, ela não está lá para indicar o que vida é, mas para ser”, explica Sandeville.
O professor defende que sua meta é trocar as belas vistas por visões de mundo. “Nós não olhamos para a paisagem, nos estamos nela porque a beleza é um modo de ver que se aprende. Tornamo-nos conscientes na paisagem e não da paisagem. Estudar a paisagem é entender a cultura, discutir a paisagem é discutir como nos vemos, nos vimos e como queremos ser vistos.”
Sua visão é de que a paisagem é uma construção complexa territorial do humano e subjetiva da vida. Uma ação que só podemos crescer e avançar com os outros. “Somos responsáveis pela paisagem, embora, muitas vezes as nações neguem e anulem tal questão. As paisagens não são imagens, são lugares da existência, neste planeta maravilhoso, mas muito injusto.”, complementa Sandeville.
Estudar a paisagem é estudar a geografia cultural. É reconhecer como seremos vistos como sociedade. “A satisfação é maior com o retrato do que o retratado. A paisagem muitas vezes incomoda e muito”. Para Sandeville as paisagens são a nossa cultura e a acessibilidade envolve o cerne desta questão. A sociedade é deficiente na medida em que a mesma não consegue atender-se. “Mais do que o arquiteto, o engenheiro ou o político podem fazer pela cidade é o que a cidade pode fazer por eles”, conclui.
A segunda apresentação da mesa foi do espanhol Francesc Aragall, professor na Universidade de Barcelona e na Universidade de Lisboa, presidente do Comitê de Coordenação do Design for All, do grupo de trabalho para acessibilidade na Prefeitura de Barcelona, do European Concept for Accessibility Network e da Sociedade Ibérica de Biomecânicas e da Associação Espanhola Ergonômica.
Aragall iniciou sua argumentação com a seguinte questão: “Nós seres humanos somos distintos e a riqueza da humanidade vem de sermos diferentes. Todos em algum momento vida terão dificuldades, sejam limitações físicas ou intelectuais.”
“Eu ainda não sei o que é uma pessoa com deficiência. O máximo que consegui concluir é que tal pessoa possui direitos diferentes dos outros e a acessibilidade não é algo apenas para pessoas com deficiência.”, complementou.
Aragall preside a Design for All, instituição cuja meta é o desenvolvimento de ambientes, produtos e serviços acessíveis para o uso coletivo, sejam estes locais públicos ou privados. Por meio de trabalhos em alguns países, principalmente na Europa, o professor conta que a DFA oferece desenhos de objetos e espaços para serem usados por todos, na sua máxima aplicação possível, sem necessidade de adaptação ou especialização para pessoas com deficiência. “São critérios equilibrados de construção dos elementos úteis da sociedade para que todos participem, sem exclusão na questão do espaço, pelo contrário, tornando-o seguro e saudável.”
“As lojas são pensadas como labirintos para que os clientes tenham que percorrê-la toda antes de comprar e sair. Geralmente elementos de acessibilidade são acréscimos feios, quando se pensa que os espaços querem chamar a atenção pela beleza”, disse Aragall.
Dentro dos projetos desenvolvidos pela DFA há passarelas, rampas, semáforos acústicos com controle remoto (para pedestres com deficiência visual), contêineres inteligentes para lixo, banheiros públicos adaptáveis, portas, elevadores, bebedouros ajustáveis para diferentes alturas, entre outros. Segundo sua explanação, os artefatos construídos são importantes não apenas para as pessoas com deficiência, mas para cerca de 40% da população de determinada região. “A acessibilidade é, sobretudo, uma arquitetura de detalhes. O detalhe é o que importa. Mas geralmente para um político os detalhes não são inauguráveis”.
Para Aragall a acessibilidade é um bom argumento político e promove a atuação de alguns governos, gerando uma responsabilidade colaborativa. “A DFA faz acordos com as prefeituras, apoiando a viabilização de projetos e a discussão com os cidadãos do que será feito. Por exemplo, a Catalunha está desenvolvendo uma lei para a gestão e manutenção dos espaços que possuem dispositivos de acessibilidade.”
