Seminário Reconstrução - Debates
Como viver junto sem os mitos modernistas da universalidade e das
identidades nacionais? Dito em outras palavras, como definir um projeto
de convivência mútua quando as idéias de civilização e cultura parecem
desestabilizadas ou até mesmo obsoletas? Latente nas palestras e
debates dos dois primeiros seminários (Marcel, 30 e Arquitetura), o
problema da vida coletiva na atualidade foi central nos debates do
Seminário Reconstrução.
Na primeira sessão de palestras, tivemos a possibilidade de assistir
uma aproximação entre arquitetura e filosofia política a partir de duas
abordagens distintas sobre a “simbologia do lugar”, para usar a
expressão da co-curadora da exposição e organizadora do seminário
Reconstrução, Cristina Freire; a “derrota antopológica” da antiga União
Soviética no Vietnã (Renato Janine Ribeiro) e a apropriação da Martys’
Square pela população libanesa, após o assassinato do primeiro ministro
Rafiq Hariri (Tony Chakar). “Qual a possibilidade de ainda nos
apropriarmos dos espaços públicos”? Foi a primeira pergunta, feita pela
co-curadora da Bienal. Renato Janine Ribeiro destacou a
dificuldade dessa apropriação devido ao esvaziamento/marginalização do
espaço público, citando como exemplo a Praça da Sé, marco zero da
cidade de São Paulo; palco de manifestações políticas no passado, a
praça encontra-se hoje sob a ocupação selvagem e marginal dos
pichadores e moradores de rua. O palestrante não deixou, no entanto, de
considerar o potencial crítico das pichações, expresso no tom
humorístico de frases como esta: “não compre jornais, minta você
mesmo”. Por fim, Ribeiro afirmou que a questão colocada por Cristina
Freire refere-se a uma utopia inviável nos dias de hoje, fato
assinalado pelo efeito temporário de manifestações como aquela da
Martys’ Square.
Com a palavra aberta ao público, Veronica Cordeiro questionou a
pertinência dos espaços em branco nas “representações arquitetônicas”
apresentadas por Tony Chakar. “A não-representação de espaços
construídos não seria o equivalente à omissão de um conhecimento que
poderia estar acessível”? Na opinião do palestrante, questionar as
convenções da representação arquitetônica, como, por exemplo, o espaço
branco no desenho corresponder a um espaço vazio, trata-se, justamente,
de uma tentativa de levar o espectador à repensar as relações
arbitrárias dessa linguagem. O projeto do professor da Academia
Libanesa de Belas Artes, que gera também debates com os seus
estudantes, pretende problematizar a representação arquitetônica
(cortes, vistas e plantas), inventando novas maneiras de representar o
espaço em seus aspectos comunicativos. Outra pessoa da platéia
perguntou à Tony Chakar o porquê da apresentação somente da
representação arquitetônica (maquete) da ocupação da Martys’ Square;
“esse lugar para viver junto não é possível na realidade”? O
palestrante mencionou a dificuldade de encontrar alguma documentação
fotográfica dessa ocupação, e aproveitou a oportunidade para ressaltar
que os projetos apresentados procuram produzir “unidades de medida para
espaços infinitos” (poéticos), como, por exemplo, algumas favelas de
Beirute que apesar da não oferecerem nenhuma infra-estrutura aos seu
moradores são consideradas como um verdadeiro “lar”. Trata-se,
portanto, da tentativa de representar algo intangível.
Questionado pelo público sobre a relação sujeito-objeto na “guerra
antropológica”, Renato Janine Ribeiro frisou não tratar-se de uma
“guerra”, mas uma “derrota antropológica” sofrida pela União Soviética
no Vietnã, onde o diálogo entre duas culturas totalmente diferentes foi
impossível. Nesses casos, segundo Ribeiro a relação sujeito-objeto (ou
melhor dizendo intersubjetiva) não está pautada no diálogo, na troca e
na reciprocidade, porque a impossibilidade de tradução dos discursos e
a inexistência de pontos de comunicação tornam a aproximação entre os
sujeitos “forçada”. Um dos resultado disso é o fato de que a tradução
de tudo para termos “ocidentais” impede que as outras culturas se
expressem no sistema global.
