Seminário Arquitetura - Conferência 2

31/01/2006 Relato da Conferência: “Walking through Walls: Soldiers as Architects in the Israeli/Palestinian Conflict” de Eyal Weizman. Relato de Beatriz Carneiro.

SMART DESTRUCTION (Destruição inteligente)

(por Beatriz Scigliano Carneiro)


Ao iniciar a palestra, Eyal afirmou que seu trabalho como arquiteto e como pesquisador sempre se ocupou das violações dos direitos humanos pela arquitetura, tanto pela política da arquitetura, quanto pela arquitetura da política. Assinalou também que o tema, intitulado Destruição Inteligente [ou Destruição Esperta (smart)], poderia parecer estranho neste seminário sobre arquitetura e arte, pois partiu da perspectiva de um segmento dos militares israelenses acerca de maneiras de se empreender batalhas em núcleos urbanos. O foco da palestra, porém, procurou evidenciar a apropriação, por parte de militares e estrategistas de guerra israelenses, das concepções de artistas como Guy Debord e Gordon Mata-Clark, e de algumas teorias, entre elas da chamada teoria crítica, principalmente dos conceitos de filósofos como Deleuze e Guattari, além de teorias e práticas recentes e inovadoras da arquitetura, como as do arquiteto Bernard Tschumi. Estas concepções são usadas para explicar e dar fundamento a surpreendentes táticas militares no ambiente urbano.

No telão: a imagem de uma foto aérea de um local na Cisjordânia cortado por um muro sinuoso. De um lado um bairro com traçado planejado, um assentamento de israelenses, e do outro um aglomerado de construções desordenadas, um núcleo urbano palestino. A guerra atual se concentra nas cidades e mantém intricada relação com a arquitetura. Violência bélica e cidades se retro-alimentam, as batalhas influem nas transformações do ambiente urbano e este ambiente condiciona as ações de guerra. A muralha sempre consistiu em um elemento estruturante e estrutural do espaço. A parede sempre foi pensada como algo intransponível, opaca, foi usada para delimitar territórios e estabelecer limites de convivência. Hoje, nas práticas de guerra urbana, descritas a seguir, estas barreiras físicas são fluidas, permeáveis, não apenas em teoria ou em metáforas poéticas, mas em práticas específicas. Isso tem desestabilizado as concepções correntes de arquitetura.

No telão: vídeo de uma entrevista feita por Eyal em 2004, com o General Aviv Kokhavi que, em 2002, comandou as manobras militares em Nablus, e foi responsável pela evacuação dos assentamentos israelenses na Faixa de Gaza em 2005. Como muitos oficiais do exército, ele se afastou por um tempo para freqüentar a universidade; sua intenção inicial era se tornar arquiteto, mas formou-se em filosofia.

[Em abril de 2002, houve uma operação empreendida pelo Estado de Israel denominada Escudo Protetor (Defense Shield) que se estendeu a várias cidades da Cisjordânia ― a Faixa de Gaza não foi incluída ―, no sentido de se “eliminar a infra-estrutura do terrorismo”. A atenção da imprensa na época recaiu nas cidades de Jenin e Tulkarem, e em seus campos de refugiados, e obviamente em Ramallah onde a sede da Autoridade Palestina foi cercada, semi-destruída, e Yasser Arafat ali mantido isolado. Nablus, uma das maiores cidades da região, com aproximadamente 300 mil habitantes, foi também uma das mais atingidas. As fotos e vídeos apresentados na mídia mostravam tanques nas ruas e casas dos palestinos destruídas por tratores (bulldozers)].

Segundo o General Aviv Kokhavi, o Escudo Protetor foi a oportunidade para a aplicação de um novo método de se trabalhar a cidade em uma guerra. Na entrevista, ele esclarece os fundamentos desta nova tática. Afirma que o espaço que vemos não é nada mais do que a interpretação habitualmente dada a ele... o que significaria uma rua para um militar em combate? Um lugar proibido, pois provavelmente o soldado seria um alvo fácil para um franco atirador. Abrir uma porta poderia acionar uma armadilha mortal. “Isso é assim pois o inimigo interpreta o espaço de um modo tradicional, clássico e eu não quero obedecer a esta interpretação e cair em suas armadilhas (...) Quero surpreendê-lo! Esta é a essência da guerra: eu preciso vencer! Digo para minhas tropas: ‘Se até agora vocês estavam habituados a se movimentar ao longo de ruas, estradas e calçadas, esqueçam isso!’ De agora em diante nós todos andaremos através das paredes!”

