Seminário Vida Coletiva - Conferência 3

Relato da conferência “Como Viver Junto?”, proferida por Jeanne Marie Gagnebin, em 04 de agosto de 2006

As mudanças na percepção e na sociabilidade ocorridas da modernidade até os dias atuais. Esse foi o campo de atenção da fala de Jeanne Marie Gagnebin no seminário Vida Coletiva, organizado pela curadora geral da 27° Bienal de São Paulo, Lisette Lagnado. Para desenvolver tal questão, Jeanne Marie se valeu dos escritos do sociólogo alemão Georg Simmel, mais especificamente dos excursos intitulados “Para uma sociologia dos sentidos” e “O estrangeiro”, ambos abrigados no capítulo nove da Sociologia, texto de 1908.

Jeanne Marie, através das análises de Simmel, tocou em um ponto fundamental do projeto curatorial da 27° Bienal, qual seja, as relações entre distância e proximidade. Veremos que a obra de Simmel, escrita há quase cem anos, nos lega ensinamentos úteis para os dias de hoje. Estamos frente a uma teoria estética que se expande para o espectro sócio-político.

Será através da análise da vida na modernidade que o sociólogo desdobrará suas observações estéticas e sociais. Diferentemente da vida nas comunidades pré-modernas, de visualidade mais calma e formas de sociabilidade mais pessoais, o homem moderno irá se ver em meio a um ambiente carregado de estímulos sensoriais e intelectuais, tanto na casa, quanto na rua. Tal excesso de estímulos leva esse homem a adquirir formas de se proteger da quantidade imensa de informações a que é submetido diariamente – a fim de não sucumbir física e intelectualmente. Essa proteção, por sua vez, será feita na forma de uma atitude de indiferença e frieza, condensadas no tipo que nomeamos até hoje de blasé. Esse caráter blasé irá se desdobrar numa sociabilidade que possui como marca a indiferença em relação ao outro. Jeanne Marie sublinha que essa indiferença é, no mais das vezes, o primeiro grau de uma hostilidade latente, que mais tarde pode se tornar uma verdadeira hostilidade. Se o seminário da Bienal se intitula Vida Coletiva, vemos já de início que a palestrante irá tocar em pontos nevrálgicos da questão. Numa espécie de exercício de rememoração, iremos, olhando para o início da vida moderna, pensar nas origens da dificuldade do “viver junto” nos dias atuais.

Prosseguindo na escuta da fala de Jeanne Marie, somos solicitados a pensar na configuração espacial das grandes cidades. O que muda na modernidade são as relações de distância e proximidade. Ao mesmo tempo em que as distâncias são encurtadas, as proximidades aumentam de forma perigosa. E a contradição será justamente a equação na qual se revela que esta grande proximidade pode levar a falência das possibilidades de verdadeiras relações pessoais. Pois a proximidade pode ser “tanto a base da mais elevada felicidade quanto da extrema coerção”. Daí Jeanne Marie concluir que o maior perigo da vida em comum na modernidade e na contemporaneidade está na destruição da intimidade por excesso de proximidade, e não pela existência de um isolamento espacial e social por excesso de distância, como poderíamos supor num primeiro momento.

Tal excesso de uma proximidade, que não reverbera em relações pessoais mais solidárias, irá sublinhar sentimentos como o de solidão, incompreensão e hostilidade entre concidadãos. Jeanne Marie sublinha que esse paradoxo é analisado por Simmel através das lentes da percepção sensível, das mutações do olhar humano. Ou seja, o sociólogo fará uma ligação direta entre o sentido da visão e as relações sociais entre os homens. Para isso, Simmel ressalta o aspecto do olhar que diz respeito a sua capacidade de reciprocidade. Segundo Jeanne Marie: “O sociólogo usa várias vezes a palavra alemã Antlitz para enfatizar essa dimensão, palavra que pode ser traduzida tanto por “olhar” quanto por “rosto, face” (“visage”, dirá mais tarde Levinas). A vista humana, diz Simmel, encontra sua plenitude na reciprocidade do olhar compartilhado, quando à atenção de um olhar responde o olhar do outro”.

A questão que se coloca então é a seguinte, o que ocorre quando a visão humana passa a estar frequentemente submetida a visão próxima de seus semelhantes sem que por isso encontre ali, naqueles olhares, uma reciprocidade feliz, uma possibilidade de troca, de correspondência. Ou seja, o que ocorre num mundo como o nosso, marcado por tamanha hostilidade e indiferença em relação ao outro? E ainda, que papel pode ter a arte nesse campo de tensão social em vivemos? Sabemos que estas são indagações importantes para os propósitos da 27° Bienal.

