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E no meio da cidade havia um rio: As margens dos rios nos processos de metropolização

por Ricardo Baitz


Seminário As cidades e suas margens
Relato da mesa 4 – Reconfigurações territoriais recentes: novos atores e forças em jogo



São Paulo, Belém e Buenos Aires. Três cidades diferentes, com três inserções distintas: metrópole mundial, centralidade regional e capital nacional. Como abordar os atuais agentes interventores no tecido urbano dessas espacialidades tão distintas? Três pesquisadores (Juliano Pamplona Ximenes Ponte, Adrián Gorelik e Mariana Fix) foram convidados para apresentar suas investigações em uma única sessão (“Reconfigurações territoriais recentes: novos atores e forças em jogo”), sem o compromisso prévio de uma costura que conduzisse o diálogo possível entre as três cidades, cabendo ao público diferenciar métodos e resultados, assim como articular o próprio e o homogêneo das três cidades.
Foram três trajetos distintos, com três fios condutores:

-    Ponte expôs seu estudo de doutorado (em andamento) sobre a região de Belém e sua orla, com profundidade histórica de elementos-chave como o porto, uma estrutura tecnológica que modifica radicalmente o rio, enfatizando a função logística das águas e da cidade. Um objeto que, embora concreto, se metamorfoseia: assume uma qualidade negativa em certo momento (processo semelhante aos dos grandes centros urbanos) para mais tarde ser requalificado, ou melhor dizendo, gentrificado, sofrendo uma profunda reformulação de conteúdos e funcionalidades. Movimento higienista que, em sua limpeza, lava os espaços e seus conteúdos: o novo porto, reinventado, transforma os antigos equipamentos portuários em obras de arte, em elementos de decoração da paisagem, uma verdadeira fantasmagoria sob um olhar mais crítico. Reformulação de uma localidade que traz conseqüências para o seu entorno, trazendo, por exemplo, a função residencial de luxo a uma área que historicamente era renegada pela sociedade mais abastada. O Estado (Estadual, Municipal, Federal) é um dos agentes estruturadores dessas reformulações à medida que é o único titular capaz de invervir no espaço público que está sob seu domínio.

-    Fix resgatou a história dos rios Pinheiros e Tietê em São Paulo, e seus negócios.  Ela habilidosamente demonstrou como as margens dos rios são casos de polícia desde longa data, a iniciar pela Light, responsável pela retificação e inversão da calha do Pinheiros, que para obter um lucro extraordinário nesta operação inundou toda a região para se beneficiar da lei que lhe asseguraria o domínio de toda a área pantanosa (inundável) após a retificação[1]. A seguir apresentou casos recentes, tais como a avenida Águas Espraiadas (atualmente Roberto Marinho) onde utilizou-se do expediente de inundação para expulsão da população de favelas para canalização do rio e construção da avenida, promovendo novamente uma segregação sócio-espacial. Paisagem de cartão postal, a ponte Estaiada, recentemente inaugurada, também recebeu destaque da pesquisadora: sob a monumentalidade da ponte, há o legado da remoção de outra favela, que em parte foi constituída por antigos moradores da av. Águas Espraiadas, o que sugere haver uma política – e uma economia – que, inviabilizando solucionar a questão habitacional, promove, contraditoriamente, uma concentração da riqueza social e produção de espaços exclusivos a certas classes sociais em detrimento de outras. Cegamente essa classe apropria-se dessa região da cidade e do seu rio: a força do capital cria, além de pontes e avenidas, condomínios fechados que, sob o slogan “4 em 1”[2], decretam o fim da experiência cidadã e o apogeu da experiência consumidora. Em vários momentos Fix apresentou a intervenção Estatal viabilizando a reestruturação territorial através de seu aparato repressivo: medidas de reintegração de posse, desocupação de barracos etc. Também é preciso lembrar que, através dos mecanismos de planejamento, o Estado viabiliza grandes empreendimentos, promovendo toda ordem de incentivos à imposição de grandes proprietários de terras em detrimento à pequena propriedade fracionada do solo. Na ordem do dia estão dispositivos como a outorga onerosa do direito de construir, operações urbanas consorciadas, desapropriações por interesse público, etc.

-    Gorelik impressionou o público por mostrar outro tipo de Estado, mais próximo do Estado de bem-estar social. Em sua apresentação, os laços do político com o econômico, tão comum nas pesquisas nacionais, ficou ofuscado. Nele, o Estado apareceu enquanto um mediador, não se constituindo um agente ativo, aliado do mercado, como foi o caso de Fix e Ponte[3]. Sua proposta, executada com personalidade, foi a de sintetizar quase dois séculos de arte urbana, fazendo o caminho dos espaços dos museus (arte fechada) ao espaços abertos da cidade (espaços públicos). Os rios e a cidade eram temas transversais, mas implicados nesta concepção de arte pública de longa duração. Através do distrito turístico e cultural de La Boca e da reformulação de Porto Madero (dentre outros exemplos), Gorelik explorou a trajetória da arte pública na cidade, até culminar no marketing urbano, tema bastante explorado por diversos pesquisadores e que tende a entrar em voga com a aproximação dos jogos da Copa do Mundo e Olímpicos no Brasil[4].

