Seminário Vida Coletiva - Conferência 4
O tema da 27ª Bienal de São Paulo, "Como viver junto", parece estar adquirindo um tom urgente e sombrio nos últimos tempos. Isso ficou claro durante o 4º Seminário Internacional "Vida Coletiva" , organizado pela curadora Lisette Lagnado, realizado nos dias 05 e 06 de agosto. Todos os participantes mencionaram com pesar a atualidade da política internacional, e a dificuldade em apresentar respostas positivas aos temas propostos.
Catherine David iniciou sua fala lembrando que a questão "Como viver junto /vida coletiva" provoca grande desconforto, ainda mais considerando-se a cumplicidade quase total do Ocidente aos ataques de Israel e dos Estados Unidos contra o povo iraquiano, palestino e libanês.
O repúdio de David à violência que tem imperado no Oriente Médio é partilhado por todos, no entanto, a curadora tem, mais do que a maioria presente, uma proximidade com a região, onde ela desenvolve há mais de 8 anos o projeto "Representações árabes contemporâneas". Um dos desdobramentos desse projeto foi a exposição "A equação Iraquiana", apresentada recentemente em Berlin e Barcelona, justamente num momento em que há evidentemente grande urgência em se discutir a situação vivida pelo país[1].
O desconforto referido por David pareceu de certa forma uma crítica à escolha da curadoria, à sua proposta talvez excessivamente otimista de reflexão sobre arte e vida coletiva, num momento em que a realidade social brasileira e a realidade política internacional tornam quase impossível vislumbrar uma saída, no plano da arte e/ou da vida comum.
No entanto, tal desconforto parece-me oportuno e mesmo necessário, pois força-nos a mudar de lugar, a olhar o entorno, a buscar alternativas. Este é, no meu entender, o desafio dos seminários desta Bienal.
Antes de Catherine David, Jane Crowford e Celso Faveretto haviam respondido à provocação da curadoria apresentando uma perspectiva histórica, abordando o contexto em que Matta-Clark e Oiticica desenvolveram suas obras-ações coletivas.
Já David distanciou-se criticamente dessa perspectiva, afirmando que no momento atual reina um individualismo, um egoísmo, um cinismo que nada têm a ver com a utopia dos anos 60/70. Hoje, a indiferença seria maior e mais massiva frente aos acontecimentos e o inaceitável inversamente proporcional à distância geográfica. Nesse último ponto em particular ela tem toda a razão.
É justamente em torno do problema da distância, da proximidade e do lugar que Catherine David constrói sua fala, à partir do trabalho de Pedro Costa, para quem distância e lugar são também elementos fundamentais.
A filmografia de Costa, e em particular o seu longa No quarto da Vanda, do qual assistimos a alguns extratos, aproximaria-se, segundo David, do conceito de "distância ativa" proposto por Jacques Rancière. Rancière, que já havia comentado o filme quando esteve no Brasil em 2005, foi inúmeras vezes citado e seus conceitos retomados nas discussões do seminário[2].
David opõe a distância ativa estabelecida por Costa, ao que considera obras "pseudo-críticas", às vezes bem intencionadas porém ingênuas, que nada mais fazem do que reafirmar a posição do sujeto no seu lugar (de pobre, oprimido, enfim, de vítima passiva), citando como exemplos Sebastião Salgado e Shirin Neshat.
Desnecessário comentar a assim chamada estetização da pobreza de Salgado, mas talvez valesse a pena, em outro momento, discordar de David em relação à Neshat. A crítica tem razão, no entanto, em colocar o exemplo de Costa como singular. De fato, seus sujeitos-personagens, os outros de nossa vida coletiva, não são seres abstratos, nem distantes, nem habitam um não-lugar, bem ao contrário, fazem parte do seu universo, e é com eles que o artista existe : " Toda a gente tem um lugar no mundo (…) Quer dizer, nesta sociedade horrível, é bom ter um lugar, um centro, senão somos roubados no nosso próprio interior. E eu podia começar a filmar porque encontrei um lugar, esse centro que me permitia olhar à volta, quase a 360 graus, e ver os outros, os habitantes, os amigos. E comecei a ver como o bairro entrava e saía no quarto da Vanda.[3] "
Costa filma lugares e pessoas que ele conhece bem, habitantes do bairro Fontainhas, em Lisboa. São relações que se construíram ao longo do tempo e que permanecem. Costa acompanha a trajetória desses personagens, que depois de No quarto da Vanda foram despejados de Fontainhas e levados a viver em um outro lugar, um lugar imposto, sem memória afetiva. Tal deslocamento é tema do seu filme mais recente, Juventude em marcha, apresentado e aclamado em Cannes este ano[4].
Segundo David, " o interesse da obra de Costa reside na capacidade de experiência do mundo e do outro capaz de ultrapassar as circunstâncias estreitas que dão ao indivíduo um lugar no mundo (classe social educação, situação geopolítica), e encontrar as formas de expressão que não participam da compulsão (pathos) ou da pura subjetividade (a projeção sobre as histórias/vidas dos outros), em uma palavra, a distância ativa que ele consegue establelecer. (…) O processo de formar uma comunidade, ficar junto, conviver, depende dessa escolha do artista. Seria irrisório explicar."
