Seminário Reconstrução - Conferência 1

Relato da conferênica "A Separação Construtiva", proferida por Renato Janine Ribeiro, em 09 de junho de 2006

A palestra do filósofo Renato Janine Ribeiro A Separação Construtiva inaugurou o Seminário Reconstrução, com a proposta de pensar sobre a ética da separação.

A co-curadora da 27ª Bienal Internacional de São Paulo e coordenadora desse Seminário, Cristina Freire, abriu o evento tecendo algumas considerações sobre o tema Reconstrução, contextualizando-o ao da Bienal que é Como Viver Junto.

Freire começa sua fala comentando sobre o sistema social e econômico que se pauta no esgotamento, em um espaço de resistência onde não se pode viver junto.  Relaciona conceitos como “reconstrução” e “indefinição”, “transitório” e “permanente”, “público” e “privado”.  Reflete sobre a noção de “Reconstrução destrutiva”, destacando que vivemos o fim de utopias: “enfrentamos simultaneamente a construção e a destruição, o estado de sítio.” A co-curadora pergunta: “É possível conceber o presente sem se interrogar sobre os acontecimentos e crises que o atravessam?”

No campo das Artes, Freire destaca o conceito de lugar como central para a Arte Contemporânea: “não existe espaço autônomo, assistimos a falência das instituições”, observa.

Nesse contexto, a co-curadora coloca questões sobre as relações entre arte e vida: “qual é a possibilidade de influência da arte na vida social? Os artistas são catalisadores de mudanças? A Arte é a reinvenção de uma ética?”

Assim, Cristina Freire encerra sua fala e passa a palavra a Renato Janine Ribeiro.

Renato Janine Ribeiro começa sua reflexão sobre o tema Reconstrução a partir das noções de descarte, redução e eliminação praticadas pela sociedade contemporânea tanto no campo do trabalho (econômico) como no afetivo (social) e pergunta: “nossa era será conhecida posteriormente como a do Grande Descarte?”

Ribeiro cita a noção de “destruição criativa”, que caracteriza o capitalismo, enunciada pelo economista Joseph Alois Schumpeter (1883-1950), para pensar o tempo de descarte em que vivemos.

Apresenta como exemplo um episódio com um ator norte-americano envolvido em um escândalo de prostituição. Tal ator, perguntado sobre qual a razão de optar pagar por uma noite com uma mulher se ele é objeto de desejo para outras tantas, responde que gasta U$ 1500,00 dólares para ter a liberdade de mandá-la embora em um táxi. Para Janine Ribeiro, essa atitude do ator demonstra que o amor e a conquista tornam-se menos importantes do que a possibilidade de descarte. Conclui que nossa sociedade vive uma sucessão de cortes que acarreta o descarte e que isso surge em decorrência de uma política de gestão da economia preocupada em reduzir o excesso e eliminar o desnecessário.

O palestrante enfatiza que nos tempos atuais, as pessoas têm mais espaço para a liberdade de expressão, mas há um descompasso entre os anseios e as possibilidades, o desejo e a realização formando um “caldo de cultura explosivo”.

Janine Ribeiro entra na seara da desigualdade social, a tônica de nossos tempos. Nesse contexto, cita o casamento da filha de Denilma Bulhões, ex-primeira-dama do estado de Alagoas, cuja festa aconteceu dentro do Palácio do Governo, em Maceió. Telões externos que transmitiam a festa e mesas de salgadinhos foram colocados do lado de fora do Palácio para que o cidadão comum pudesse acompanhar o evento e comer.  O que está por trás dessa atitude, segundo Ribeiro, é a idéia de que cada indivíduo reconheça seu lugar na sociedade e se contente com ele. Sob essa perspectiva, felizes com sua condição, os pobres participam da vida das elites “por procuração”, ou seja, como espectadores que interagem com ela de modo virtual. Assistir a festa do casamento pelo telão externo revela essa virtualidade de ver o evento sem estar dentro dele, por não fazer parte daquela elite. Não existe a possibilidade de contato real com os noivos e convidados da festa, que estão do lado de dentro do Palácio. Ribeiro estabelece aqui um paralelo com a Arte no tocante da vivência de uma realização virtual que se coloca no lugar do real.

