Seminário Reconstrução - Conferência 3

Relato da conferência “Uma experiência russa: de 'zonas confidenciais' a 'zonas operacionais'”, proferida por Viktor Misiano, em 10 de junho de 2006

Experiência de "como viver juntos" no Leste Europeu, no período de [re]construção pós-Perestróika

Articulando-se ao mote da próxima Bienal, "Como viver junto", a fala do russo Viktor Misano, curador e crítico de arte contemporânea, pôde ser encarada como esclarecedora de modelos e práticas artísticas em curso no Leste Europeu no período que chama de "pós-Comunismo", ao longo dos anos 1990. Misiano inicia sua exposição ressaltando que a Rússia vivenciou uma experiência radical, quando o caos social e político paralisou os artistas, e do colapso das instituições os artistas saíram em busca de "um novo sujeito", que o russo associa ao conceito de "multidões inflacionais" de Elias Canetti. A partir de exemplos como uma intervenção-performance realizada em 1993 pelo artista Osmolovski, um representante da corrente do "actionism" - em que este se aboleta no ombro do monumento a Maiakóvski -, aponta algumas características que perpassaram toda a produção artística do período pós-socialista, como a tônica em um componente algo romântico, algo ingênuo, mas sempre permeada pela ironia. Assinala o individualismo de ações como esta e estabelece um contraponto à idéia de "viver juntos", de onde deriva a idéia-conceito, de sua autoria, de "comunidade confidencial"[1], modelo que relaciona a toda uma gama de projetos em curso na Europa Oriental, alguns curatoriais, muitos iniciativas de artistas. O que tinham em comum era sua meta em "dissolver a prática artística em contatos humanos diretos".

Algumas iniciativas e projetos constituíam-se em desdobramentos do programa APT-ART International, cuja essência era renovar a tradição de eventos underground no ambiente pós-Soviético, por meio da realização de exposições de arte em apartamentos particulares. Artistas russos e do exterior eram convidados a Moscou para exibir em apartamentos ou estúdios, dissolvendo sua arte num elemento de contato mais vital[2].


Estética relacional e comunidades confidenciais

Muitos aspectos desta prática eram reconhecíveis no que estava se desenrolando na Europa Ocidental em um tipo de experiência que Nicolas Bourriaud resumiu como estética relacional; Misiano ressalta a importância, contudo, de se apontar as "diferenças de nuance" entre ambas as práticas, sobretudo a partir da distância contextual sócio-política e ideológica que marca esses cenários, o áspero e institucionalmente falido cenário pós-soviético e o componente utópico-escapista da contrapartida ocidental. "De fato, comunidades criativas formadas durante "projetos confidenciais" na Europa Oriental não se constituíam tanto como uma "alternativa" à infra-estrutura institucional como o eram no Ocidente, sendo antes um substituto efetivo para a mesma", afirma o crítico. E continua: "No mundo ocidental, os artistas associados à noção de estética relacional fugiram da instituição pública e criaram comunidades relacionais dentro do sistema da arte, atuando como 'parasitas em off' a estes espaços, valendo-se de seus recursos e continuando a receber a legitimação destes. Mas nos países pós-comunistas, imersos em crises econômicas e sociais, as próprias instituições começaram a fugir dos artistas, desaparecendo ou perdendo sua capacidade operacional. As comunidades confidenciais se constituíam na única forma de contato real e direto entre artistas e ativistas, e de legitimação da arte como um fenômeno social". Outra distinção da estética relacional ocidental, "programada para ser uma doce utopia, com comunidades harmoniosas", estaria na natureza interna conflituosa e insolúvel dos projetos confidenciais do Leste. Por essa razão, a crítica associada a comunidades relacionais ocidentais em anos recentes não poderia ser aplicada à experiência das "comunidades confidenciais". "Hoje se acusa a estética relacional de um confortável escapismo, muito distante das demandas por uma democracia genuína, sendo sua essência não o triunfo da harmonia e o conforto, mas a consciência do antagonismo ideológico. No caso das comunidades confidenciais, o antagonismo não se manifesta apenas na natureza polarizada de posicionamentos, mas também no fato de que estes projetos tendiam a questionar a própria comunidade", complementa Misiano. É portanto essa "versão" de estética relacional que o crítico nomeia "comunidade confidencial", um tipo de relação baseada na amizade, "nível mais primário de relações sociais e que se baseia na absoluta igualdade entre relacionamentos, valorizando a primazia do horizontal sobre o vertical".


Alteridade e conflito

Outro aspecto característico das comunidades confidenciais era o "repúdio à expressão de uma individualização radical", tão peculiar às práticas artísticas dos tempos pós-soviéticos, insistindo, ao invés, na significância do Outro. "O destino dos projetos confidenciais era interiorizar a transgressão individual, tirá-la da mídia e do contexto social para inseri-la no contexto artístico", afirma Misiano. Como resultado, a ordem interna das comunidades confidenciais tendeu a tornar-se instável. "Afinal, numa situação em que a disciplina está em crise, a identidade precede a comunidade; num contexto de ausência de infraestrutura cultural, a identidade profissional dos participantes nos projetos confidenciais se baseava exclusivamente no ato de auto-afirmação deles próprios como artistas. Sucede que, resistindo ao caos simbólico, o artista tinha que criar uma imagem de mundo interna bem-ordenada, justificando a identificação que ele tinha declarado. Assim, as discussões nas comunidades confidenciais tornaram-se um encontro de posições irredutíveis a priori e lugar de confronto ou conflito".