Comentando a palestra de Renato Janine Ribeiro, que abriu o seminário
Reconstrução afirmando que “estamos num tempo de descarte” e
assinalando a necessidade de uma “ética da separação”, que defende a
“preservação da memória do que foi bom”, a curadora da 27ª Bienal de
São Paulo, Lisette Lagnado, relembrou o filósofo F. Nietzsche, para
quem “é necessário esquecer para continuar”, e, consequentemente, para
viver junto. “Como pensar no convivência pacífica entre israelenses e
palestinos sem o esquecimento”? Para Lagnado, o luto e a vingança
estariam ligados à lembrança e à memória. O luto impede que a vida
prossiga normalmente, enquanto a vingança leva ao conflito e impede a
coexistência pacífica. Nesse sentido, o perdão estaria associado ao
esquecimento, e, portanto, a única saída para a resolução do conflito
seria fazer da história uma tábula rasa. Por outro lado, seria
interessante mencionar outro filósofo, H. Marcuse, para quem esquecer
significa “perdoar o que seria imperdoável se a justiça e a verdade
prevalecessem”. Marcuse certamente se referia à impossibilidade de
esquecer os horrores do Holocausto. Seria prudente, portanto, entender
como alemães e judeus conseguiram prosseguir sem esquecer o horror
nazista e mantendo na memória a vergonha de um e a dor do outro.
A réplica de Janine Ribeiro seguiu nessa direção, caracterizando o
conflito Israel-Palestina como pseudo étnico, onde a questão principal
em jogo é a construção de um ambiente próspero para os dois grupos,
ressaltando assim mais os aspectos políticos e econômicos do que os
“antropológicos”. Vale lembrar que esse conflito (re)iniciou quando, no
pós-guerra, o Estado de Israel foi criado como reparação aos crimes
nazistas justamente em um território ocupado pela comunidade palestina.
Por fim, o palestrante afirmou que: “a rigor, o grande problema não
está na morte, mas no futuro de quem está vivo”. Não é o sentimento de
vingança que motiva os conflitos, mas a falta de perspectiva em relação
ao futuro. Nas suas palavras, “o problema não é o sofrimento passado,
mas o sofrimento presente”.
O que nós temos em comum? Como nós podemos viver,
colaborar e trabalhar junto? Enfim, o que pode ser feito para
construirmos um espaço de convivência e colaboração pautados numa
“estética relacional”? Essas questões, elaboradas no contexto das
“comunidades” artísticas apresentadas por Viktor Misiano, estavam em
sintonia com os debates da primeira sessão de palestras. No entanto, o foco da discussão retornou do eixo temporal
(história e memória), no qual o debate da noite anterior havia
encerrado, para o eixo espacial, a partir de uma problematização sobre
o espaço público.
Abrindo a sessão de debates do sábado, a curadora da exposição, Lisette
Lagnado, fez uma pergunta ao curador russo, problematizando a
existência de um espaço público no seu país e a distinção em relação ao
espaço privado. Viktor afirmou que essa foi uma questão central para a
arte contemporânea internacional no pós-guerra, na medida em que meio
artístico underground (marginal) operava numa interconexão entre o
público e o privado. Um bom exemplo seria a APT-ART, na qual
apartamentos deixavam de ser espaços privados, mas diante do contexto
político da época, marcado por Estados autoritários (o que foi uma
especificidade do leste Europeu e das Américas, pois a Europa e os EUA
estavam sob a égide do Estado de Bem-Estar e a África atravessava o
período de suas Guerras anti-imperialistas) tornavam-se esferas
públicas “interiorizadas”, onde indivíduos organizam algo coletivo em
um ambiente privado. Atualmente, observamos exatamente o oposto;
experiências da vida privada (beber, conversar, etc.) encenadas em
público, que constroem uma nova forma interação entre o público e o
privado. Cristina Freire comentou a resposta de Misiano, assinalando a
diferença entre a “necessidade” (histórica) de criação de espaços
alternativos dentro de regimes autoritários, nos quais essas eram as
únicas alternativas possíveis, e as buscas atuais por espaços ditos
alternativos, que configuram-se muitas vezes como movimentos das
próprias instituições artísticas em busca da instrumentalização do
espaço público. Na platéia, Ana Paula Cohen replicou esse comentário,
afirmando que atualmente existe uma “necessidade” de espaços
alternativos, mesmo que esta seja de outra ordem. Além disso, nas suas
palavras “hoje temos uma dificuldade maior em diferenciar espaço
público e privado, devido à sua fluidez”. Criam-se, portanto, espaços
(zonas) temporárias de atuação. Temos aqui, talvez, uma referência ao
exemplo apresentado por Tony Chakar; apesar da Martys’ Square ser um
espaço público, a sua ocupação temporária agregou a esse espaço outros
usos e significados. Lisette Lagnado afirmaria mais tarde que concorda
com essa “questão do temporário”, hoje “não existem mais projetos para
sempre, mas momentos coletivos temporários que deixam resíduos”.
