Seminário Arquitetura - Conferência 1
Arte como Arquitetura/ Arquitetura como Arte
(por Tatiana Ferraz)
Jessica Morgan, curadora da Tate Modern de Londres, foi uma das convidadas da Fundação Bienal para tomar parte no segundo seminário proposto pela organização da 27ª Bienal Internacional de São Paulo, cujas falas permearam discussões sobre como práticas artísticas recentes vêm procurando interceptar o universo do pensamento arquitetônico e de sua materialidade.
Conduzido por Adriano Pedrosa, um dos cinco curadores do evento, o tema do seminário “Arte e Arquitetura” recupera o que antes se mostrava aos modernos como uma relação otimista entre ambas as práticas – integradas pelos ideais construtivos das vanguardas do início do século XX – e que hoje se apresenta de modo mais problemático e que aponta para as transformações socioculturais desde lá imbricadas no processo histórico. Busca refletir sobre os possíveis cruzamentos entre esses dois modos de se pensar o mundo contemporâneo.
Ao inaugurar o primeiro dia de seminário, Morgan enunciou logo de início sua preocupação em não se limitar a uma simples lista de nomes – a qual conteria, como lhe fora solicitado, artistas participantes do evento. Ao invés disso, propõe uma fala costurada a partir de analogias conduzidas pelo trabalho do artista Martin Kippenberger, de cuja obra organizou uma recente retrospectiva na Tate. Apesar de expressar tais intenções, sua fala acabou reduzida a um “poutpourri” de trabalhos, conduzidos por uma leitura restrita a comparações temáticas surgidas da obra referencial do alemão.
A celebração de Kippenberger serviu de baliza – nas palavras de Morgan, de framework conceitual, para estruturar as análises de quinze artistas selecionados na explanação, os quais de certa forma conteriam ressonâncias dos intercâmbios entre as esferas da arte e da arquitetura presentes na obra daquele. São eles: Manfred Pernice, Sam Durant, Dominique Gonzalez-Foerster, Armando Andrade Tudela, Florian Pumhoesl, Anri Sala, Mauro Restiffe, Isa Genzken, Carlos Garaicoa, John Bock, Elmgreen & Dragsett e Andreas Fraser. Dentre eles, haveriam ainda aqueles que tomaram a obra do alemão como fonte primeira em suas práticas artísticas.
No interior da produção de Kippenberger, foram elencados alguns temas que auxiliariam na visibilidade das intersecções da arte com a disciplina de arquitetura. A saber: 1. a apropriação da arquitetura existente, vinculada ao seu uso representacional ou conceitual para a história e ideologia; 2. a circunscrição da arquitetura como escultura; 3. a utilização da maquete como trabalho de arte; 4. o modernismo tropical; 5. os recentes desenvolvimentos na arquitetura de museus; 6. a crítica institucional.
A escolha do artista também se mostrou fértil para o público na medida em que parte de seus trabalhos foi realizado em viagens ao Brasil. Morgan nos conta que em meados dos anos 80 Kippenberger visitou o país, estadia que durou três meses e foi registrada na obra “The Magical Misery Tour”. Ao longo do tour, principalmente pelo Rio de Janeiro e Bahia, o artista experimentou um misto entre miséria, a “cultura do biquíni” e a boemia com amigos. Contudo, seu maior interesse no país dirigiu-se às manifestações da arquitetura moderna “tropical, para qual os trabalhos respondem à especificidade brasileira.”
O uso representacional da arquitetura
Um dos exemplos categóricos enunciados por Morgan foi o trabalho “Martin Bormann Gas Station”. A estrutura edificada de um posto de gasolina chamara a atenção do artista por sua condição de total abandono, a tal ponto que este decide comprá-la, passando a instalar uma linha telefônica no lugar. A partir da apropriação do recinto, ele produz imagens amplificadas que representam o edifício em grande escala. O artista, assim, denunciava parte da estrutura de concreto em ruínas como uma espécie de escultura “encontrada” na cidade.
Morgan sugere a eleição do posto pelo artista como o estatuto contraditório da arquitetura moderna no país, que oscilaria entre um símbolo do progresso econômico e sua própria ruína (o abandono de sua funcionalidade original). Atraído pela ironia impressa no edifício, Kippenberger adiciona ainda uma pitada de humor ao título do trabalho (ao batizar o antigo equipamento comercial de “Bormann”, em alusão ao nazista possivelmente refugiado na América Latina), que remeteria a uma espécie de “monumento ao refugiado”.
O trabalho foi tomado como exemplo do uso que se faz da arquitetura existente, uma apropriação crítica pela prática artística recente, ao discutir noções como “representação” (por meio da fotografia), degradação do ambiente, abandono histórico e acúmulo de “lixos urbanos”. Para a curadora, a apropriação da arquitetura de modo representacional e/ou conceitual é um gesto freqüente na produção jovem; e serve como linguagem para conjugar idéias que vão da aspiração utópica a modas estilísticas, refletindo tanto a degradação do ambiente contemporâneo como seus modelos históricos.