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Cada trabalho mereceria espaço para uma apresentação isolada, com debates verticais; mas como a proposta da mesa foi cruzar os temas, tentarei discutir algumas conexões possíveis, assumindo o risco de, nesta tentativa, apresentar minha interpretação da sessão em detrimento de certos pontos que os apresentadores julgavam ser de destaque.

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A articulação se fez em torno de dois atributos espaciais: os rios urbanos e suas margens. Analisemos-os separadamente:

a) No tecido urbano as águas, de elemento natural, passam a ser tratadas enquanto um recurso hídrico, gerido pelo governo e por empresas. Tal recurso, originalmente infinito e sem valor econômico, é então transformado (historicamente) em escasso e somente acessível através de mediações, tais como as redes de infraestrutura de águas, e conseqüentemente, mediante trocas expressas por dinheiro.

b) A cidade promove a transformação das margens dos rios, que deixam de ser naturais para se tornarem, pelo trabalho humano, artificiais: os exemplos incluem os portos artificiais, as obras de retificação de traçados, as obras de alteração de fluxo das calhas, as mudanças de usos e funcionalidades (que vão do recreamento à circulação de carros) etc.

Nas apresentações, os rios e suas margens aparecem enquanto uma natureza modificada, uma segunda natureza que pode estar total ou marginalmente integrada à cidade. Isto significa o abandono definitivo da primeira natureza? Sim e não, pois a natureza primeira, ou natureza natural, ressurge “engarrafada” nesta segunda natureza (como expôs genialmente Ponte), tal como um objeto “exótico” a ser protegido da cidade e de suas intempéries[5]. Os exemplos, sempre múltiplos, vão de estufas de plantas a jardins envidraçados, passando pelo circo e zôo, no caso dos animais[6].

Adiante. Através da exposição de aspectos particulares da realidade de cada objeto (cidade), os pesquisadores, mediante suas diferenças, permitiram ao público aproximar se materialmente das metamorfoses do urbano, identificar seus agentes e estratégias, seus ganhadores e perdedores. Partindo da escala da situação local de um bairro, uma avenida, um rio, os apresentadores expuseram relações econômicas e políticas de escalas maiores: negócios envolvendo desde os grupos locais até grupos mundiais[7], e o álibi da cultura. Neste aspecto, o procedimento tornou cada exposição uma pesquisa aberta à medida que o público, diante da apresentação, foi instigado a pensar sua realidade local, seja da metrópole, seja da pequena cidade.

Outro aspecto explorado foi o da neutralidade dos objetos. A cidade não é neutra: é território de batalhas cotidianas. É um campo de batalha que articula, das mais diversas formas, o econômico, o social e o político. O cultural às vezes vem a reboque, às vezes não: eis o que a apresentação de Gorelik mostra, com uma arte política. São três elementos que oscilam, se alternam, mas não se equilibram: se o Estado já foi um dia de “Bem-Estar Social”, privilegiando um dos termos, hoje não o é mais, havendo o predomínio da economia nos nossos dias. Desvendar essa economia voraz e seus negócios esteve na ordem do dia, ou melhor, da sessão, especialmente para os pesquisadores brasileiros, e mais enfaticamente, na apresentação de Fix. Pode-se dizer que o sistema capitalista esteve em discussão em todas as falas, ainda que seu nome não tivesse sido expressamente citado. Foi o tema que mais mobilizou o público com suas perguntas, ainda que o debate tenha sido minimizado pelo espaço cultural.

Discutir as margens dos rios urbanos obrigava a esse viés econômico: o capitalismo não é apenas um sistema produtor de mercadorias; ele se orienta por uma reprodução ampliada, incorporando setores até então não atingidos por sua voracidade. Se em certo momento as margens dos rios urbanos estiveram longe dos olhares capitalistas, na atualidade ocorre fenômeno inverso: exatamente por isso são “a bola da vez”, pois possuem as condições necessárias para um ciclo de acumulação primitiva, ou seja, um negócio extremamente rentável, com lucros extraordinários, acima dos patamares dos negócios capitalistas por serem uma expansão deste sistema.

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A presença de um apresentador estrangeiro foi importante, não só para nos esclarecer da particularidade de nosso Estado, mas por conduzir a discussão de arte pública e de espaço público, ainda que este não fosse, necessariamente, seu objetivo.

Diante de um quadro catastrófico, sugerido pelo próprio tema da sessão (as forças em jogo não dão chance a outras interpretações: o mercado espraia-se a todos os domínios conhecidos pelo homem), o projeto político de mais espaços públicos, bem como o de mais arte pública, surgiu como contraposição ao quadro diagnosticado.

