Seminário Vida Coletiva - Conferência 6

Relato da conferência “Como viver só”, proferida por Peter Pal Pélbart, em 04 de agosto de 2006

Viver junto, viver só, só viver


Certa vez, a propósito do conhecido isolamento de Jean-Luc Godard, Gilles Deleuze descreveu uma solidão rica, "povoada".  Peter Pal Pélbart fez menção a essa entrevista, numa das muitas referências evocadas em sua fala no Fórum da Bienal, no Porão da Bienal, no dia 5 de agosto passado -- batizada, ironicamente, Como viver-só. Trata-se do reverso necessário -- do contracampo, diria Godard -- ao mote escolhido por Lisette Lagnado para a presente Bienal de São Paulo. Bienal de um tempo em que "nos arrastamos como zumbis pós-modernos", num "sobrevivencialismo pós-metafísico", no dizer sombrio de Slavoj Zizek, que Pelbart também retoma. Juntos, campo e contracampo enfeixam a dialética aparentemente inescapável da contemporaneidade, que a fala do filósofo procura tatear, através de sua própria solidão, povoada de "Bartlebys", "Blooms", "Gombros" e "Porotos": "Como sustentar um coletivo que preserve viva a dimensão da singularidade?". No contexto descrito por Zizek -- sob o sítio da reordenação rizomática do controle do vivível, sob um viés totalizante de uma escala nova, de uma violência silenciante tão anunciada e previsível como desconhecida --, a arte se coloca a mesma questão e se impõe como experiência cada vez mais necessária.


Já não sabemos estar sós, lembra Pelbart. Vivemos numa sociedade em que o "capitalismo em rede enaltece ao máximo as conexões e esconjura a solidão", e nessa hiperconectividade não pode haver singularidade, há só a "'solidão negativa', socialmente produzida", não a "solidão positiva" de uma resistência à homogeinização, à desertificação do vivido pela sua iluminação ao mesmo tempo indiferente e totalizadora. O estar só impõe um saber dançar na obscuridade, brincar em mundos não iluminados -- ali se encontram luzes de uma natureza outra: o poeta Itamar Assumpção dizia "É preciso estar escuro/ para eu  dormir em paz/ mas dentro de mim há uma luz/ que eu não consigo apagar!". Também a solidão -- certamente insone -- de Itamar era ricamente povoada.


Num contemporâneo de tal modo reduzido àquela dimensão "onde tudo flutua na indiferença sem qualidades, em que ninguém mais se reconhece na trivialidade do mundo de mercadorias" -- bem como pessoas -- "infinitamente intercambiáveis e substituíveis", habitado de Blooms e outros Homo Otarius -- solidões menos ou mais reais do teatro semi-adormecido das negociações da cretinice normativa cotidiana que sustenta o real --, o engessamento do fluxo da subjetividade, e a imanente violência que daí deriva, não apontam qualquer horizonte existencial a se abraçar. Mas seria mesmo uma questão dialética? A tese do coletivo -- esse coletivo morno, adormecido em redes de controle -- versus a resistência misteriosa, que implode a lógica do real -- a resistência de um Bartleby, um Gombro ou um Poroto e de outras subjetividades irrecuperáveis pela ordem vigente? Não seria mais uma questão de pensar numa "multilética" (que me perdoem os filósofos o abuso da palavra), já que as solidões povoadas são múltiplas, exponenciais, de uma ordem tal que a mera oposição do par viver-junto/viver só não pode dar conta? No recuperar a necessidade e a possibilidade do espaço transbordante das solidões povoadas, o viver-só de que fala Pélbart implode em tantas direções a hegemonia do sentido de um real esvaziado pelo cálculo do vivido, que a dialética da luz e da sombra, do coletivo e do singular, parece, num relance, tornar-se ela mesma prisioneira da armadilha que denuncia.


Mas não é assim. Pelbart censura também essa mesma recaída numa dicotomia simplificadora em Sloterdijk, que tenta superar nosso "solipsismo antropológico" por meio de um "ser dois", por uma "metafísica de duplo" que é preciso, justamente, ultrapassar. E é curioso notar como Merleau-Ponty -- esse filósofo às vezes esquecido no aparente radicalismo dos autores pós-modernos e seu embate com um mundo bem mais complexo e cheio de especificidades --, já havia proposto pensar o real como empreendimento coletivo, cuja riqueza de sentido deveria decorrer da pluralidade das singularidades, de uma intersubjetividade aberta, inacabada. Não há nada nesse Merleau-Ponty que se contraponha ao Deleuze que serve de guia ao viver-só de Pélbart: preservar a riqueza de sentidos do vivido é abrigar, neste vivido -- na negociação dos sentidos do real -- múltiplas subjetividades, às quais devemos ser capazes de ofertar ao menos a possibilidade de constituir não simples conectividades eletrônicas, mas redes de afetos: o "desafio do solitário (...) é sempre encontrar ou reencontrar um máximo de conexões, estender o mais longe possível o fio de suas 'simpatias' vivas", diz, retomando Lawrence. Temos que ser capazes de acolher, no solo mas também no vôo, o Superoutro de Edgard Navarro (num filme excepcional de 1987), que salta do alto do Elevador Lacerda. enquanto grita: "Abaixo a lei da gravidade!". É porque o coletivo quer ser homogêneo e as singularidades são, ou deveriam ser, inúmeras, que não se pode falar em dialética.