Essa questão do conflito, ou antagonismo, é plenamente ilustrada em trecho de um vídeo [excerto de um dos projetos coordenado pelo próprio Misiano, um "atelier antropológico" centrado numa dinâmica de discussões com artistas para o qual convidou um filósofo russo, Valery Podoroga] em que se desenvolve uma "discussão filosófica" acerca de ética e violência; o ponto de vista do palestrante é demonstrado do modo mais literal possível, com o mesmo indo "às vias de fato" com um interlocutor. Misiano utiliza este exemplo-metáfora radical para conduzir uma reflexão acerca dos problemas da democracia, que afinal se basearia no conflito; noção que de resto se apresenta como cara a ele, que assume concordar com a linha de crítica à estética relacional que a acusa de repudiar o antagonismo. A seu ver, este elemento não pode ser desconsiderado como potencializador para a efetividade de determinadas linhas de ação.


Novos modelos: zonas operacionais

Na esteira do comentário à "democracia" e ao antagonismo, outro ponto a perpassar o discurso de Misiano é o da questão da passividade social em seu país, que se articularia, para o russo, ao pensamento de Giorgio Agamben, resumido no axioma dos "meios sem um fim". Conclama a uma revisão do conceito de antagonismo e chama a atenção para a tendência a uma "imitação de democracia" em vigor em países do bloco leste europeu, e a subseqüente "imitação de antagonismo" como estratégia possível para a mobilização artística. Ressalta que tornou-se imperativo distinguir entre antagonismo genuíno e sua imitação, pois, se "o antagonismo é o sinal mais evidente de democracia", como aponta, então regimes em que vigora uma "imitação de democracia", que é exatamente como o sistema político de muito países do pós-Comunismo é definido, estariam simulando antagonismo e criando formas distorcidas do mesmo. Para o russo, só seria possível discernir o "antagonismo genuíno" de sua imitação dentro dos limites de um discurso teórico. "É por isso que a maioria das novas iniciativas se formando nos escombros das comunidades confidenciais estão se consolidando em torno de um objetivo comum: a discussão e elaboração dos contornos de uma nova teoria crítica", postula Misiano. Para ele, os projetos e iniciativas artísticas da nova geração, "sublimando a paixão e a exaltação no curso das discussões", estariam introduzindo um tônus emocional diferenciado, que as afasta do espírito cínico da "alegre resignação". No entanto, assinala, "não há nada, no antagonismo das novas comunidades, da transgressão do passado recente. Agora, a presença de fins em comum entre os membros dessas comunidades confere a eles uma identidade em comum. E portanto a amizade não se mostra mais como o elemento de união nessas comunidades, sendo substituída pela 'solidariedade ideológica'". De um modo geral, as novas iniciativas estariam sendo definidas não pela idéia de processo, mas pelo resultado; e sua duração, determinada não por circunstâncias externas, mas pela completude de um trabalho concreto. Estas novas "comunidades solidárias" estariam imbuídas de uma atitude pragmática mais consistente, pautada na consciência do potencial criador do antagonismo e manifesta em resultados reais. E por essa razão, vêem a si próprias como "comunidades operativas". Assim, estas novas iniciativas estariam se confrontando com a missão "de construir não somente zonas de criação solidária, mas também a de erigir zonas de autonomia artística, de outros critérios de qualidade do produto artístico".


Encerramento - Desencanto?

Misiano comenta ainda a produção o grupo "Chto diélat'?" ["O que fazer?"], uma associação de artistas, literatos e filósofos de São Petersburgo, Moscou e Berlim. O cerne de sua atividade é um jornal homônimo. Sua produção é calcada na subversão de imagens arquetípicas do período "heróico-glorioso" do regime soviético. A ironia e o humor dão a tônica de seus projetos, tendo a chave antagonismo-solidariedade um papel central em sua atuação; percebe-se também a valorização – embora com mordacidade - da alteridade, o "radical-other" ["A utopia da amizade é a utopia mais importante", diz a legenda em certo momento do vídeo].

Encerra sua fala discerrando sobre o capitalismo e sua incapacidade ou falta de critérios para julgar a arte, citando Greenberg e suas "categorias" de passagem; comenta que é atacado por não ver muito por onde se pensar em "novos critérios", uma vez que as regras do mercado tudo enquadram, e quase nada escapa ao apelo do "fetichismo capitalista". Deixa entrever que um critério dele próprio, Misiano, seria o da complexidade. Acredita que há formas de ação artística inovadoras e interessantes, mas que sempre correm o risco de se tornar "estilo", passíveis de cooptação pelo mainstream; metodologias elogiosas mas que podem se tornar um maneirismo de si próprias. E apresenta, por fim, trecho de um vídeo de um artista russo, Gutov, intitulado Thaw. No filme, a trilha de Shostakóvitch embala o que seria uma "alegoria-diagnóstico" da situação contemporânea na Rússia, marcada por forte clima de desesperança. O filme parece lançar a pergunta com que Misiano encerra sua exposição: "Quais as possibilidades de sobrevivência em meio à alegre resignação dominante"?


Notas:

1. Em inglês, "Confidential communities", de "confidencial", sigiloso, mas assinalando também a idéia de "confiança", intimidade. Cabe ressaltar a mudança de registro e alguma inadequação na tradução literal para o português, uma vez que se compromete o sentido da conotação original, derivada da dinâmica de intimidade e amizade que permeava essas iniciativas artísticas.

2. Embora não citado por Misiano, esse "modelo expositivo" guarda grande similaridade com os Festivais de Apartamento, eventos promovidos pelo Neoísmo, obscuro movimento artístico de tônica anarco-iconoclasta surgido no Canadá em meados dos anos 1970. O Neoísmo incorporava estilemas de diversas outras tendências de vanguarda, como o Dada, a arte postal, o Fluxus e o punk.


(por Guy Amado)

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