Seminário Arquitetura - Conferência 3
Mútua exposição: a estratégia do confronto entre eu e mim.
por David Sperling
"É possível imaginar uma imagem refletida desta terrível arquitetura, uma força tão intensa e devastadora, mas usada ao invés no serviço de intenções positivas. (...) Do exterior esta arquitetura é uma seqüência de monumentos serenos; a vida no interior produz um estado contínuo de histeria ornamental e delírio decorativo, uma overdose de símbolos." Rem Koolhaas em Exodus or The Voluntary Prisoners of Architecture (1972)
O "Como viver junto" – tema da 27o Bienal de Arte de São Paulo – deveria passar inegavelmente pela compreensão do território cada vez mais movediço da vivência contemporânea. E, sendo assim, deveria perscrutar os limites da reflexão crítica e da ação construtiva sobre o espaço urbano: Arquitetura. Com este nome, foi nesta direção que caminhou o segundo seminário que antecede a Bienal. Artistas-e-arquitetos estiveram pensando mutuamente arte-e-arquitetura como possibilidades de ação para o viver junto. Em um sentido mais específico do viver junto, a afirmação "Arte pensando Arquitetura", acompanhada seguidas vezes da interrogação "(há) Arquitetura pensando Arte?", fez e deve fazer pensar. Arte-e-arquitetura ou arte e arquitetura?
Aqui, pois, se encaixa a palestra "Dupla exposição: arquitetura por meio da arte", de Beatriz Colomina, arquiteta, professora de arquitetura e diretora do Programa de Mídia e Modernidade da Universidade de Princeton. De pronto, Colomina reconhece a crescente e intrincada relação entre arte e arquitetura no contexto contemporâneo, mas julga que há pouca reflexão crítica sobre o que se realiza e que o movimento é mais perceptível no sentido da arte para a arquitetura do que o inverso. Contribuindo para a reflexão, sua apresentação focou-se na obra do artista norte-americano Dan Graham e naquilo que faz pensar ao ativar os limites arquitetônicos e sociais comumente aceitos dos territórios do público e do privado, do dentro e do fora, do real e do virtual.
A "arquitetura por meio da arte" do título da palestra vai além da constatação de que Graham utiliza dispositivos usualmente associados ao universo da arquitetura como o projeto por maquetes, o foco em elementos do ambiente construído como a janela ou mesmo os objetos críticos escolhidos como as casas ou os bairros de subúrbios americanos. As obras de Graham apenas usam estes pontos de partida para ir muito além: em sua prática a arquitetura deixa de ser o espaço onde está a obra para ser a manipulação estratégica de condições espaciais específicas no sentido de revelar as relações que compõem o campo social e político.
Em Alteration to a Suburban House (1978) Colomina vê a culminação de uma reflexão contínua de Graham sobre a casa americana do pós-guerra, não como o espaço do privado por excelência, mas como palco da representação pública de uma domesticidade convencional, o sonho da classe média americana; uma imagem da "normalidade socialmente aceita", nas palavras de Graham. Alteration consistiu na criação de um dispositivo óptico-espacial de evidenciação por meio da substituição de uma fachada inteira de uma casa de subúrbio por vidro transparente e a divisão do espaço interno em dois com espelho. O espaço interno é restaurado à sua completude pelo espelhamento que incorpora em continuidade o exterior.
Dan Graham, Alteration to a Suburban House, 1978
Para Colomina, aqui se desencadeia a "dupla exposição". Os passantes vêem-se dentro da casa, movendo-se em uma sala de estar virtual atrás da qual posiciona-se a paisagem do subúrbio, enquanto os habitantes da casa vêem-se fora, na rua refletida pelo espelho. Diz Colomina que quem está fora vê a si mesmo "em um interior, mas igualmente em um exterior que foi feito parte do interior"; há ainda outro espelhamento: quem está dentro vê a si mesmo em um exterior, mas igualmente em um interior que foi feito parte do exterior. Em Alteration, "passantes e habitantes compartilham do mesmo espaço intrincado no espelho", diz Colomina.