Atualmente a DFA construiu um projeto internacional com uma bandeira que qualifica um selo de “Cidade para Todos”, oferecida aos municípios que investem no mínimo 2% de seu orçamento em acessibilidade. “A bandeira é para dar argumentos aos políticos e o tema ser cada vez mais destacado dentro das suas campanhas.”, explica.
A mediação e a última exposição da mesa foram realizadas por Pazé, artista plástico que trabalha com esculturas e instalações. Entre seus principais trabalhos, destacam-se “Canudos”, sobre o uso das cores e a luz em objetos tridimensionais; “Sobre a Terra do Sol”, que discute a violência e a série “Transeunte”, na qual um boneco com o seu rosto caminha pela cidade, sendo esta o destaque na sua fala.
Pazé está na cadeira rodas há mais de 20 anos e a partir de sua vivência criou o boneco com as dimensões do corpo humano e de seu rosto. Instalou-o em vários pontos do centro de São Paulo e durante 30 dias o boneco circulou por lugares pelos quais passava um grande fluxo de pessoas, como metrôs e baldeações.
A idéia era o boneco caminhar e se locomover com a população da cidade de São Paulo. Durante quase 14 horas o boneco ficava num ponto fixo e no dia seguinte colocavam-no num ponto próximo, criando uma referência simbólica aos cidadãos que realizam o mesmo trajeto todos os dias. O objetivo foi o contato que as pessoas estabeleceriam com o boneco.
O boneco vivenciou situações inusitadas; trâmites burocráticos com a administração de locais públicos e metrôs, recebeu doação de dinheiro por pessoas que circulavam, passou por blitz policiais e esteve ao lado de embates com camelôs no centro de São Paulo.
O artista descreve primeiramente sobre uma satisfação pessoal similar a uma condição de sonho em ver-se de pé e poder circular livremente numa cidade demasiadamente agressiva com relação à questão da deficiência física. Segundo, uma solução para fazer-se presente em vários lugares antes inacessíveis, desejo realizado também por meio do trabalho fotográfico de Douglas Garcia.
Pazé também expôs dados sobre acessibilidade e a batalha por independência na cidade. “Existem avanços, mas ainda é pouco, como a frota da cidade passou que de 800 para 3.000 ônibus adaptados em poucos anos.”
O artista relata sobre sua procura por um apartamento de um dormitório. “Fiz 48 testes e todos foram inacessíveis ou pelo batente da porta numa altura inalcançável ou banheiros pequenos etc. Temos que criar leis para que estes novos imóveis que surgem a cada dia na cidade sejam acessíveis e, assim possamos ser independentes na vida doméstica”. Para Pazé no campo da vida pública, que traduz-se na vida cultural, é necessário que o deficiente físico possa circular na sociedade. “Somos mais de 1,5 milhão em São Paulo e não conseguimos sair de nossas casas”.
A discussão da mesa mesclou três diferentes, porém complementares visões sobre circulação e acesso. O fio condutor foi o questionamento das formas e dos processos em curso no campo da acessibilidade. Primeiro, a idéia de paisagem como "experiência compartilhada e socialmente construída", de Euler Sandeville. Segundo, o professor Francesc Aragall abordou exemplos e experiências positivas e agregadoras dentro do conceito de Desenho Universal, viabilizando a acessibilidade em lugares públicos e o desenvolvimento tecnológico no que tange tais demandas. Por fim, Pazé trouxe suas experiências investigativas e diálogos realizados com a cidade de São Paulo, criando no campo da conceituação e da ação sua arte crítica de integração com a metrópole.
Relato Oficina 2 – dia 26 – 14h às 17h
Design Universal em equipamentos culturais
A oficina da tarde realizou-se da maneira mais prática possível, por meio de um estudo especulativo sobre a acessibilidade dentro dos espaços do Centro Cultural São Paulo. O professor Francesc Aragall dividiu os participantes em pequenos grupos e propôs um passeio crítico pelo restaurante, biblioteca, banheiros, salas de exposições, rampas, entradas e elevador, orientando todos a uma apuração do olhar para os conceitos de valorização do público, diversidades, aspectos de gênero, entre outros.