No telão: imagem de uma foto aérea da cidade de Nablus com o desenho do diagrama dos caminhos dos militares através das paredes e casas. As ações militares inventaram uma ‘geometria inversa’, reorganizaram a ‘sintaxe’ urbana criando túneis de deslocamento de tropas através das paredes, telhados, sem se levar em conta ruas, escadarias, residências. Pensar o espaço de modo diferente do habitual acarretou uma outra prática de combate. O exército israelense criou a tática de explodir tetos e paredes para se deslocar com tropas e armas pela cidade. Os soldados agora atravessam espaços privados criando seus túneis, como se fossem minhocas e aparecem onde não são esperados. Não são vistos, exceto pelos residentes dos locais invadidos que na maioria das vezes são feitos reféns para não revelarem esta movimentação.

Nesta guerra urbana não há intenção de ocupar territórios. Pretende-se atingir metas bem precisas, e recuar. Esta foi a maneira encontrada para se contrapor à tática da resistência palestina que estava fortificando as casas para transformá-las em refúgios. O alvo das operações eram pessoas com nome e algum endereço a ser alcançado: estavam incluídas lideranças dos palestinos, possíveis homens-bomba, ou autores de atentados, geralmente marcados para serem mortos, mas também suspeitos de ameaçarem o Estado de Israel foram presos nestas ações. Desconstruir a cidade tornou-se pré-condição para matar o inimigo ou capturar suspeitos.

[A operação Escudo de Defesa não visava ocupar as cidades palestinas e incorporá-las ao território de Israel. O objetivo era invadir temporariamente alguns territórios onde residiam os palestinos para “remover as fundações do terror”, usando uma expressão de Ariel Sharon, Primeiro Ministro na ocasião. Esta ofensiva justificou-se como resposta a vários ataques de suicidas que se explodiram em locais de aglomeração de civis em Israel, como restaurantes, mercados, ônibus escolares. Estes homens-bomba são ligados a grupos religiosos para-militares, como o Hamas, que hoje aparece como partido político e ocupa o governo palestino após um processo eleitoral acompanhado de perto por entidades democráticas internacionais e por isso mesmo considerado sem fraudes. No entanto, na época do Escudo Protetor, houve também mortíferos ataques a líderes palestinos laicos, representantes do grupo Al Fatah, cujo líder Arafat era a Autoridade Palestina, sob acusação de conivência com o terrorismo]

No telão: imagens de fotos de soldados entrando pelas paredes explodidas. Os soldados israelenses chegaram a afirmar que este tipo de tática seria uma alternativa mais humana de guerra, pois não se faziam necessários bombardeios de extensões amplas das cidades para eliminar os elementos perigosos. Esta afirmação contrasta com o depoimento verbal de uma mulher palestina, Aisha, citado por Eyal. Ela relatou a experiência de ter sua sala subitamente invadida por tropas de soldados pintados. “Imagine estar sentada na sua sala de estar e de repente a parede desaparecer com um estrondo ensurdecedor. A sala se enche de poeira e escombros e através do buraco da parede vão surgindo um soldado depois do outro gritando, dando ordens. Não se tem a mínima idéia se estes soldados vieram nos prender, se vieram para destruir a casa ou se nossa casa apenas está no caminho para algum outro alvo. Imagine o terror de uma criança de cinco anos quando seis, sete, doze soldados, as faces pintadas de preto, com armas apontadas para todos lados, antenas saindo das mochilas, fazendo-os parecer besouros alienígenas, explodem seu caminho através das paredes.”

Um artista citado pelo militares é Gordon Mata-Clark. Com sua obra queria subverter o espaço burguês, os limites impostos pelas paredes, daí os rombos e recortes em edifícios e casas. Foi um crítico da experiência do espaço condicionada pelo hábito e com suas intervenções visava evidenciar a arbitrariedade destes limites. Entre os militares, porém, estas mesmas idéias de subverter limites físicos não são críticas liberadoras, mas instrumentos de poder para manter o poderio militar e o controle permanente sobre os palestinos.

No telão: imagens de fotos aéreas de um campo de refugiados em épocas diversas. Eyal dá informações históricas para situar a importância da questão das cidades na estratégia militar. Em 1948, com a formação do Estado de Israel, parte da população palestina foi deslocada para os campos de refugiados, próximos às cidades não incluídas no traçado do novo Estado. Eram campos militares dos ingleses que na época estavam deixando o país e foram usados para abrigar os palestinos obrigados a sair de suas terras. O campo não podia se expandir e com o aumento demográfico nestes anos todos, criou-se uma trama urbana que aparece hoje como um bloco sólido e impenetrável. Do ponto de vista militar isto é um problema grave. Neste sentido entende-se a preocupação atual dos departamentos militares de Israel com a questão urbana. Grandes verbas tem sido desde então destinadas para estudos, verbas maiores que os setores acadêmicos recebem.