O filósofo passa para o assunto da destruição. Lembra o episódio da depredação da Câmara dos Deputados por integrantes do MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra), ocorrida na tarde de 06 de junho passada, em Brasília, no qual detecta a ruptura dos elos sociais. Nesse episódio, manifestantes do MLST invadiram uma das laterais da Câmara (Anexo 2), após um confronto com seguranças, num ato impressionante de vandalismo contra o Congresso. Segundo dados do jornal Folha de São Paulo (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/inde07062006.shl), “o último tumulto de proporções significativas no Congresso aconteceu em agosto de 2003, quando servidores públicos depredaram parte do prédio em protesto contra a reforma da Previdência”. Ainda de acordo com o jornal, os manifestantes depredaram “várias luminárias, quatro computadores, três portas de vidro, um busto de bronze do ex-governador Mario Covas (1930-2001) e duas exposições”. O vandalismo culminou com o lançamento de um carro Fiat Uno contra uma das portas de vidro do Congresso.

Para Janine Ribeiro, devido a atos de destruição como esse (lembre-se também dos recentes ataques do Primeiro Comando da Capital – PCC, em São Paulo), cada vez mais se agrava a preocupação com a segurança pública em nossa sociedade. Circuitos internos de câmeras de vigilância estão instalados por toda parte monitorando os atos das pessoas. Não raro, para ingressar em determinados edifícios solicita-se o uso de cartões magnéticos de identificação.  Nesse âmbito, não se sabe quem está preso ou solto uma vez que o conceito de prisão passa pelo de clausura. O indivíduo comum está “preso” dentro de sua própria residência, cercado de aparatos de segurança. Ribeiro ilustra essa idéia vislumbrando uma possibilidade de anúncio imobiliário no futuro: “Empreendimento equipado com a tecnologia dos maiores presídios de segurança máxima”.

O filósofo volta ao tema da redução do excesso que surge na esfera da gestão da economia. Comenta que, sob o ponto de vista da filosofia, não está errado excluir o desnecessário. Cita a Navalha de Ockham, “descoberta ou invenção” do filósofo tardomedieval Guilherme de Occam, segundo a qual, ressalta Janine Ribeiro, “todo momento desnecessário ou prescindível numa demonstração deve ser extirpado” – nada mais, nada menos – resultando na precisão da construção do conhecimento.

O palestrante acredita que reduzir o excesso torna-se um problema quando se passa do campo científico para o ético e político. Seres humanos desnecessários ou redundantes (como no inglês “make redundant” que significa “demitido”) são trocados – “pessoas cujos empregos ou laços podem ser destruídos”. Observa que as vantagens econômicas dessa redução podem ser grandes, mas que os custos sociais dessa prática são altos. Volta a frisar que, por isso, nossa era pode tornar-se conhecida como a do “Grande Descarte”.

Nas relações humanas, Ribeiro enfatiza a perda do espaço da conquista em favor da separação citando uma situação próxima de si: seu amigo canadense lhe contou que o namorado da irmã terminou a relação de anos com um simples e-mail. Nesse contexto, pontua que é mais fácil trocar de companheiro(a) do que lutar por restabelecer uma relação desgastada. Lembra do comentário do psicanalista Jurandir Freire Costa que considera o lançamento do medicamento Viagra tardio, justamente por essas razões.

Nesse contexto, Renato Janine Ribeiro observa que atualmente os laços se desfazem com facilidade. Vivemos um momento em que a afirmação pessoal é muito valorizada no meio cultural.  Cada um pensa no que é mais adequado para si.

O filósofo pergunta: “Estará chegando o momento de proceder à criação de novos laços como propõe o tema da Reconstrução, nesta Bienal?” Acredita que essa reconstrução não pode ser uma “simples restauração dos laços anteriores”, que se baseavam na renúncia da escolha pessoal. Exemplifica tal idéia com o filme E O Vento Levou (Ano: 1939; direção de Victor Fleming; país: EUA), a partir do amor platônico da personagem protagonista, Scarlett O’Hara, por Ashley Wilkes.