Um dos grupos levantou questões referentes à sinalização. Primeiramente, apontou o fato de que quase a totalidade das placas e informes encontra-se em português, há pouco material em inglês ou Braille. O acolhimento a idosos é debilitado, existem poucos lugares para sentar e a maioria sem encosto. As recepcionistas falam apenas o português e nota-se a ausência de lugares com áudio-descrição. Por fim, no restaurante o cardápio também está apenas no idioma nacional e não há dados indicativos sobre o teor nutricional das refeições nos pratos oferecidos.
Outro grupo pesquisou sobre circulação e manipulação, identificando nas calçadas de fora do CCSP a inexistência do piso tátil e foi sugerida a instalação do mesmo em cada exposição realizada no espaço. Notou-se que o parapeito dos corrimãos encontra-se numa altura muito inferior ao nível padrão, o fato de não existir acesso a uma pessoa cega ao jardim e a ausência de barras de segurança no banheiro, os quais possuem muitos desníveis. Os pontos positivos destacados foram o semáforo sonoro e as vagas reservadas para deficientes.
Os últimos grupos investigaram os sentidos e o mobiliário mais utilizados e diagnosticaram uma acessibilidade extremamente visual do espaço e uma recepção falha para com o estrangeiro visitante que não domine o português. Para tais participantes no CCSP não há diferença entre o que é uma janela e uma saída, pois são extremamente similares. O grupo identificou como muito pouco utilizadas a luz natural e a ventilação.
Logo após, o estudo especulativo do ambiente Francesc Aragall e os participantes juntaram-se para dividir as experiências. Apesar das críticas foi unânime a resposta de que o CCSP possui um índice de acessibilidade muito maior em relação ao resto da cidade, um dos mais acessíveis espaços dentre todas as instituições culturais públicas. Apesar de tantas sugestões, o grupo também atentou à normatização excessiva, pois é prudente não exagerar e poluir o ambiente com tantas novas informações.
Para Aragall a solução é a criação de novas vias complementares: “Toda informação deve ter ao menos dois canais, por exemplo, ou auditiva e visual, ou auditiva e tátil”. Em sua opinião, “Para realizar as mudanças o grande obstáculo a ser vencido não é a verba financeira, mas é preciso tempo porque o problema da cidade de São Paulo é a constituição legislativa a cerca da acessibilidade.”
Faz-se importante sinalizar que o grande número de críticas geradas por meio desta oficina deve-se ao fato dos participantes serem pessoas que assistiram as outras atividades do seminário e, talvez, em razão disso, o olhar já esteja condicionado às demandas gerais sobre acessibilidade. Além do fato de que quase todos trabalham em centros culturais, cargos públicos ou ONGs ligadas ao devido tema. Não participou da oficina nenhuma pessoa com deficiência física ou mobilidade reduzida.
Mesa 4 – das 17h30 às 19h30
Desenho Universal, acessibilidade física e tecnologia assistiva em espaços culturais
A última mesa do dia 26 trouxe a apresentação de projetos e práticas: desenho universal, acessibilidade física e tecnologia assistiva em espaços culturais, com Rafael Publio e Camila Benvenutto, ambos da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida - SMPED, Martin Grossmann, representando o Programa Livre Acesso do Centro Cultural São Paulo – CCSP e Naziberto Lopes, do Movimento pelo Livro e Leitura Acessíveis no Brasil - MOLLA.
Rafael Publio e Camila Benvenutto iniciam sua fala descrevendo a acessibilidade como uma possibilidade de alcance, percepção e entendimento para a utilização com segurança e autonomia de edificações, espaços, mobiliários, vias públicas, equipamentos urbanos e transporte coletivos. Sendo os princípios que regem a acessibilidade a utilização equiparável, flexível, simples, intuitiva e de pouca exigência de esforço físico.
Por outro lado, a tecnologia assistiva são os recursos utilizados para acentuar ou neutralizar as limitações sensoriais, físicas ou cognitivas e contribuir nas potencialidades funcionais dos indivíduos na realização de suas atividades. Ambos citam como exemplos o vídeo ampliador, mapa tátil, software leitor de tela, cadeira de rodas, áudio-descrição, intérprete de libras, entre outros.