[Na época do Escudo Protetor, a idéia de se construir um muro sinuoso, separando certas áreas palestinas de assentamentos e vias de circulação israelenses, começou a ganhar força. A questão territorial da Palestina é muito intricada e não cabe ser citada aqui pois exigiria muito mais do que um comentário de rodapé. Eyal, por sua vez, apesar de seu grande conhecimento do tema e da região, não tratou destas intervenções físicas no território palestino que estão ainda em construção, assim como não tratou das formas de resistência dos palestinos. Optou por colocar em discussão questões procedentes de detalhes táticos de uma guerra em que entra a utilização pelo poder militar de discursos e conceitos de filósofos, artistas e arquitetos, que são críticos do sistema ― o que não foi pouco]

No telão: um vídeo de 2004 com depoimento de Shimon Naveh, militar reformado, diretor do Instituto de Pesquisa de Teoria Operacional, fundado em 1996. Teoria operacional seria um termo de guerra que mescla estratégia e tática. Neste instituto são treinados arquitetos e militares ― o Gen. Aviv foi um de seus alunos ― que fornecem novos conceitos para a lógica do espaço, da cidade e da guerra. “Nós somos como a Ordem Jesuíta, procuramos ensinar e treinar os soldados para pensar...”

[Shimon Naveh é doutor em história militar pelo King’s College, Universidade de Londres da Inglaterra e autor de: In the pursuit of Military Excellence: The Evolution of Operacional Theory (Em busca da excelência militar: a evolução da teoria operacional) Londres: Frank Cass, 1997]

Eyal fez questão de apontar a semelhança física entre Foucault e o entrevistado. No entanto, apesar da aparência lembrar Foucault, Naveh utiliza-se principalmente dos conceitos de Deleuze e Guattari, outros filósofos da denominada teoria crítica, especialmente os do livro Mil Platôs.“Muitos destes conceitos se tornaram instrumentais para nós (...) permitindo-nos explicar situações contemporâneas de modo que não conseguiríamos. (...) Muito importante é a distinção que apontaram entre o espaço liso e o espaço estriado. (...) usamos a expressão ‘alisar o espaço’ quando nos referimos à operações em um espaço como se ali não existissem fronteiras.(...) Áreas palestinas podem de fato ser consideradas como estriadas no sentido de que são fechadas por cercas, muros, estradas, blocos, fossos etc.” Frente a barreiras, como casas e muros, ruas, se diz alisar com o sentido de atravessá-los como se não existissem. “Em Nablus entendemos a luta urbana enquanto um problema espacial... Passar através das paredes é uma simples solução mecânica que conecta a teoria de Deleuze à prática.”

Um conceito muito discutido é o da não-linearidade. Estrutura não linear é aquela que possui vários sentidos, o que implica o conceito de rede. Os militares são contra a linearidade espacial e temporal, principalmente quando as linhas se tornam hierarquias. Preferem o conceito de redes, pois estas ocupam o mesmo espaço simultaneamente. No século XIX e XX a defesa das cidades era feita por muros, paredes, a queda dos muros implicava a ocupação da área e conquista de território definindo o vencedor. Agora o paradigma da guerra mudou. O alvo é móvel, são pessoas que devem ser eliminadas, ou locais pontuais que devem ser destruídos. Atingidas estas metas, a rede montada para tal se desfaz. Entre os militares também há a idéia de swarm, enxame. A inteligência deriva deste enxame, baseada em velozes sistemas de comunicação entre pontos díspares. Um soldado se comunica com todos os outros sem passar por hierarquias. As grandes narrativas do planejamento militar com linhas hierárquicas e ordens a serem seguidas em seqüência já não se mostram eficientes em locais de intricada malha urbana. Os soldados não sabem previamente qual a ordem que devem seguir, interagem em rede e decidem no momento em função das circunstâncias reais que vão encontrando no caminho. Outro autor citado é o arquiteto e teórico Bernard Tschumi. Há uma disjunção, termo empregado por Tschumi, entre o espaço da ação e o espaço da representação. O pensamento centralizado e a perspectiva única cedem frente a um mundo atravessado por uma multiplicidade de práticas sociais, e de pontos de vista constantemente em mutação. As batalhas na cidade são consideradas conflitos entre interpretações de cidade.

No telão: Imagem do diagrama das linhas dos ataques a Nablus interagindo com as linhas da resistência palestina. A resistência aparece mais ‘territorializada’, enquanto que as linhas da Defesa Israelense mostram entradas rizomáticas nestes setores. Guy Debord e o situacionismo também têm sido citados e usados pelo exército. A intenção das ações situacionistas, como a deriva pelas cidades e a adaptação de edifícios para usos não previstos era desafiar os condicionamentos da cidade capitalista e quebrar distinções entre dentro e fora, entre o público e o privado, recolocando o espaço privado em uma superfície pública sem fronteiras. No entanto aqui, ao serem usadas pelo exército, as intenções de desmontar o racionalismo burguês por ações de subversão do traçado convencional de uma cidade ganham uma dimensão mortífera e muito diversa da crítica situacionista aos hábitos e espaços urbanos convencionais enquanto sintaxe da dominação de classe.