O’Hara quer casar-se com Wilkes, que casa-se com Melanie, ao que tudo indica, por interesse.  Segundo Janine Ribeiro, quando Ashley decide-se pela união, arranjada, com Melanie, opta por uma continuidade de longo prazo a favor da perpetuação do clã. Trata-se, portanto, de uma renúncia da realização individual do personagem (escolher com quem casar), em prol de uma realização coletiva (manter a linhagem da família). De modo inverso, a protagonista Scarlett O’Hara pensa somente em sua realização individual, ao insistir no sentimento platônico por Ashley e recusar o amor possível de Rett Butler. Com a morte de Melanie, quando estaria livre para relacionar-se com Scarlett, Ashley Wilkes, apesar de ter-se casado por interesse, percebe que amava a esposa.  Scarlett entende, assim, que Wilkes nunca a amou de fato. Sob essa perspectiva, Janine Ribeiro considera que a renúncia à realização pessoal não deve ser entendida sem matizes. Isto é, tomando o exemplo do filme, se Ashley renunciou o suposto amor que sentia por Scarlett para casar-se com Melanie, ele tinha um motivo maior que era a continuidade da linhagem de sua família – um valor social, na época e cultura em que o filme se passa/ambienta.

Outro exemplo dado por Janine é uma passagem do filme A caminho de Kandahar (Ano: 2001; direção de Mohsen Makhmalbaf; país: Irã) no qual o marido afegão vai buscar próteses de pernas para a sua esposa. Aqui Janine Ribeiro destaca a questão de que dependendo da cultura de determinado povo, a realização pessoal terá ou não peso.

A existência de pessoas com pernas mutiladas no Afeganistão é uma realidade devido aos campos minados que subsistem às guerras. O filme mostra um helicóptero que lança próteses de pernas artesanais, sobre tendas da Cruz Vermelha. A espera para a obtenção de uma prótese pode chegar a um ano. O marido que vai buscar as próteses para sua esposa, nega-se a recebê-las quando percebe que as pernas artificiais a tornarão mais alta do que ele.  Alega que ela sofrerá com as “pernas de homem”. Janine Ribeiro acredita que a esposa do tal homem esteja de acordo com sua atitude. A realização individual dela de voltar a andar fica subjugada à decisão do marido, em um país em que as mulheres não têm voz.

Ribeiro coloca o fator cultural como determinante de uma realização individual ou coletiva lembrando da Guerra do Afeganistão (1979-1984) e da Guerra do Vietnã (1964-1975).  Ele aponta que a derrota da antiga União Soviética no Afeganistão foi antropológica pelo fato de que os soviéticos não levaram em conta que estavam lidando com uma cultura completamente diferente da sua. Na visão de Janine Ribeiro, os afegãos não queriam ser libertados do ambiente em que viviam. Ribeiro considera que a então União Soviética não percebeu os valores semi-tribais conservadores ao extremo que prevaleciam no Afeganistão e por isso perdeu força.

Para Renato Janine Ribeiro, a derrota soviética no Afeganistão constitui uma metáfora para a falência do comunismo. Por outro lado, afirma, a derrota militar norte-americana no Vietnã é política, enquanto a derrubada das Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 é antropológica. Os conflitos antropológicos continuam. Ribeiro conclui que culturas como a afegã provavelmente se perpetuarão enquanto a nossa “não admite a recusa da realização pessoal”.

O próximo ponto de discussão proposto por Janine Ribeiro concerne às relações entre os custos da destruição e da liberdade na sociedade contemporânea: “nossa sociedade está consciente do custo da destruição ou não quer abrir mão da liberdade em troca dos valores do passado? Qual é o vínculo dessa liberdade com o desinteresse pelo outro? Estamos conscientes desses custos?” Destaca que estamos diante de intermináveis escolhas como a do par amoroso ou do desejo de realização pessoal/profissional, mas conseguir obter sucesso em tudo se torna um fator complicador.

