Seminário Arquitetura - Conferência 4
Sobre auditórios, lounges e navios
(por Paula Alzugaray)
O auditório Porão das Artes está repleto. 286 lugares ocupados e mais 40 cadeiras extras. Os olhares se dirigem ao palco, onde estão instalados a artista Ana Maria Tavares, o co-curador da 27ª Bienal de São Paulo, Adriano Pedrosa, e a arquiteta Beatriz Colomina. No fundo do palco, há uma tela, onde é projetada a imagem da video-instalação Enigmas de uma Noite com Midnight Daydreams, de Ana Maria Tavares. Na video-instalação, uma sala repleta de cadeiras reclináveis e, ao fundo, a projeção de um vídeo em dois canais, produzido com imagens found footage captadas dentro de um navio navegando em alto mar, por um capitão da marinha mercante no período entre-guerras.
Confortavelmente instalado nas poltronas do auditório da Bienal, o participante do seminário “Arquitetura” é levado a prolongar o olhar por essa sucessão de layers. Mas não lhe é facilitado o pouso naquele horizonte ideal, projetado na tela dentro da tela, pois este se move de acordo com o balanço de um navio que não existe mais, mas esteve em movimento há mais de setenta anos.
Embalado pelas palavras de Ana Maria Tavares, que começa a ler sua palestra, e cuja voz confunde-se com as vozes da instalação que ocupa virtualmente o palco do auditório, o público pode observar que a artista não discorre sobre uma questão hipotética. Ela irrompe sobre a condição de espectador que nos inclui a todos que nesse momento escutamos, na sala de conferências. Forma-se, portanto, uma situação especular entre tela e auditório. E não tardará muito para que o público observe que o espelho, o pêndulo e as esteiras rolantes são elementos condutores de conceitos, na poética da artista mineira radicada em São Paulo.
Convidada a falar da relação entre arte e arquitetura em seu trabalho, Ana Maria Tavares constrói sua palestra a partir do espelhamento entre palavra e imagem. Sua fala é seguida pelas imagens em movimento do dvd projetado sobre o palco e tudo está calculado para que o público seja levado a compreender a dinâmica que se estabelece entre corpo, arte e arquitetura em sua obra. Trata-se de uma apresentação audiovisual, em que a imagem acopla-se à fala, como uma prótese. O efeito pretendido é o mesmo das instalações. Como veremos, os projetos de Ana Tavares falam sobre lugares em que as relações não se completam.
O espelhamento entre tela e platéia faz pensar: em que medida se estabece no auditório a mesma experiência abissal proposta em instalações como Midnight Daydreams?
Fotos da instalação Enigmas de uma Noite com Midnight Daydreams da artista Ana Maria Tavares no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo - SP. Agosto de 2004. foto: © João Musa, 2004
Pêndulo
Midnight Daydreams (2004), segundo a artista, “almeja a experiência que conduz o sujeito a um esquecimento e a um abandono do próprio corpo físico, à sua quase dissolução em um estado ambíguo de anestesia-sinestesia”. Logo no início da palestra ela explica que suas atividades mais recentes estão orientadas por uma noção de “arquitetura pendular” , que refletem os estados transitórios da vida contemporânea. O elemento pendular a que Ana se refere é expresso não apenas na sensação de instabilidade produzida pela imagem marítima de um horizonte em movimento, mas na construção do espaço da instalação em si mesmo – uma atmosfera ao mesmo tempo metafísica e futurista, que segundo a artista, “ora pende para o passado, ora para o futuro”. Quando pende para o passado, essa “arquitetura pendular” vai ao encontro de um conceito mais antigo, estabelecido pela artista há dez anos: o de “corpo anestésico”, que pode ser entendido como o conjunto de acontecimentos físicos produzido dentro dos ambientes de lounges e salas de espera de estações e aeroportos. Liquidez, instabilidade e náusea: estados culminantes de experiências geradas em Porto Pampulha, de 1997, ou Relax’ o’ visions, de 1998. À medida que a apresentação avança, observamos a relação de continuidade, deslocamento e prolongamento entre um projeto e outro.
Esteiras rolantes
Midelburg Aiport Lounge (2001) é um passeio em 3D por corredores, esteiras e catracas, projetado em continuidade à uma instalação constituída de corredores, esteiras e catracas no espaço real de um centro de arte, em Midelburg, na Holanda. O que Ana Maria faz é desarticular os acontecimentos reais a que somos submetidos todos os dias em espaços do mundo – a expectativa frustrada, a ansiedade, a ilusão - e utilizá-los como os tijolos de uma construção fictícia. Mildelburg Airport Lounge é uma dessas construções: um lounge de aeroporto deslocado para dentro de um centro de arte. Mas esses corredores e esteiras rolantes estão também deslocados de suas funções, transformados em “aparelhos para o campo do corpo”. Na série Exit, eles têm “o intuito de proporcionar a crítica a partir da experiência de risco”. A introducão do risco impõe aqui o contra-ponto para o estado de entorpecimento físico e mental apontado na instalação Visones Sedantes I e II, montada em La Havana e em São Paulo (2000-2002). Com os conceitos e os objetos colocados na esteira rolante e movimentados de obra e obra, Ana Tavares instaura em seu processo o que chama de “site-specific deslocado”.
Espelho
O espelho não é só a relação que se estabelece entre palco e platéia; ou entre auditório, lounge de aeroporto e saguão de navio. O espelho é o material - e o efeito - que por muito tempo predominou nas construções de Ana Maria Tavares (vide Parede Niemeyer, 1999-2001). A “experiência do espelhamento” foi um dos tópicos da palestra, dedicado à atualização do mito de Narciso para o tempo do “sentir prenunciado” e da experiência mediada.
A atualização da função especular na sociedade contemporânea foi depois retomada por Lisette Lagnado, curadora geral da 27ª Bienal de São Paulo, no debate que procedeu a palestra. A função “vigilante” do espelho está presente de uma forma crítica na obra de Ana Tavares desde 1991 - ou seja, muito antes da eclosão dos sistemas de vigília e segurança máxima instaurados pós-11 de Setembro. A questão colocada é: como opera hoje criticamente um trabalho sustentado sobre a questão da especularidade?
A resposta de Ana Tavares apontou para o que já estava indicado em sua palestra: os espelhos que vigiavam os espaços assépticos em Visones Sedantes vêm sendo aos poucos substituídos por sensores, que são vigias bem mais eficientes e completos. O sensor é o dispositivo, por exemplo, de Parede Niemeyer – Cityscape (2001), que emite sons a partir da proximidade do visitante.
Novos dispositivos, novos conceitos. Essas “crying walls”, que não apenas assistem, mas “percebem” a presença humana, anunciam uma atividade artística que pensa o corpo e a subjetividade a partir das tecnologias digitais. Dessa forma, a palestra de Ana Maria Tavares vem anunciar um conceito recém-adquirido, ainda em formação e apenas incipiente em sua obra: a idéia de uma natureza em estado de morte, transformação e reconstrução.