No telão: imagens de uma cidade cenográfica denominada Chicago, montada no deserto para treinar soldados israelenses e exércitos estrangeiros que chegam para lutar no Oriente Médio. Eyal mostra esta Disneylândia militar como um rodapé de sua palestra. É a maior cidade cenográfica da região, desde a filmagem de Ben Hur. Sua arquitetura de parque temático já evidencia as marcas desta geografia imaginária que as batalhas através das paredes vêm trazendo às representações urbanas. Uma foto mostra uma casinha construída já esburacada. A sintaxe da arquitetura deste parque temático já incorpora efeitos de batalhas urbanas reais. Ao lado de pesquisas ligadas a urbanismo, empreende-se a invenção de novas tecnologias militares. A idéia de atravessar paredes, de “des-paredar as paredes” (un-walling the wall, termo de Gordon Matta-Clark), percorre também as pesquisas para estas inovações. Foi desenvolvido um aparelho que ‘enxerga’ a vida por trás dos muros. Consegue-se assim, também ver através das paredes. Na foto apresentada no telão as imagens captadas se assemelham a imagens de ultra-som, mas com cores identificando os seres vivos. O que é sólido se evapora, resta a imagem da vida orgânica que parece flutuar nestas imagens internas do outro lado do muro.

Não é preciso ler Tschumi para invadir Nablus. Mas nesta escola militar, considerada à esquerda do Exército de Israel, a teoria dá um suporte para tais práticas e tem sido usada para combater e mudar hierarquias e conceitos dentro da instituição militar. Além disso, há estímulo ao desenvolvimento de uma tecnologia de ponta e, por meio desta e das táticas de combate, os palestinos são controlados permanentemente. Se vivenciar o espaço é uma questão de interpretação, a batalha é ganha não pela destruição e ocupação da cidade, como nas guerras do século XX, mas se desfazendo a trama urbana de acordo com outras percepções. Passar através de paredes é uma reinterpretação deste espaço, no qual os limites entre o privado e o público, entre civis (privado) e militares (agentes do poder público) se desmancham em ações práticas visando um único objetivo: vencer o inimigo. É a guerra!

Estas ações de combate, quanto mais eficientes e fundamentadas em história ou filosofia, fazem com que se acredite que sempre haverá soluções militares ‘indolores’ e rápidas para questões que poderiam ser negociadas politicamente.

O uso da arte e teorias críticas projeta uma forma de comunicação com o inimigo e com o resto da sociedade israelense. A figura de um soldado filósofo ou de soldado culto, com formação superior em humanidades, é muito valorizada em Israel e, além disso, impõe uma imagem de sofisticação intelectual ao inimigo.

[Tais teorias, utilizadas para justificar e interpretar ações que resultam em morte, mutilações, traumas, destruição material, procedem de críticas demolidoras de hábitos de pensamento e ação. Ao serem usadas com finalidade de dominação e controle mostram que as escolhas éticas residem no efetivamente vivido, no que se pratica e nos efeitos destas ações na convivência]

Durante o breve debate que se seguiu às palestras da noite, Eyal acrescentou algumas outras informações e complementou algumas idéias apresentadas. Lembrou que por ocasião da retirada dos israelenses de assentamentos em território que deveria ser entregue aos palestinos, houve propostas de adaptar as estruturas residenciais que seriam deixadas para funções outras, de caráter público como por exemplo, escolas e hospitais. No entanto, a opção do governo israelense foi a destruição sumária de tudo, deixando escombros inúteis.

A arquitetura palestina e a israelense são similares em muitos aspectos. Há uma imitação recíproca. Em relação às táticas de guerra, a Defesa de Israel aprende e responde aos guerrilheiros palestinos.

As organizações de defesa de direitos humanos devem considerar os detalhes destas táticas apresentadas se quiserem efetivamente resistir a estas políticas mais subterrâneas de violações dos direitos humanos em nome da segurança e da razão de Estado. Em relação à arquitetura, assinalou que esta sempre acompanhou os conflitos humanos. Cria espaços de convívio, mas também protege um do outro, ou um grupo do outro.

[Retornemos então à pergunta: “Como viver junto”?]

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Veja artigo de Guilherme Wisnik sobre essa mesma palestra no caderno Ilustrada da Folha de São Paulo do dia 08 de maio de 2006 "Apropriações Perversas".