Como ilustração desses dilemas, Janine Ribeiro comenta o papel do homem e da mulher na sociedade atual. Hoje em dia um não deixa sua realização pessoal ou profissional pelo outro. Se, em um casal, o homem tem uma boa proposta de trabalho em outra cidade, a mulher não o segue se não for conveniente para ela. Em outros tempos, seguir o marido para onde ele fosse era um fator natural para a esposa. Hoje, se a mulher tiver alguma vantagem profissional, no mesmo período que o marido, opta por obtê-la conferindo mais importância ao trabalho do que a vida conjugal. Porém, segundo Ribeiro, essa transformação social dos papéis do homem e da mulher não tem mais que trinta anos. Então, como lidar com essa configuração recente? Em sua ótica, falta sabedoria para administrar os papéis de cada um na relação gerando uma guerra conjugal que resulta em separações. Janine Ribeiro acredita que faltam também resignação e renúncia, algo fundamental em favor do outro, e questiona: Qual o nível de renúncia que a felicidade requer? O que é sabedoria? Que nível de sabedoria temos hoje?

Outro ponto que Janine Ribeiro destaca diz respeito à identidade do indivíduo relacionada ao aumento da expectativa de vida.

Segundo o filósofo observa, indivíduos que nascem hoje têm expectativa de vida de 115 anos e isso pode trazer problemas. Com um caminho tão longo pela frente as pessoas terão diversas identidades ao longo da vida e não apenas papéis definidos como casar-se, ter filhos e netos. As possibilidades de mudança de profissão aumentam, assim como as opções pela maternidade antes ou depois da estabilização da vida profissional, no caso das mulheres.  Como nos preparamos para isso?

Janine Ribeiro acredita que se deve guardar e respeitar o valor de nosso passado, embora hoje ocorra o contrário. O passado é aniquilado, quando se muda de profissão ou de parceiro. Esquece-se que, se chegamos até determinado ponto é porque situações passadas nos levaram a isto.  Para Janine Ribeiro, quando os elos se desfazem, precisamos preservar o valor deles. O filósofo propõe então reconstruir uma ética para o momento atual a qual denomina de ética da separação.

A palestra de Renato Janine Ribeiro toca em pontos importantes da vida cotidiana, dos quais, nem sempre, nos damos conta. As mudanças são muito rápidas e seguimos vivendo tentando nos adaptar a elas, o que não significa que as absorvemos por completo.

Tomando como exemplo as relações amorosas, casar, no passado, significava cumprir um ritual composto por cerimônia religiosa, civil e festa. Depois os recém-casados iam viver na mesma casa, escolhida em conjunto, e constituir família.  Hoje casar pode significar viver em casas separadas, optar por cumprir apenas algum dos rituais ou nenhum. Essas opções, refletindo sobre a palestra de Ribeiro, nascem a partir da manifestação da individualidade como um valor social fazendo com que a realização pessoal supere qualquer necessidade de viver junto e arcar com os custos dessa vivência. Viver em casas separadas é o maior sinal da necessidade de preservar a individualidade acima de tudo. Manter o foco no sucesso da vida profissional – atitude valorizada em nossa sociedade – colabora para a falência do plano afetivo.  Não se consegue harmonizar profissão e amor.

Janine Ribeiro levanta a questão do descarte que, sem dúvida, simboliza a contemporaneidade. Se começarmos a pensar em pequenas coisas como a existência de copos, pratos e talheres descartáveis, câmaras fotográficas, fraldas para bebês, etc., notamos como estamos impregnados de descartes.

Se em pequenas coisas o descarte é um valor, por que não seria na vida amorosa e profissional das pessoas? Trocar de par amoroso rapidamente é descartar. Os quadros de funcionários cada vez mais enxutos das empresas revelam a profilaxia do descarte. A medida de terceirizar um trabalho, descartando o vínculo empregatício, elimina a necessidade de convivência. Reuniões esporádicas dão conta do relacionamento necessário para o sucesso na realização da tarefa.

Só o tempo colocará as coisas no devido lugar e nos tornará capazes de constituir a ética da separação proposta por Renato Janine Ribeiro.

(por Daniela Maura Ribeiro)

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