E quando se toma a descrição de Pélbart do universo experimentado por aqueles que viveram a clínica La Borde, com Félix Guattari -- Jean Oury, Marie Depussé -- ou dos participantes do singular grupo de teatro que Pélbart coordena -- composto de usuários de saúde mental --, parece mesmo que o limite tênue entre um sentido de realidade e loucura, essa linha instável e tão difícil de habitar, é o único lugar em que o mundo é ainda vivível. É apenas diante da visão dessa implosão dos sentidos, do alívio do vazio, do êxtase do nada e da alegria da presença que daí deve emergir -- da perda de todo o real e sua recuperação afinal como o único lugar possível -- que se pode falar em "viver junto", em partilhar o mundo. Mas aí, talvez estejamos, finalmente, no domínio da proposição artística e daquilo que se configura uma das tarefas da arte na contemporaneidade.


Mas Merleau-Ponty também disse certa vez: "quando percebo o outro, há um grau de violência que se torna impossível". Aqui, o conflito contemporâneo posto por Pelbart e a problemática da arte se entrelaçam: intervir no campo sensível, guerrilhar na arena da percepção, parece ser um caminho para que se abram as estreitas sendas que possivelmente reconciliam meu mundo e o dos meus semelhantes. Porque se estamos discutindo uma disposição simples, aquela de "perceber o outro"; e se, ao que parece, não estamos, no nosso registro cotidiano, aptos a fazê-lo, é porque nossos laços perceptivos, os "fios que me ligam ao real", estão de algum modo desbalanceados -- laceados, frouxos, alguns: aqueles que me vinculam à vida que merece ser vivida, que me ligam aos meus semelhantes; tensos, rijos, outros: aqueles que me prendem nas redes de controle, nas competições por produtividade, na devora de tudo aquilo que realmente interessa, em nome dos desejos inventados pelo espetáculo -- a sociedade do controle é também a da alienação do próprio desejo, e se não percebo o outro é porque não percebo a mim mesmo. Enfim, se, como diz Pélbart "quando a consistência das formas que antes asseguravam alguma consistência ao laço social apenas reitera a gregariedade atomizada, cabe indagar o que poderia ainda sacudir-nos de tal estado de letargia", parece ser ainda a arte a melhor resposta de que dispomos. Não que a questão se esgote na dimensão poética e não transborde para a dimensão política -- e ainda: como se a intervenção no terreno do sensível não fosse essencialmente política, já que aí se define a gênese dos sentidos do real, a possibilidade mesma da presentação de um mundo como espaço vivível, que se constitui no trânsito polifônico das diferentes subjetividades; não se trata de crer que a poesia, por si própria, possa nos salvar: trata-se, antes, de perceber que, sem ela, resta pouco o que salvar.


Em meio a tais embates de constituição de sentido, em meio à batalha pela posse da experiência que tensiona hoje ao limite a questão mesma das instituições que têm se apropriado da experiência inaugurada pela obra de arte, Deleuze-Pélbart reivindicam um mundo em que se possa ir buscar uma solidão "suficiente", a "solidão absoluta" que é ao mesmo tempo "a mais povoada do mundo". Ao ponto em que tal personalização absoluta se converta novamente em uma conexão completa, "O ponto mais singular abrindo para a maior multiplicidade: rizoma. Por isso cabe sair do 'buraco negro do nosso eu' (...) desfazer o rosto, tornar-se imperceptível, e pintar-se com as cores do mundo": o retornar ao mundo do viver junto é aí um dissolver-se que não pode se sustentar na idéia tradicional de sujeito, essa criação única da cultura ocidental -- portanto tampouco na dialética que deriva desse sujeito, que constitui, por si só, autonomamente, o sentido do mundo. Tampouco responde a essa superação do sujeito o agenciamento coletivo puro e simples: crimes demais foram e são cometidos por essa alienação da singularidade em nome da força do coletivo -- e, de mais a mais, já dizia Nélson Rodrigues, "toda a unanimidade é burra". No vazio da impossibilidade do sujeito, e dos acordos tenebrosos que por vezes articulam as pulsões coletivas, a impossibilidade da simples dialética do viver junto versus viver-só não pode reunir "o cúmulo da solidão desejante e o cúmulo do socius", como sugeriu Guattari. Talvez, conquistar a atenção que agencie a "polidez" (mas também a "delicadeza", a "gentileza" ou a "suavidade" -- e talvez Pélbart me permita acrescer aqui um "cuidado"), em que cada um possa "se apoderar de outro no seu mundo, conservando-lhe, porém, as relações e o mundo próprios", como propõe Deleuze, demande primeiro dissolver a própria relação campo-contracampo em que se coloca a questão, abrindo uma linha de fuga que desloque, ou desterritorialize o problema. Possivelmente, a poesia possa fazê-lo. Na década de 1970, Gilberto Gil -- então poeta, que, aliás, logo seria bastante criticado justamente por sua suposta a-politização -- revirou o sentido de uma bela canção e arrancou dali a inversão preciosa que abria um território de significação renovada: eu preciso aprender a ser só tornou-se eu preciso aprender a só ser.  À generosa -- porém binária -- dialética do viver-junto e do viver-só, vem somar-se, então, como um presente do poeta à implosão das amarras da lógica, a fórmula delicada do só-viver.


(por Sérgio Basbaum)

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