Mas essa sugestão, a de uma arte pública, não se faz sem certas ressalvas: nenhum expositor esclareceu, mas o conceito de público, quando invocado, possui duas acepções admissíveis: a primeira, vinculada ao Estado, e a segunda, voltada à ausência de Estado. É Castoriadis[8] quem nos ensina duas lições importantes: 1) a democracia grega era feita de forma direta, ou seja, sem a eleição de representantes; e 2) o público grego era um momento da vida social que prescindia do Estado, um momento onde os privados se reuniam, e que o Estado grego não se fazia presente. O espaço público grego era obra dos gregos comuns; ele se dissolvia com o término da reunião, não possuía a estabilidade e durabilidade que o espaço público estatal possui.

Há um nó a ser desatado: a arte é pública por estar na rua pública, na praça pública, em um local público? Ou ela se torna pública quando as pessoas se reúnem ao seu redor, quando essas pessoas transformam a qualidade do seu espaço em uma experiência coletiva? A resposta envolve uma posição política do artista, pois a questão central, a saber, é: o projeto de uma arte pública articula-se ou não com o Estado? O perigo em esquivar-se a esta questão é o de combater um único inimigo, a esfera privada, e esquecer-se de seu segundo algoz, o Estado. O que coloca a necessidade de uma dupla superação: a arte pública, para se efetivar, deve ultrapassar tanto a esfera privada quanto a esfera estatista. O espaço público defendido pelos expositores é, conscientemente ou não, um espaço comum ou coletivo.

Por ironia do destino a sessão encerrou-se com a impossibilidade de realização de um genuíno debate público. Explico: após mais de duas horas de exposições, abriu-se a primeira rodada de perguntas. O público, ansioso, propôs perguntas morais, que já traziam consigo as respostas. Passada essa primeira fase, que acreditávamos ser de “aquecimento” para um debate mais vertical, a mesa foi notificada para finalizar a sessão, ainda que muitas questões estivessem sendo formuladas e respondidas. As luzes foram apagadas e as portas de saída, abertas. Face à bizarra situação, coube às pessoas reinventarem o espaço e o debate público: no saguão de exposição muitas pessoas se encontraram, e lá o diálogo continuou, sem mediações. Foi um momento prazeroso de diálogo entre os conhecidos, e que mostrou ser possível criar, em diversas situações, espaços coletivos de discussão.


[1] Ver, neste sentido, SEABRA, Odette. Os meandros dos rios nos meandros do poder. Tese de doutorado. FFLCH-USP, 1986.
[2] São condomínios que propõem agregar, em um único empreendimento, as atividades de moradia, trabalho, comércio, e lazer/cultura (em prospectos, congregam moradia, compras, trabalho e diversão). Assim, seus moradores não necessitam ter contato com a cidade, pois estarão munidos de um shopping interno, escritórios para exercerem suas profissões, espaços de lazer, escolas, etc.
[3] Nem todo Estado é igual, eis o que ele revela: para nós, essa entidade sempre objetivou azeitar os negócios, sempre foi o “outro”, um estranho a nós mesmos. Na experiência Argentina, ele aparece como uma mediação, um equilibrista do social e da economia.
[4] Trata-se de uma bibliografia que teve origem, principalmente, com os bem sucedidos jogos olímpicos de Barcelona, e a consoante transformação desta cidade.
[5] Esse exótico, por sua vez, não é natural. Trata-se de um simulacro, nos termos de Jean Baudrillard. O paisagismo imita a natureza e a copia. Em certo momento a supera, pois a cópia encomendada é mais perfeita que a paisagem natural. Idem aos animais, retirados do seu meio e criados em cativeiro. Condicionados, despertam as reações que os homens desejam, superando os instintos primitivos e naturais.
[6] Fix, em seu trajeto, expôs argumento muito parecido utilizado para a propaganda de um grande condomínio: nela vendia-se mais que os apartamentos do conjunto; vendia-se uma concepção total de vida protegida e a nostalgia de uma cidade que não existe mais. Sob o pretexto dos novos proprietários poderem ter “a vida que a cidade roubou”, eram mostradas praças, ruas tranqüilas bem iluminadas e seguras e muito mais: o projeto do condomínio agregava uma miniatura de cidade, engarrafada, reforcemos.
[7] Os negócios envolvendo o urbano surgem orquestrados, coordenados, como se fossem um grande jogo de xadrez. Não há dúvidas que existem estratégias, mas por outro lado, o processo de constituição do urbano no capitalismo segue uma lógica cega: é possível encontrar, lado a lado, empresários, políticos, e pessoas envoltas aos movimentos sociais corroborando ao processo, indistintamente. Cada um se encarrega, ao seu modo, de levar adiante esse tipo de cidade que se instaurou. Exceções existem, mas a distinção não é tão simples como nós, pesquisadores, queremos acreditar.
[8] Ver Cornelius Castoriadis, em especial os seis volumes de “As encruzilhadas do labirinto”.