O estar fora em Alteration é o grau máximo do estar dentro, implicado: "As pessoas 'que estão fora' são duplamente expostas. Não somente expostas à visão dos que estão dentro, mas vendo-se a si mesmos expostos a outros, sendo vistos por outros". A palavra "exposure" do título da palestra condensa aqui seus dois sentidos: exposição e vulnerabilidade. Algo que, com outras nuances, aparece na obra Exit I com Parede Niemeyer (2000) de Ana Maria Tavares, apresentada pela artista na palestra "Suspensão, mobilidade, deslocamentos, rotações: arte e arquitetura feitas natureza morta" proferida em seguida. "Ver-se vendo" e "ver-se sendo visto" em um estado de suspensão do mundo, diz Ana Tavares.
"Eu olho dentro e me vejo olhando para fora", diz Colomina sobre Alteration. O espelhamento físico e o metafórico confrontam o Eu como sujeito e o Mim como objeto. A reflexividade das ações torna-se estratégia de evidenciação de um estado de coisas entre o que eu faço e o que mim recebe. Eu como sujeito sou colocado a pensar sobre minha posição em um estado de coisas pelo qual, fora da obra, me julgava tranqüilamente não atingido.
Do microcosmo da casa às relações urbanas, nada escapa às interfaces comunicativas na obra de Graham: da micropolítica das representações cotidianas à macropolítica da banalização das experiências que promove a seriação urbana. Na cidade americana do pós-guerra, objeto de Graham, em que a televisão ganha centralidade e já não há privacidade, a experiência do flâneur de Benjamin é duplamente revertida: o pedestre dos subúrbios é o espetáculo para uma audiência doméstica protegida atrás das janelas ao mesmo tempo em que a dimensão pública da experiência é substituída pelo consumo da domesticidade no espaço público.
O artifício da transparência e do espelhamento – ou da transparência como espelhamento –explorado em Alteration, despindo a obra de aparatos de transmissão e visualização de imagens como câmeras e monitores de TV utilizados pelo artista em obras anteriores (Picture Window, 1974 e Video Projection Outside Home, 1978), compreende para Colomina a maturação do pensamento de Graham, culminando no entendimento da própria arquitetura como mídia, como interface comunicativa. E é aqui que Colomina apresenta uma leitura instigante e nada comum da "arquitetura por meio da arte".
Por meio da obra de Graham, ela toma os dispositivos de continuidade espacial utilizados pela arquitetura moderna, a transparência e a reflexividade, como protótipos da nossa era midiática, em que todos participam da platéia e do palco. Se a janela em extensão foi pensada na alta arquitetura moderna como abertura à paisagem, nas casas de incorporação dos subúrbios consumou-se como a possibilidade de olhar tudo o que acontece no exterior e por ele ser visto.
Colomina centra-se na arquitetura de Mies van der Rohe. Sabe-se que foi na obra de Mies, a personificação do modernismo americano, que os efeitos de transparência e reflexividade atingiram seu mais alto grau, compondo o paradigma da arquitetura como estrutura espacial contínua. Com o Pavilhão de Barcelona (1929) a arquitetura torna-se a exibição de si mesma, frisa Colomina, o que na esfera “privada” é sintetizada na casa Farnsworth (1949-52) – contemporânea de outra obra emblemática, a Glass House (1949), de Philip Johnson.
Mies van der Rohe, Farnsworth house, 1949-52
Colomina lembra que tudo na América do pós-guerra, uma nação composta majoritariamente por famílias nucleares, girava em torno da casa e do espaço doméstico. E a mídia se configurava como modo privilegiado de conexão do núcleo familiar com o mundo externo. Por outro lado, “a própria casa operava como um set de televisão, expondo a representação da vida familiar.” Na Alteration de Graham, a “tela” permanece frontal ao passante, em Mies e em Johnson a arquitetura abre os quatros lados para o externo. “Na era da TV não há privacidade.”
Para ela, é também com Mies que a experiência da "dupla exposição" horizontal dos subúrbios é reorientada para a vertical nos edifícios pele e estrutura, como nos apartamentos de Lake Shore Drive (1948-51). Não por acaso também Ana Tavares, em sua obra Exit I com Parede Niemeyer (2001), faz referência ao ícone da arquitetura moderna brasileira em uma parede espelhada, aparelho-estratégia para "dupla exposição". Arquitetura widescreen, máxima exposição.