Camila Benvenutto relata que após a realização da I Conferência Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiência, em junho de 2006 a SMPED criou o Programa Sem Barreiras na Cultura – acessibilidade aplicada aos espaços culturais, cuja base de formação é a orientação e sensibilização de gestores, produtores e funcionários de atendimento dos espaços culturais de São Paulo. Atualmente os resultados já podem ser vistos no Centro Cultural São Paulo, na Cinemateca, OSESP e no Museu da Casa Brasileira, entretanto, a meta é a inserção de todos os espaços culturais da administração pública municipal.
O foco das argumentações dos representantes da SMPED deteve-se na transformação da cultura de acessibilidade e nos fatores críticos de sucesso. Por exemplo, Benvenutto e Publio ao exporem uma tabela sobre a relação da incapacidade x deficiência x barreiras concluem que a acessibilidade pode ser de nula ou total. Ou seja, se as barreiras do ambiente forem de 10%, multiplicados aos 10% da deficiência, o resultado da incapacidade será igual a 100%. Todavia, se a barreira do ambiente for zero, multiplicada aos 10% da deficiência, o resultado será zero.
Incapacidade / Deficiência / Barreiras do Ambiente
100 = 10 x 10
0 = 10 x 0
Os fatores críticos de sucesso dentro dos espaços culturais são desde o combate a práticas assistencialistas e protecionistas, o empenho dos gestores, o compromisso dos colaboradores até o investimento contínuo para resultados de médio e longo prazo.
Em seguida, ocorreu a apresentação de Naziberto Lopes, coordenador do MOLLA - Movimento pelo Livro e Leitura Acessíveis no Brasil, coordenador de projetos da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo e autor de Guia Legal, cartilha de orientação para professores com alunos cegos ou com deficiência visual em suas turmas (Editora UNIMARCO).
Naziberto Lopes define o MOLLA como um movimento focado na dignidade da escolha do livro, que luta pela implementação e regulamentação da Lei do Livro (10.753/03), a qual encontra-se em discussão com governo e sindicatos de editoras. Após ser sancionada a lei permitirá que pessoas com alguma deficiência tornem-se consumidoras também.
Sua fundamentação está na igualdade de conhecimento e informação.“Nossa meta é atingir as editoras públicas e realizar a tão sonhada liberdade literária para milhões de pessoas. Atualmente, há 30 milhões de deficientes no Brasil, metade com diversos graus de deficiências visuais, então, há um nicho mercado para as editoras”, afirma Naziberto.
Por fim, Martin Grossmann, diretor do CCSP, antes de iniciar sua explicação sobre o Programa Livre Acesso do CCSP oferece ao público o áudio de um texto de Saramago, o qual termina com uma forte e verdadeira constatação do escritor, dramaturgo e poeta português sobre o encantamento da vida “Para conhecer as coisas há que dar-lhes a volta, dar-lhes a volta toda”.
Grossmann por meio desta constatação descreve a importância da experiência vivida e dos jogos da normalidade dentro do convívio e, conseqüentemente, da cultura e da sociabilização. Sua linha de raciocínio atravessa primeiramente o relacionamento com o outro, cuja existência agrega os pilares da dúvida e da inquietação até atingir o clímax da transformação. A antecedência lógica do relacionamento humano procede a transformação do paradigma da acessibilidade, mediando todo processo de efervescência da ação e da realidade social estabelecida.
A discussão do seminário está embasada na crítica da cultura, não só pela via do acesso, mas na problematização de quem a faz e viabiliza o que será divulgado dentro do cenário artístico da cidade de São Paulo, gerando assim uma relação entre as “práticas culturais” e acessibilidade. Em razão disso, Grossmann esclarece ao público sobre o Programa de Acessibilidade, que promove o livre acesso às pessoas com deficiência aos espaços e atividades do CCSP.
"Nós não tomamos como certo que as atividades do CCSP tenham seus espaços garantidos, aliás, é algo que nos incomodou e ainda incomoda bastante. Mas um bom exemplo está sendo o lugar que estamos hoje realizando o seminário, nos posicionamos com irreverência dentro do espaço das artes e das obras-primas, esta sala que ocupamos é comumente reservada às grandes mostras da cidade.”, comenta Grossmann.
