Seminário Vida Coletiva - Conferência 2

Relato da conferência “60/70: Viver a Arte, Inventar a Vida”, proferida por Celso Favaretto, em 04 de agosto de 2006

Viver-junto com a Arte

Parte da proposta da 27a Bienal de S. Paulo é expandir a dimensão temporal da exposição usando como distensor do tempo uma série de seminários que antecedem a abertura da mostra. Esticar o tempo altera a percepção do que se observa. Nessa temporalidade distendida, percebe-se ao redor da  27a Bienal -- e principalmente graças ao seminário Vida Coletiva -- uma densa camada de pensamento filosófico protegendo a arte do embotamento ao qual é freqüentemente submetida em grandes exposições. Ao insular a bienal com reflexões filosóficas, cria-se uma distância entre o cerne do programa curatorial e parte do grande público. No entanto, distância não é barreira mas sim convite à exploração de um campo novo, uma proposta de movimentação. Ao mesmo tempo em que reforçou o invólucro filosófico da 27a bienal, Celso Favaretto apresentou-nos uma época em que a arte esteve disposta a incitar movimentações de comportamento, tanto pessoais (âmbito ético) quanto da própria arte (âmbito estético).

A idéia de participação foi central nesse programa de transmutação ético-estético e também passou por mudanças no período que vai do início dos anos 1960 ao final dos anos 1970. Favaretto aponta  que, a princípio entendida como comprometimento político direto numa época de regime governamental repressivo, a noção de participação transforma-se “em uma outra política, a que apostava em vivências comunitárias”, numa “comunhão afetiva com o universo”, a atitude contracultural:

Diferentemente da atitude revolucionária dos anos 60, empenhada em transformar a realidade e o mundo, por meios políticos convencionais ou, no limite, por meio da guerrilha, a atitude contracultural imaginava uma transformação total das pessoas, inclusive por meio de uma espécie de revolução psicodélica, com a expansão da sensibilidade. Evidentemente, uma revolução que estava limitada aos extratos burgueses da sociedade.

Essa transformação  daquilo que se entendia por participação questionava a  “partilha já dada do sensível”, expressão cunhada por Jacques Rancière para caracterizar a parte do sensível passível de captura -- e portanto de participação -- a partir de noções pré-estabelecidas de trabalho, de produção artística, de estratégias de envolvimento político.

Rancière não fala do sensível como tudo o que há no mundo para ser percebido, mas supõe que captamos dele uma secção, partição: há um “sistema de formas a priori determinando o que se dá a sentir”[1].  Favaretto argumenta que reconfigurar o “sensível comum” foi o programa político de artistas visionários que na virada da década de 1960 para 1970 passaram a privilegiar como canal de acesso ao sensível justamente os processos de criação e não mais o objeto produzido, uma transformação estética imbricada com o ético.

Inscrevem-se nesse programa de alteração do “sensível comum” o programa ambiental de Hélio Oiticica e a tropicália dos músicos baianos que, nas palavras de Favaretto, “promoveram uma crítica dos modos e lugares institucionalizados de criação, evidenciação e de circulação da arte e a incorporação dos novos comportamentos que estavam sendo difundidos.”

O programa ambiental de Oiticica não se propõe como pura crítica institucional, mas sim  como investigação de novos espaços propícios ao processo criador descentralizado, que das mãos do artista passa a estar pulverizado nos corpos dos participadores.  Com o Éden, montado em 1969 na Whitechapel Gallery, Oiticica chega à proposta de “estruturas germinativas”, que Favaretto descreve como “âmbitos para comportamentos, em que a tônica sensorial desliga os efeitos de um político de função imediatista (...) instaurando a arte nos fios do vivencial.” 

Favaretto põe em relevo a função diferenciadora das células germinativas: essas estruturas  incitam uma experiência de viver esteticamente, aqui entendido como um viver que abandona  “regras institucionalizadas do viver-em-sociedade” e propõe o “viver-coletivo”. O viver-em-sociedade esvazia a experiência por exigir regras de comportamento demasiadamente gregárias. No viver-coletivo não há regras mas sim construção de sentido novo em torno de situações talvez elementares na vida-em-sociedade (caminhar, deitar, descansar, por exemplo): uma poética do instante e do gesto que, distinguindo-se da estética da existência de Foucault, inaugura o que Favaretto chamou de uma estética da curtição.

Na poética do instante e do gesto, a arte vive junto com o resto da vida. É uma arte de tendência para o concreto [2], tendência para a experiência. Mas ao pretender expandir a partilha do sensível  freqüentada pela  criação artística, a poética do instante e do gesto torna-se também filosófica pois conceitualiza um novo campo estético e ético.


(por Paula Braga)

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1. Jacques Rancière. A Partilha do sensível: estética e política. (S. Paulo: EXO e Editora 34, 2005). p. 16
2. Agradeço a Suzana Vaz pela abertura de novos pensamentos que me foram proporcionados por seu texto inédito “HO|ME Hélio Oiticica e Mircéa Eliade; tendência para o concreto: mitologia radical de padrão iniciático”.