Voltando a fala de Jeanne Marie, notemos como ela irá encontrar nas dimensões mais simples da vida em comum - a troca de olhares com o outro, a distância geográfica que nos separa do nosso vizinho - o ponto de partida para pensarmos de forma macro no significado de Vida Coletiva nos dias atuais. Assim, somos levados a perceber como as grandes diferenças, as incompreensões mútuas que geram uma sociabilidade falida, podem ter sua gênese no tecido mais prosaico das relações cotidianas.

Após apresentar as principais relações traçadas por Simmel no excurso “Para uma sociologia dos sentidos”, Jeanne Marie faz uma pausa em sua fala, e coloca algumas obseravações.

A primeira delas de natureza especificamente estética. Retomando o significado da desauratização da obra de arte contemporânea, tal como colocada por Walter Benjamin, a professora sugere que tal perda da aura significaria justamente a perda de um olhar recíproco e a assunção de uma visão “simultaneamente saturada e sempre ameaçada, sempre à espreita”. Para ilustrar essa situação, Jeanne Marie traz à luz um exemplo da arte contemporânea. Trata-se da fotografia “Olímpia” do artista canadense Jeff Wall, que seria uma paródia da “Olympia” de Manet. Ao descrever a foto, sabemos que nela há um homem nu, cujo olhar e audição estão ausentes, revelando um completo autismo em relação ao possível espectador. Ou seja, não existe reciprocidade entre o que olha e o que está sendo olhado. Dessa forma, o trabalho de Wall seria mais um exemplo das transformações da visão, e consequentemente das relações de troca, de sociabilidade, no mundo contemporâneo. E não só isso, o trabalho do artista traria ainda um comentário no que diz respeito ao erotismo. Como se a única possibilidade de encontro de um olhar recíproco hoje se desse na esfera do encontro amoroso, e em nenhum outro âmbito além deste.

Antes de partir para a segunda parte de sua exposição, Jeanne Marie retoma pontos chaves da sua fala. Sintetizando, devemos observar o paradoxo maior desenvolvido no texto do sociólogo, qual seja, que a proximidade física exasperada pela configuração da vida moderna e contemporânea não significa intensificação dos laços sociais, mas, ao contrário, acarreta no seu enfraquecimento. A partir do momento que a distância exterior passa a inexistir, cada indivíduo ativa um mecanismo interno de compensação, passando a agir com frieza e indiferença, a fim de se proteger de uma invasão ameaçadora. Esses sistemas de proteção, entretanto, podem redundar num risco, ao se transformarem num mundo fechado, em autismo ou loucura.  Sabemos o quanto de reverberações literalmente sangrentas possui estes mecanismos de compensação nos dias que correm.

***

Na segunda etapa de sua fala, Jeanne Marie se ocupa em analisar mais especificamente o excurso intitulado “O estrangeiro”, de Simmel. Nesse momento o sociólogo irá concluir suas reflexões a respeito das mudanças de distância e proximidade na modernidade. Aqui a lente é voltada para os atores sociais que se movem de um lugar para outro. E a partir daí cabe pensar quais as transformações provocadas por esses deslocamentos.

Enquanto em 1908 Simmel caracterizava esses seres nômades por comerciantes, pobres, mendigos, vagabundos e aventureiros de todo tipo, Jeanne Marie atualiza essa figura do estrangeiro para os dias atuais, afirmando que hoje podemos falar em migrantes e refugiados, clandestinos ou não, que buscam atravessar muros, grades, fronteiras, mares, em busca de uma nova existência, mesmo que a tentativa dessa mudança possa significar o custo da própria vida.

Num exercício característico de uma professora de filosofia - e, a saber, especialista em um filósofo judeu de origem alemã, Walter Benjamin - Jeanne Marie se põe a sublinhar a especificidade do termo alemão usado por Simmel para designar o “estrangeiro”, e em seguida o decompõe. O sociólogo se vale do termo alemão Fremde, cujo sentido é mais abrangente do que o comumente usado Auslander. O adjetivo fremd reúne as significações de “estrangeiro”, de um outro país e de “estranho”, bizarro, esquisito. Outra denominação dada por Simmel para o estrangeiro é “potentieller Waderer”, que quer dizer um viajante em potencial. Ou seja, um nômade que irá introduzir na estabilidade que antes reinava o seu potencial de mudança.