Ao falar sobre tecnologia o diretor do CCSP comenta existir algo errado em relação a tanta proteção aos direitos individuais, como a questão do copyright e da pirataria, porém, por outro lado, ocorre esta lacuna no campo dos direitos coletivos. “Sendo assim, o foco da política do CCSP não só acessibilidade, mas as novas mídias também.”
Atualmente, o CCSP é o único ambiente público com a natureza de espaço sócio-cultural com uma tecnologia de redes sem fios, Wi-Fi livre. “Há também o piso tátil, que ajudou muito na conexão deste espaço significativamente grande e, do ponto de vista tecnológico, a parceria com a SMPED trouxe equipamentos que permitem o acesso a áudio-livros, produzidos pela biblioteca Louis Braille”, complementou Grossmann.
O Programa Livre Acesso visa oferecer acessibilidade aos livros, espetáculos, shows, exposições e demais atividades do CCSP por meio de novos equipamentos, como uma cabine de tradução, um vídeo ampliador, audiolivros e os softwares Magic e Openbook. “Estamos buscando potencializar nossa oferta de serviços com a intenção de ampliar o espectro sociocultural do espaço.”, finaliza Grossmann.
Algumas questões permearam a mesa sobre acessibilidade física e tecnologia assistiva em espaços culturais, demonstrando que atualmente as pessoas que nascem com deficiência já nascem em uma nova realidade, a da ajuda técnica. Mas não necessariamente esta ferramenta está aliada a democratização da representação dos papéis assumidos e a devida inclusão.
As demandas não somente se vinculam à área cultural e as ações afirmativas devem buscar a reintegração no amplo aspecto do que tange a ampliação e o empoderamento humano. Além da mera sensibilização discursiva e situacional do problema e, para tanto, Naziberto Lopes finaliza “Na secretaria dos direitos da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida estão os deveres também”
Relato Mesa 5 - Dia 27- Das 10h às 12h30
Interpretação, mediação e educação: a questão da experiência
Lucia Reily, professora do departamento de artes da Unicamp, mestre e doutora em psicologia do desenvolvimento humano iniciou sua apresentação com a seguinte frase: “Na arte, o conhecimento se fundamenta muito mais na escola especial do que nos centros de artes”. O aprendizado artístico, seus acessos e vicissitudes analíticas foram os temas da mesa do terceiro dia de seminário: Interpretação, mediação e educação: a questão da experiência.
O contexto de sua fala permeou a acessibilidade do ponto de vista educacional e como a utilizações de recursos de linguagens auxiliam no processo de aprendizagem artística de crianças com deficiência ou mobilidade reduzida. Para Reily, a criança, especificamente as surdas neste caso, criam um repertório por meio das mãos, resignificando autenticamente e construindo uma narrativa própria.
O repertório que cada criança irá construir baseia-se num processo interativo e apóia-se significativamente no ponto de vista que o professor traduz a conceituação estética de cada trabalho educativo das artes. Ao demonstrar fotos de processos pedagógico-infantis, Reily coloca questões sobre a metodologia lúdica e a importância do brincar no coletivo da auto-aprendizagem. "Quando as informações tornam-se acessíveis às pessoas com deficiência, automaticamente tornam-se ainda mais acessíveis para as pessoas que não possuem deficiência".
O segundo convidado da mesa foi o espanhol Antonio Espinosa Ruiz, especialista em acessibilidade física e intelectual ao patrimônio cultural. Sua argumentação é de que a interpretação e a mediação são sempre termos muitos complicados. Cada um dos aspectos da múltipla interpretação deveria por si só muitas interpretações. “Já a deficiência começa na ausência do conhecimento prévio da acessibilidade em espaços arqueológicos, pois estes nada mais são do que museus naturais da cultura humana.”
“Um parque ecológico é considerado um museu. Atualmente, os museus saem de seus edifícios. Os ecomuseus nada mais são do que nosso patrimônio cultural, algo que herdamos do passado e estamos aproveitando hoje, não apenas aquilo que foi construído.”, relata Espinosa. Em suas palavras, o patrimônio cultural possui um valor simbólico na medida em que se pode usá-lo, pois gera um valor econômico, uma definição canônica.