Por fim, Lisette questionou o voyerismo do espectador na obra da
artista Orlan, uma das artistas apresentadas pelo psicanalista e
professor João Frayze-Pereira: “ela poderia estar junto com os demais
artistas apresentados, sendo talvez o baluarte da sociedade do
espetáculo (Guy Debord)?” Frayze-Pereira não veria o trabalho da
Orlan dessa forma, primeiro, por não reconhecer neste uma
teatralização, e, segundo, porque o voyer busca o deslumbramento diante
do objeto, enquanto o espectador da obra de Orlan e da sociedade do
espetáculo de maneira geral “sai da exposição sem nada”, porque as
imagens são abjetas. Lisette replicou afirmando que também podemos ser
voyers do abjeto, dessa exploração do “disgusting” que a Orlan promove,
lembrando alguns programas de TV sensacionalistas.
Seria interessante observar que artistas como Orlan não operam mais no
espaço público no seu sentido restrito, a saber, um espaço gerido pelo
Estado e utilizado coletivamente, mas em espaços midiáticos, palco de
intervenções artísticas e sociais que seriam debatidas na última sessão
de debates.
Um debate sobre as relações entre arte e ativismo, ou,
em outras palavras, entre estética e ética, seguiu à última sessão de
palestras do Seminário Reconstrução, que apresentou dois programas
distintos de intervenção artística; no espaço institucional, com os
dilemas e impasses da exibição da obra de Daniel Buren no Guggenheim
(NYC), tema da conferência de Jean-Marc Poinsot, e no espaço
informacional, com o ativismo midiático da artista Minerva Cuervas.
Inicialmente, Tony Chakar questionou: como o “incidente de Buren” (a
saber, a retirada da sua obra de uma exposição no Guggenheim, em 1971,
curada por Diane Waldman, atendendo aos pedidos dos artistas Donald
Judd, Dan Flavin, Joseph Kosuth, and Richard Long, que dividiam com
Daniel Buren o espaço expositivo) pode ser considerado como um exemplo
de conflito dentro de um “espaço compartilhado”? Segundo Jean-Marc
Poinsot, a divisão e, por conseguinte, o compartilhamento desse espaço
é algo “imaginário”, cabe, portanto, ao bom curador, saber dividir e
compartilhar o espaço expositivo. Uma das atribuições do curador seria
justamente ser um administrador desse espaço compartilhado entre as
obras e os artistas, atuando para que as obras, que lutam pela atenção
do espectador, não competissem entre si. A priori, não seria, portanto,
uma atitude antiética de um curador, recusar a proposta de uma artistas
pelos motivos acusados por Judd, Flavin, Kosuth e Long (a saber, a
interferência do trabalho de Buren, devido às suas dimensões e
disposição no espaço expositivo). O “escândalo” mencionado por Poinsot
foi, nesse caso, a retirada da obra de Buren atender aos pedidos dos
artistas que compartilhavam o espaço com o artista francês.
