Seminário Arquitetura - Conferência 4

01/04/2006 Relato da Conferência: “Suspensão, mobilidade, deslocamentos, rotações: arte e arquitetura feitas natureza morta”, de Ana Maria Tavares. Relato por Paula Alzugaray.

 

Sobre auditórios, lounges e navios

 

(por Paula Alzugaray)

O auditório Porão das Artes está repleto. 286 lugares ocupados e mais 40 cadeiras extras. Os olhares se dirigem ao palco, onde estão instalados a artista Ana Maria Tavares, o co-curador da 27ª Bienal de São Paulo, Adriano Pedrosa, e a arquiteta Beatriz Colomina. No fundo do palco, há uma tela, onde é projetada a imagem da video-instalação Enigmas de uma Noite com Midnight Daydreams, de Ana Maria Tavares. Na video-instalação, uma sala repleta de cadeiras reclináveis e, ao fundo, a projeção de um vídeo em dois canais, produzido com imagens found footage captadas dentro de um navio navegando em alto mar, por um capitão da marinha mercante no período entre-guerras.

Confortavelmente instalado nas poltronas do auditório da Bienal, o participante do seminário “Arquitetura” é levado a prolongar o olhar por essa sucessão de layers. Mas não lhe é facilitado o pouso naquele horizonte ideal, projetado na tela dentro da tela, pois este se move de acordo com o balanço de um navio que não existe mais, mas esteve em movimento há mais de setenta anos.

Embalado pelas palavras de Ana Maria Tavares, que começa a ler sua palestra, e cuja voz confunde-se com as vozes da instalação que ocupa virtualmente o palco do auditório, o público pode observar que a artista não discorre sobre uma questão hipotética. Ela irrompe sobre a condição de espectador que nos inclui a todos que nesse momento escutamos, na sala de conferências. Forma-se, portanto, uma situação especular entre tela e auditório. E não tardará muito para que o público observe que o espelho, o pêndulo e as esteiras rolantes são elementos condutores de conceitos, na poética da artista mineira radicada em São Paulo.

Convidada a falar da relação entre arte e arquitetura em seu trabalho, Ana Maria Tavares constrói sua palestra a partir do espelhamento entre palavra e imagem. Sua fala é seguida pelas imagens em movimento do dvd projetado sobre o palco e tudo está calculado para que o público seja levado a compreender a dinâmica que se estabelece entre corpo, arte e arquitetura em sua obra. Trata-se de uma apresentação audiovisual, em que a imagem acopla-se à fala, como uma prótese. O efeito pretendido é o mesmo das instalações. Como veremos, os projetos de Ana Tavares falam sobre lugares em que as relações não se completam.

O espelhamento entre tela e platéia faz pensar: em que medida se estabece no auditório a mesma experiência abissal proposta em instalações como Midnight Daydreams?

 

Enigmas de uma Noite com Midnight Daydreams

 

 

 

Enigmas de uma Noite com Midnight Daydreams

 

 

Fotos da instalação Enigmas de uma Noite com Midnight Daydreams da artista Ana Maria Tavares no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo - SP. Agosto de 2004. foto: © João Musa, 2004


Pêndulo

Midnight Daydreams (2004), segundo a artista, “almeja a experiência que conduz o sujeito a um esquecimento e a um abandono do próprio corpo físico, à sua quase dissolução em um estado ambíguo de anestesia-sinestesia”. Logo no início da palestra ela explica que suas atividades mais recentes estão orientadas por uma noção de “arquitetura pendular” , que refletem os estados transitórios da vida contemporânea. O elemento pendular a que Ana se refere é expresso não apenas na sensação de instabilidade produzida pela imagem marítima de um horizonte em movimento, mas na construção do espaço da instalação em si mesmo – uma atmosfera ao mesmo tempo metafísica e futurista, que segundo a artista, “ora pende para o passado, ora para o futuro”. Quando pende para o passado, essa “arquitetura pendular” vai ao encontro de um conceito mais antigo, estabelecido pela artista há dez anos: o de “corpo anestésico”, que pode ser entendido como o conjunto de acontecimentos físicos produzido dentro dos ambientes de lounges e salas de espera de estações e aeroportos. Liquidez, instabilidade e náusea: estados culminantes de experiências geradas em Porto Pampulha, de 1997, ou Relax’ o’ visions, de 1998. À medida que a apresentação avança, observamos a relação de continuidade, deslocamento e prolongamento entre um projeto e outro.

 

Esteiras rolantes

Midelburg Aiport Lounge (2001) é um passeio em 3D por corredores, esteiras e catracas, projetado em continuidade à uma instalação constituída de corredores, esteiras e catracas no espaço real de um centro de arte, em Midelburg, na Holanda. O que Ana Maria faz é desarticular os acontecimentos reais a que somos submetidos todos os dias em espaços do mundo – a expectativa frustrada, a ansiedade, a ilusão - e utilizá-los como os tijolos de uma construção fictícia. Mildelburg Airport Lounge é uma dessas construções: um lounge de aeroporto deslocado para dentro de um centro de arte. Mas esses corredores e esteiras rolantes estão também deslocados de suas funções, transformados em “aparelhos para o campo do corpo”. Na série Exit, eles têm “o intuito de proporcionar a crítica a partir da experiência de risco”. A introducão do risco impõe aqui o contra-ponto para o estado de entorpecimento físico e mental apontado na instalação Visones Sedantes I e II, montada em La Havana e em São Paulo (2000-2002). Com os conceitos e os objetos colocados na esteira rolante e movimentados de obra e obra, Ana Tavares instaura em seu processo o que chama de “site-specific deslocado”.

 

Espelho

O espelho não é só a relação que se estabelece entre palco e platéia; ou entre auditório, lounge de aeroporto e saguão de navio. O espelho é o material - e o efeito - que por muito tempo predominou nas construções de Ana Maria Tavares (vide Parede Niemeyer, 1999-2001). A “experiência do espelhamento” foi um dos tópicos da palestra, dedicado à atualização do mito de Narciso para o tempo do “sentir prenunciado” e da experiência mediada.

A atualização da função especular na sociedade contemporânea foi depois retomada por Lisette Lagnado, curadora geral da 27ª Bienal de São Paulo, no debate que procedeu a palestra. A função “vigilante” do espelho está presente de uma forma crítica na obra de Ana Tavares desde 1991 - ou seja, muito antes da eclosão dos sistemas de vigília e segurança máxima instaurados pós-11 de Setembro. A questão colocada é: como opera hoje criticamente um trabalho sustentado sobre a questão da especularidade?

A resposta de Ana Tavares apontou para o que já estava indicado em sua palestra: os espelhos que vigiavam os espaços assépticos em Visones Sedantes vêm sendo aos poucos substituídos por sensores, que são vigias bem mais eficientes e completos. O sensor é o dispositivo, por exemplo, de Parede Niemeyer – Cityscape (2001), que emite sons a partir da proximidade do visitante.

Novos dispositivos, novos conceitos. Essas “crying walls”, que não apenas assistem, mas “percebem” a presença humana, anunciam uma atividade artística que pensa o corpo e a subjetividade a partir das tecnologias digitais. Dessa forma, a palestra de Ana Maria Tavares vem anunciar um conceito recém-adquirido, ainda em formação e apenas incipiente em sua obra: a idéia de uma natureza em estado de morte, transformação e reconstrução.

 

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