A mediação e a interpretação têm aspectos afetivos também. “A nova museologia consiste na reprodução dos mundos, partindo do objeto para o visitante e, se não faz referência com a experiência do visitante, a tentativa é estéril. Devemos atentar que interpretação ocorre na cabeça do visitante. A mensagem para ser interessante tem que ser acompanhada com a experiência de vida do participante”, complementa Espinoza.
Há museus bonitos, mas não transmitem a mensagem, porque a necessidade estética não justifica ausência de interpretação e mediação. Espinoza esclarece que o vital é a absorção e o desejo de conhecimento, pois o aprendizado torna-se significativamente maior quando usamos todos os sentidos do cérebro. Nesta lógica cria-se uma relação entre conteúdo e contingente. “Os cientistas têm muita informação e a sociedade tem pouca informação, se não abrirmos os registros à sociedade não saberá nada.”
Alguns dos seus exemplos sobre a mediação processual são simples, mas transformam-se em atitudes básicas para o êxito da ação cultural, como a proibição, algo imponente e desagradável, ou seja, as mensagens não devem ser negativas, isso é uma das chaves da interpretação. Outro exemplo é diagnosticar que com a falta de rampas, não se fundamenta a exposição das obras, ou mesmo, se não conseguir dinheiro para gastos com tecnologia, gaste mais com guias, pois estes colaboraram com o entendimento dos materiais expostos. Sua defesa é a de que aquilo que não é atraente automaticamente rechaçamos.
Espinoza conclui ao citar uma frase do museólogo Georges Henri Rivière “O êxito de um museu não se mede pelo número de visitantes, nem pelo numero de objetos, tampouco o seu tamanho, mas sim pelo número de entendimentos proporcionados, naquele espaço.”
A segunda apresentação foi de Caro Howell, especialista em educação e inclusão social e diretora do núcleo de educação da Whitechapell Gallary, cujo trabalho é baseado na criação e execução de projetos de acessibilidade. Sua participação foi via internet, traduzida para o português e para linguagem de libras.
Caro Howell é curadora do museu inglês Tate Modern e desenvolve um trabalho narrativo e figurativo, buscando oferecer ao público independência no processo de absorção e interpretação de obras de artes. O objetivo final é permitir que as pessoas se engajem com o material artístico e permitir que o visitante dialogue com a obra.
Sua visão sobre a apreciação de obras transcende as analogias padrões, embutindo uma perspectiva criativa e interpretativa. Ao ser questionada sobre o que realmente significa analisar as obras de artes, Caro Howell responde: “Não é apenas direcionar seu globo ocular para um devido espaço, é algo fenomenológico, pode ser algo político, religioso também. Para mim, o essencial não é necessariamente o que aconteceria em tal época, mas a relação entre décadas. A forma como artistas utilizam de outros artistas para atuar. Nossa cultura é extremamente centrada na visão e o importante é saber o porquê o artista utilizou o vermelho e não ver o vermelho em si.”
Em suas palavras, apenas por algo ser acessível não significa que seja útil. “Na verdade a barreira pode ser a minha impressão”, comenta. Por meio da antropologia dos sentidos a especialista em acessibilidade cultural comenta: “em geral a visão é racional e o toque e o saber são raros”, alertando sempre para o plano da compreensão artística acima da simples visitação às obras de artes. "Pode-se gerar uma percepção sem conexões possíveis com história da arte se as possibilidades e informações não forem oferecidas corretamente.", complementa.
Caro Howell desenvolveu um programa virtual de acesso e compreensão das obras de arte para pessoas com deficiência visual, chamado i-Map. Revolucionando assim a técnica do toque, antes vista como a principal ferramenta no aprendizado crítico da área.
O i-Map é uma experiência interativa que utilizou do acervo de dois ícones e mestres da artes, Matisse e Picasso, respectivamente pertencentes aos séculos XIX e XX e por intermédio de um contexto bidimensional, o programa oferece ferramentas provedoras de entendimento de tais obras. Segundo Caro Howell, desta maneira os alunos com deficiência visual ficam na mesma sala de aula que os outros alunos e, ao final, todos os estudantes gostam e aprendem com os recursos de áudio e interpretação.