Mas existe também uma outra questão envolvida no incidente de Buren no
Guggenheim. Stéphane Huchet questionou Jean-Marc Poinsot sobre os
motivos que teriam levado Joseph Kosuth a opor-se à Daniel Buren
daquela forma. O palestrante francês não mencionou as razões pessoais
que motivaram a atitude de Kosuth, mas indicou que Buren, nas suas
palavras, um “pintor”, estava lidando com questões caras aos artistas
conceituais, a saber, a crítica institucional. Na medida em que a obra
de Daniel Buren extrapola os limites imaginários do “cubo branco”,
invadindo o espaço autônomo que deveria abrigar as obras, e os limites
arquitetônicos da instituição, ele evidencia esses limites e critica a
instituição artística a partir do seu interior. Talvez, a verdadeira
razão que tenha levado Buren a desagradar tanto os minimalistas Judd e
Flavin, quanto os artistas conceituais, Kosuth e Long, tenha sido
justamente atravessar a barreira que separava duas estratégias de
intervenção artística, o site specific espaço-temporal minimalista e o
sistema institucionalizado da arte no qual operava a arte conceitual.
Desse modo, o problema surgiu porque o espaço “compartilhado” continha
uma fronteira, que dividia dois grupos distintos, e Daniel Buren optou
por atuar nas bordas dessa fronteira.
Coincidentemente, ou não, a artista mexicana Minerva
Cuervas opera dentro de uma espaço diferente dos minimalistas e dos
artistas conceituais. O espaço de operação de sua obra é informacional,
ela atua através de um discurso que na sua base não pode ser
diferenciado do discurso das grandes corporações e dos sistemas de
telecomunicação. Atendendo ao pedido feito por Stéphane Huchet,
Jean-Marc Poinsot comentou o trabalho de Minerva afirmando que
diferentemente de Daniel Buren, cuja obra dialogava com a instituição
através da arquitetura, Minerva utiliza uma linguagem “corporativa” e
imagens midiáticas. Nesse sentido, poderíamos inferir que embora os
atistas conceituais tivessem extrapolado o espaço institucional, o foco
de suas atenções e críticas ainda era este mesmo espaço. Já a potência
crítica do programa artístico apresentado por Cuevas não está mais
direcionada à insituição artística, mas ao espaço público midiatizado,
o qual ela intencional modificar éticamente. Contudo, para além da
sedução do trabalho apresentado, como foi assinalado por Tony Chakar,
devemos tomar uma distância crítica em relação à essas estratégias
artísticas. Em certos casos, como por exemplo, trocar etiquetas com os
preços de produtos nos supermercados, tornando produtos alimentícios
mais baratos aos consumidores, o ativismo parece estar sobreposto ao
artístico - a própria artista comentou que muitos questionam ser ela
uma artista ou uma ativista. Em outros casos, como por exemplo a
utilização de símbolos corporativos (o “clown” de uma rede de
lanchonetes), a estratégia de ação torna-se ingênua se comparada com as
estratégias de marketing das grandes corporações. Tony Chakar assinalou
a necessidade de uma ação de complexidade proporcional àquela utilizada
pelo sistema no qual estamos interferindo, para evitar a sua fácil
apropriação. Não seria a exposição midiática proporcionada pela
intervenção artística – a própria artista mencionou a repercussão do
fato na imprensa – benéfica, em última instância, à corporação
criticada. O famoso “falem mal, mas falem de mim”. Além disso, nas
palavras de Estéphane Huchet, “a arte não poderia ser política por si
mesma, sem ser militante e engajada?” Afinal, “a obra de arte veicula a
sua própria política”.
No encerramento do Seminário, feito por Cristina Freire, a co-curadora
da Bienal assinalou a necessidade de Reconstrução da história da arte
conceitual a partir de dois pontos de vista distintos: um
norte-americano e europeu ligado ao site-specific e à crítica
institucional, e outro latino-americano ligado a um site-specific
discursivo, representado historicamente na figura de Cildo Meireles.
(por Vinicius Spricigo)