Catherine David de fato não explica, simplesmente pontua aspectos da obra de Costa que são pistas para se pensar a vida coletiva, possível uma vez que se estabelece a "justa distância", ou melhor, a distância ativa, que "se constrói no trabalho do filme, da luz, do som. O sistema de produção de Costa tem muito a ver com o resultado do trabalho".
Tal sistema de produção não se separa da vida, é a própria vida, é a convivência, a forma de se relacionar, negociar, dialogar, criar situações onde a participação do outro é necessária, mas não imposta, permitindo assim o estabelecimento de vínculos de confiança e de respeito.
Desta negociação do lugar de cada um participam tanto o artista e os sujeitos-personagens, quanto o espectador, ela diz respeito à distância e ao tempo - tempo de aproximação, de distanciamento, de separação e mesmo de ruptura.
Catherine David observa ainda que "a idéia de síncope é importante, as coisas param, têm rupturas, e recomeçam nunca do mesmo lugar, o que é um conceito de Godard". Também de Godard uma frase essencial, e muito justa no que se refere ao No quarto da Vanda: "On ne peut pas voir si on a peur de perdre sa place". Ou seja, o artista, o personagem e o espectador não poderiam ver (viver) se tivessem medo de perder o seu lugar, medo de sair do lugar que lhes é socialmente designado.
Mais do que isso, ninguém está condenado a um só papel ou a um só lugar. Como bem observou Catherine em relação aos personagens de Pedro Costa, "ele nunca confirma qualquer posição no mundo - posições marginais ou cruéis. Nunca há a essencialização de um grupo, ao contrário, os personagens crescem com a luz, com a sua presença, nunca porque um olhar de comiseração ou de julgamento se coloca sobre eles."
David enfatiza o fato de que no trabalho de Costa, não há uma clara divisão entre o bem e o mal, o que é certo ou errado. O artista não faz escolhas simples.
A esse respeito, vale a pena voltar ao texto de Rancière, que também chama a atenção para o aspecto ” obra aberta ” do filme: “(O autor) se recusa a nos esclarecer a respeito das forças objetivas que produzem tanto a favela quanto sua supressão. Mas também pode-se dizer, inversamente, que essa ausência de explicações nos coloca na presença do que é realmente político: não o conhecimento das razões que produzem tal ou tal vida, mas o confronto direto entre uma vida e o que ela pode.[5]”
Um outro momento da fala de Catherine David que vale a pena retomar diz respeito à tênue fronteira, na obra de Costa, entre documentário e ficção. Mais uma vez, David cita Rancière : « Ficcção não é o fato de contar histórias imaginárias. É a construção de uma relação nova com a aparência e a realidade, o visível e a significação, o singular e o comum. » E aí ela completa: " o surreal às vezes surge em contato com a realidade mesma". O artista não faz um registro da realidade, nem apresenta uma interpretação totalmente subjetiva de fatos. Ele cria uma obra de ficção que parte de pelo menos duas perspectivas da realidade - a singular (sua visão de mundo) e a coletiva (dos personagens-sujetos de sua obra), sendo que as duas compartilham o mesmo espaço social.
Ao final, o ceticismo inicial de Catherine David se transforma numa visão positiva, mostrando como uma obra como No quarto da Vanda pode ajudar a pensar uma possível vida coletiva que não exclui de antemão o outro de nossas circunstâncias.
O que faltou na intervenção de David foi uma pincelada de um dos aspectos que talvez mais impressione na obra de Costa, a forma como ele escapa da armadilha da “estetização da pobreza”, sem abrir mão de um rigor formal. Aqui poderíamos citar, ainda que David não o tenha feito, a observação justa de Jacques Rancière “A força do filme está na tensão que ele institui entre esse cenário de vida miserável e as possibilidades estéticas que ele encerra.[6]”
No entanto, dado o posicionamento político assumido pela curadoria da 27o Bienal, reiterados em todos os seminários preparatórios até aqui, há questões bem mais urgentes e interessantes a serem tratadas pelo mundo da arte do que meras questões de forma.
(por Ana Leticia Fialho)
Conteúdo Relacionado
Vida Coletiva
27ª Bienal - Como Viver Juntos
1. Para mais informações:
http://kw-berlin.de/english/program_frameset.htm
http://www.fundaciotapies.org/site/rubrique.php3?id_rubrique=580
É interessante observar que Catherine David se interessa há bastante tempo pelo que Gerardo Mosquera costuma chamar de “zonas de silêncio”, regiões que pouca visibilidade têm ou tinham no circuito da arte contemporânea internacional. No início dos anos 90 foi a América Latina, quando ainda poucos curadores europeus trabalhavam com a produção contemporânea da região, e mais recentemente a produção árabe, ainda desconhecida dos curadores europeus. Isso permite a David uma distinção (no sentido de Bourdieu) significativa no sistema das artes.
2. Vale a pena ler o texto « Política da Arte », transcrição da apresentação de Rancière no seminário São Paulo S.A, práticas estéticas, sociais e políticas em dabete (São Paulo, Sesc Belenzinho, 17 a 19 de abril de 2005)
3. Entrevista com Pedro Costa:
http://www.atalantafilmes.pt/2001/quartovanda/entrevista.htm
4. Conferir o artigo « Costa Bravo », de Philippe AZOURY e Olivier SEGURET, publicado no Libération de 27 de maio de 2006, citado por David, e de onde ela extraiu algumas de suas observações.
5. Jacques Rancière, op. cit.
6. Jacques Rancière, op. cit.