Relato Oficina 3 – 14h às 17h
Dimensões do acesso aos bens culturais
A proposta da oficina ministrada por Antonio Espinoza Ruiz foi, a partir de estudos de casos sobre acessibilidade física e mediação, entender os processos de interpretação, o que segundo suas falas redimensiona a arte de revelação do significado de patrimônio natural e cultural. Foram levantadas algumas das características de valor do patrimônio: escassez, raridade, representatividade, materialismo, sentimentalismo, estado de conservação, simbologia, tecnologia, localização e, ao final, relacionou-se tais pontos às experiências e personalidades de seus visitantes, na tentativa de despertar interesses e agregar valor à busca individual.
Para Espinoza a interpretação é uma arte e, como tal deve ser ensinada, utilizando técnicas básicas que a maioria dos museus ignora. “A interpretação busca a provocação e não apenas a instrução, o que muita vezes torna o visitante um cúmplice do espaço estudado. Quanto mais universal é o conceito, melhor assimilado será. Devemos criar estratégias porque as visitas aos museus são todas muito parecidas”.
Os participantes da oficina foram convidados a redigir textos explicativos sobre os grandes centros culturais da cidade de São Paulo, descrevendo parte de sua história e utilização e, em seguida, diagnosticaram o poder simbólico das mensagens enunciadas, o excesso de informação desnecessária e a emoção da narrativa.
Conceitos-chave da análise dos elementos sígnicos e técnicas de persuasão foram trabalhados nas diferentes etapas da elaboração textual. Coube a esta tarde do seminário o entendimento da elaboração da linguagem no processo de recepção da comunicação de instituições culturais.
Relato Mesa 6 – 17h30 às 19h30
Mesa de apresentação de projetos e práticas sobre acessibilidade, ação cultural e mediação
A última mesa do seminário foi talvez a mais prática em termos de ações sobre acessibilidade nos principais centros de cultura de São Paulo, com a presença de profissionais da Pinacoteca e do Museu de Arte Moderna de São Paulo, além da exposição dos trabalhos de arte do Instituto Rodrigo Mendes.
Dayna Leyton, do MAM-SP trouxe a experiência do Programa Igual Diferente, que visa estimular e orientar a produção e a apreciação artística para diversos públicos, promovendo acesso a espaços culturais e às devidas atividades realizadas. São exemplos do programa: o curso de Formação de Educadores Jovens Surdos para guiar visitas às exposições do museu; Corpo Sinalizante – um grupo de jovens artistas e pesquisadores surdos e ouvintes que trabalham com documentários, performances e intervenções urbanas e o curso Imagem e Percepção, com atividades fotográficas para pessoas com deficiência visual.
Rodrigo Mendes participou da mesa por meio das atividades do instituto por ele idealizado e que leva o seu próprio nome. Uma organização sem fins lucrativos que propõe-se a gerar arte e inclusão, com cursos, oficinas e exposições e programas de geração de renda. O Instituto Rodrigo Mendes existe há mais de 15 anos na cidade de São Paulo e seu fundador explica que começou a pintar após ter sofrido um acidente. A relação com a arte foi o alicerce para processo de reconstrução de sua autonomia pessoal.
Os resultados do Instituto Rodrigo Mendes aparecem nos aspectos de formação humana, como desenvolvimento de habilidades artísticas, aprimoramento das capacidades de criação e comunicação. Além do incentivo ao desenvolvimento de projetos pessoais, reconhecimento dos talentos e habilidades próprias e a descoberta de novas perspectivas profissionais por parte dos alunos. Atualmente, o Instituto Rodrigo Mendes atende cerca de 4.000 pessoas e recebe diversos prêmios na área de projetos sociais.
Rodrigo Mendes comenta que para ponderar sobre acessibilidade é preciso desprender-se de padrões antigos de educação. “Necessitamos reafirmar as atitudes focadas na singularidade e em características de valorização na forma de entender o ser humano.”
Amanda Tojal representou o programa educativo Públicos Especiais da Pinacoteca do Estado de São Paulo, trazendo dados sobre acessibilidade e ação pedagógica inclusiva em espaços museológicos. Em seu entendimento todos nós pertencemos a públicos especiais. “Eu não acredito que somos todos iguais e sim que temos que ser respeitados com nossas diferenças.”.