Jeanne Marie mostra como a figura do estrangeiro condensa os elementos de distância e proximidade. Ele seria um elemento perturbador por fazer parte do grupo e ser de fora dele. Ele não só lembra a existência da alteridade, do outro, como também tem a potencialidade de lembrar ao grupo no qual ele se infiltra que o grupo poderia ser outro, que sua identidade é mais fluida e menos segura do que se pensava. Jeanne Marie recorda a bela passagem de Edmond Jabès, quando este afirma que o estrangeiro é “aquele que te faz acreditar que estejas em casa”, para em seguida contrapor a possibilidade deste mesmo estrangeiro ser aquele que cuja presença transforma, mesmo que de forma imperceptível, a substância dessa “casa”.

Lembremos que o seminário Vida Coletiva foi realizado sob o signo da invasão israelense no Líbano. Ou seja, as diferenças entre os povos de diferentes religiões e territórios gerando mais uma guerra, mais intolerância, mais um marco na extrema dificuldade das diferenças se relacionarem sem violência.

Jeanne Marie nota as conotações sombrias do texto de Simmel já em 1908, no momento em que este revela as associações freqüentes entre pobres, inimigos internos e estrangeiros. Ou seja, como se estes grupos se tornassem comumente os culpados pelas crises. Em meio a esta posição por vezes desfavorável, Simmel lembra de uma virtude dos estrangeiros, qual seja, o seu caráter imparcial e objetivo. Por ser uma síntese de proximidade e afastamento ele poderia gozar de uma liberdade de juízo que os concidadãos não teriam. Seria este o olhar afastado, que, pela distância consegue enxergar aquilo que, por excesso de proximidade, os nativos se vêem cegos.

Ao finalizar sua fala, Jeanne Marie chega ao que seria uma nova e instigante hipótese de Simmel em relação a figura do estrangeiro. Escreve ele que a estrangeirice pode se dar na relação que julgamos mais próxima, a relação erótica. Segundo o sociólogo, qualquer relação erótica durável percorre um arco que tem início com a certeza inabalável da unicidade daquela relação e deve, ao final, chegar num ponto onde ela somente repete, a despeito de sua singularidade, o que seria um destino universal. Aquela relação, com aquela pessoa, tem um caráter contingente, algo semelhante poderia ter ocorrido com outra pessoa se o acaso tivesse colocado alguém diverso no caminho. Ou seja, um caráter contingente adentra o que se dava como permanente e absoluto. Um traço de estrangeirice se infiltra no cerne da relação mais íntima. Como diz Jeanne Marie, esse caráter vem assim introduzir distância na proximidade, estrangeirice na comunidade.

Na conclusão de sua fala, dita altamente provisória, Jeanne Marie desfaz as possibilidades utópicas de relação em sociedade. Através de suas palavras somos levados a pensar que este viver junto que está no centro das reflexões da 27° Bienal de São Paulo possui, sem dúvida, os seus limites de possibilidade. Não será na nostalgia de uma comunidade sem falhas que estará a soluções dos imensos impasses que vivemos, e também não será com pensamentos utópicos de um mundo em harmonia, sem diferenças. Juntando livremente dois títulos de Blanchot, Jeanne Marie nomeia o que seria uma “communauté à venir”. Algo que estaria em permanente transformação. Ou seja, não há uma terra prometida. Mas sim, quem sabe, na conclusão ao mesmo tempo esperançosa e sem ingenuidade de Jeanne Marie, uma comunidade de estrangeiros que conseguisse viver junto sem para isso ter que matar uns aos outros, nem solapar as suas diferenças.

Assim termina a fala da professora Jeanne Marie Gagnebin, sinalizando para a necessidade de construção permanente de uma vida em sociedade na qual o outro não inspire ódio, e as diversidades sejam respeitadas em favor de um pacto maior, no qual a dimensão humana esteja acima das diferenças. Essa tarefa que é nossa, de uma construção permanente de uma comunidade por vir, pode encontrar no território multidisciplinar da arte contemporânea um campo fértil de inspirações, pensamentos, proposições no mundo de hoje. Creio que esta seja uma das maiores apostas da Bienal concebida por Lisette Lagnado.


(por Luisa Duarte)

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