A leitura crítica que realiza Colomina da alta arquitetura moderna americana como paralela às mídias de massa, tema de seu livro Privacy and Publicity: Modern Architecture as Mass Media1, gera tensão positiva ao aproximar manifestações historicamente tomadas como contrárias. Diz Colomina: "Se a arquitetura do princípio do século XX é inseparável de jornais ilustrados, fotografia e cinema, a arquitetura do pós-guerra é a arquitetura do vídeo e da televisão". Aliás, ressalta ela, foi por meio dos jornais, das revistas ilustradas e das TV's que a alta arquitetura pode ser assimilada nos subúrbios americanos – bem como, sabemos, o Style pôde se tornar International.
A palestra de Colomina toma a arte para tencionar o deslocamento de visões correntes sobre a arquitetura. Talvez uma das palavras mais referidas no seminário, salvo engano, tenha sido esta: "estratégia". Identificação de movimentações urbanas emergentes, mapeamento de novas territorialidades, notação de dinâmicas imprevistas de uso do espaço, comunicação de novas práticas sociais e evidenciação dos componentes da dinâmica contemporânea – perversa, desigual... - estão dentre as ações estratégicas que compuseram as falas do seminário. E tais ações – identificação, mapeamento, notação, comunicação, evidenciação – são um modo privilegiado de intervenção da arte contemporânea comprometida com o "como viver junto"2.
Talvez aqui resida um vazio que incomoda e que precisa ser transposto quando se trata da arquitetura. Excluindo-se alguns nomes de reconhecimento internacional mencionados no seminário – Rem Koolhaas e Bernard Tschumi, aos quais poderíamos agregar alguns outros – parece haver um hiato reflexivo e propositivo da arquitetura para o contexto movediço contemporâneo. Projeto, forma e estrutura, como símbolos da capacidade de previsão panóptica dos problemas urbanos a serem resolvidos por meio da estruturação de uma forma, não estão dando conta do recado.
O seminário vem corroborar que é necessário passar das formas para as estratégias. E se as ações de identificação, mapeamento, notação, comunicação e evidenciação constituem para a arquitetura apenas parte do processo e devem ser seguidas necessariamente pela intervenção no espaço, que tais estratégias sejam investigadas no sentido de furar a parede da positividade do espaço-espetáculo que rege a arquitetura, sempre acompanhado do seu duplo, o espaço-exclusão das cidades contemporâneas3. Tschumi já dizia em Architecture and Transgression (1976), que a arquitetura só sobreviverá quando negar a si mesma, quando transgredir a forma que a sociedade espera dela. Neste sentido, como possível saída, o projeto é pensado por ele como estratégia de confronto entre espaços e programas no sentido da indução de acontecimentos.
No Brasil, o "como viver junto", o encontro arte-e-arquitetura, passará necessariamente pela superação do interdito que ainda sofre a arquitetura brasileira. Beatriz Colomina, por sua parte, aponta nesse sentido ao apresentar pela arte uma reflexão que desestabiliza o solo compactado no qual a arquitetura historicamente se assenta. O "como viver junto", nas cidades, com certeza se beneficiará desse confronto. O da arquitetura consigo mesma, despida de si.
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1 Colomina, B. (1994), Privacy and Publicity: Modern Architecture as Mass Media. Cambridge, MIT Press.
2 Ações similares, chamadas pelo arquiteto Bernard Tschumi de "counterdesigns", podem ser encontradas na arquitetura, entre os anos 1960-70, com o objetivo de combater a lógica do sistema por meio de sua explicitação: No-Stop City, de 1969, do coletivo italiano Archizoom Associati, Continuous Monument, também de 1969, de Superstudio, outro coletivo italiano e Exodus or The Voluntary Prisoners of Architecture, de 1972, projeto de conclusão de curso de Rem Koolhaas na Architectural Association, em Londres.
3 Em 1971, Bernard Tschumi organiza, com seus alunos da Architectural Association, "ações exemplares", como a ocupação da Kentish Town Railroad Station em Londres. As ações instantâneas no espaço público, as quais chamou de Five-minutes attacks, visavam fomentar a reflexão sobre o uso livre do espaço urbano por meio da criação de estruturas rápidas para serviços comunitários. Pode-se considerar que tais ações anteciparam em muito uma vertente da arte contemporânea como intervenção crítica no espaço público.