Segundo sua argumentação, a acessibilidade em museus passa por três vertentes: a arquitetura, a ação educativa e a expografia e, sendo assim, deve-se trabalhá-la em três níveis: acessibilidade física, sensorial e atitudinal, esta última por meio de posturas inclusivas interdisciplinares e políticas culturais.
Amanda Tojal coloca ao público: “Como um museu fala em acessibilidade e não possui trabalhadores com deficiência? Os consultores com deficiência devem participar transmitindo as necessidades, dentro de um projeto de ação inclusiva e mediação direta. “Uma exposição acessível tem que prover uma narrativa e ter um senso, elas não podem ser jogadas.”
“Não existe um museu 100% interativo” comenta Amanda Tojal, porém, atualmente a Pinacoteca já conta visitas orientadas e acompanhadas por educadores a esculturas, objetos e pinturas, acessíveis por meio de toque. Há materiais impressos, como catálogos adaptados e impressos em Braille, imagens de pinturas do acervo com impressão em tinta com linhas de contorno em relevo, mais descrição das obras, relatos da vida e a obra dos artistas.
Segundo sua apresentação, a tecnologia e a criatividade auxiliaram significativamente a desenvolver a acessibilidade do museu, que hoje possui recursos de apoio multissensoriais e lúdicos, como maquetes visuais e táteis do edifício da Pinacoteca, além de reproduções de obras bidimensionais e tridimensionais feitas em resina acrílica e borracha texturizada.
Comentários finais desta relatora
Os três dias de seminário ocorreram para uma platéia de poucas pessoas com deficiência física ou mobilidade reduzida, talvez devido aos horários ou à grade da programação. Ocorreu ainda o impedimento da circulação que a cidade oferece a tal público, o que acarreta diretamente nos esforços de todo o processo da cultura de acessibilidade que os centros culturais estão dispostos a realizar. Porém, o nível do debate atingiu boas reflexões devido ao interesse do público e a escolha minuciosa dos palestrantes.
Embora no primeiro dia de seminário o diretor do CCSP, Martin Grossmann tenha expressado seu desejo para que o evento não focasse suas considerações apenas naquele espaço, infelizmente, o indesejado ocorreu. Talvez, pelo fato dos palestrantes convidados de outros centros culturais da cidade terem participado apenas no último dia e na última mesa.
A transdiciplinariedade de áreas debatidas no evento foi um ponto positivo, educação, arquitetura, tecnologia, filosofia, porém, poderia ser incorporada também uma visão sobre estudos, políticas e estratégias de comunicação, diagnosticando como a sociedade de massa deve adaptar-se às diferentes demandas de informação. Já dentro do campo artístico ocorreu um enfoque maior nas artes plásticas e faltaram relatos sobre a música, teatro ou dança, por exemplo.
A concepção do evento foi extremante positiva, com constantes traduções, para inglês, espanhol e a participação de intérpretes de libras durante todos os dias. Não ocorreram atrasos, faltas e as contribuições pela internet aconteceram perfeitamente com o apoio de uma equipe técnica e profissional. Por oferecer uma exposição de fotos e vídeos, além de intervenções artísticas em Braille, o espaço tornou-se convidativo aos participantes que desejam refletir mais sobre as temáticas da acessibilidade cultural.
Se a acessibilidade reduzir-se apenas a receber a diferença do outro, aceitando o diferente possivelmente podemos encarcerá-lo e corroborar ainda mais esta diferença. Talvez neste sentido ocorreu um dos pontos mais positivos deste seminário, sem milongas discursivas sobre o problema da acessibilidade criada à pessoa portadora de alguma deficiência, mas ao ponto central da universalização dos espaços e bens públicos.
As oficinas ofereceram muita prática sobre as explicações teóricas das mesas de debates e um dos pontos mais importantes foi o fato de a discussão não limitar-se apenas à acessibilidade cultural e agregar também o acesso intelectual e social das pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. Pontos a pensar para um próximo seminário seriam a implementação de críticos culturais deficientes e um novo acesso em reverso: o convite de palestrantes surdos, com interpretação da sua linguagem de libras para a platéia.