É nesse contexto que Morgan localiza o trabalho do primeiro artista da explanação, Manfred Pernice: ao lidar com a noção de arquitetura transitória, o artista produziria em resposta às mudanças estruturais e sociológicas da cidade onde vive, Berlim, bem como aos problemas da reunificação alemã. Suas estruturas, ao invés de aludirem exclusivamente a uma herança modernista, sugerem um tipo de paisagem semi-industrial bastante modificada, típica dos subúrbios.
Sam Durant aparece como outro caso da vertente que se utiliza de arquiteturas encontradas por meio de associações históricas e econômicas. Ao tratar de ruínas e mitologias da Los Angeles modernista de meados do século XX, ele traz à tona a revisão desses idealismos: a obra “Case Study Houses” é uma crítica aos protótipos residenciais de arquitetos como Richard Neutra e Charles & Ray Eames (projetos que buscavam uma acessibilidade popular em sua essência). Durant denuncia o quase inexistente idealismo social, e mais ainda, o modo no qual os esquemas formais do modernismo foram cooptados pelo estilo de vida burguês. Os exemplos do design modernista trazidos por ele estão parcialmente destruídos, pichados, encobertos por imagens publicitárias; evidenciam um ponto em comum dentro da Los Angeles, dividida economicamente sob a formalização da arquitetura.
O modernismo tropical
As referências às estruturas arquitetônicas modernistas no Brasil também aparecem em uma série de pinturas produzidas por Kippenberger depois da viajem, referências que o artista funde com outros elementos, como: monumentos turísticos, caixas de papelão, toalha de praia, fibras de coco e areia, todos aparentemente trazidos do país. Os títulos desses trabalhos, “Supplementary Proposal for a Monument to False Economies” e “Supplementary Proposal for the Monument against the Love Triangle” adicionariam, aos olhos de Morgan, um ponto de vista cínico sobre o despertar das utopias sociais de uma geração anterior. Os containers vazios dessas aspirações (os prédios) foram retrabalhados pelo artista como monumentos absurdos às falsas promessas e remetem a toda instância “falida” nas economias das grandes cidades brasileiras.
Morgan identifica diversos artistas que têm investigado os tais vestígios do modernismo tropical. Dentre eles, ela destaca aqueles que se aproximam pelo modo associativo, ao invés de puramente documental, questionando a habilidade de representar um lugar na sua totalidade. A noção de lugar, sua intangibilidade e resistência à representação, é central no trabalho de Dominique Gonzalez-Foerster. Diversas instalações apontam essa impossibilidade de expressão por meio de grandes espaços deixados propositalmente vazios. Em “Brasília Hall” (2000), Gonzalez-Foerster cobriu uma vasta área do Moderna Museet de Estocolmo com um carpete verde e ocupou o recinto com uma escada (possivelmente uma cópia da arquitetura da capital), de modo a sugerir uma arquibancada. Uma sinalização de neon laranja soletrava o título da instalação e um pequeno monitor embutido na parede exibia imagens da Brasília de Niemeyer. A leitura de Morgan toma a construção desse vazio como exemplo da relação entre indivíduo e seu ambiente, o qual reflete as influências decisivas que nos dão forma, incluindo aqui nossas projeções, memórias e sonhos contínuos.
Outra ocorrência que alude ao tema dos trópicos aparece nos trabalhos de Armando Andrade Tudela. Em “Diaporama and Infrared Light” (2005), o artista aponta um processo orgânico de modificação do lugar identificado como reversão dos trópicos no hemisfério norte. Sob forma de slides, ele mostra uma seqüência de luzes infravermelhas lançadas em diferentes lugares (seja em Liëge ou em St. Etienne), nos quais identifica um tipo de abandono próprio dos trópicos, por pressuporem um processo orgânico de mudança. Ao embaralhar os contornos dos edifícios, a luz vermelha funcionaria como “supra” memória, sugerindo uma desconexão entre os recintos arquitetônicos e seus entornos imediatos, transferindo-os a um campo mais especulativo da imaginação.
Ainda sob o mesmo crivo, aparece o exemplo de Florian Pumhoesl, o qual realizara uma série de videoinstalações que tratam das noções de “modernização”, “modernidade” e “modernismo” e o modo complexo no qual tais noções se exaurem no desenvolvimento da arquitetura do oeste africano. Em seus filmes, o artista utiliza-se da própria linguagem formal do modernismo e refere-se à relação histórica entre cinema e arquitetura na África do Leste. De modo geral, os trabalhos revelam a imposição do moderno sobre a natureza na África e sugerem a interdependência entre colonialismo e modernidade quanto ao papel distinto que as formas de representação modernistas tomaram nesse projeto.
A arquitetura como escultura
Phycobuildings é outro exemplo destacado pela curadora na produção de Kippenberger por lidar com as possibilidades de circunscrição da arquitetura como escultura. Dentre os livros produzidos pelo artista, este volume consta de fotografias e materiais encontrados no Brasil. As fotografias foram tiradas nas ruas e planificam propositalmente várias situações entendidas como “escultóricas”, quer sejam as arquiteturas “indefinidas” encontradas (que refletem uma qualidade estranhamente não-terminada), ou as acumulações de lixo e de materiais prediais (que acabam assumindo a aparência de modelos arquitetônicos).
O registro fotográfico de esculturas “encontradas” na cidade tem assumido diversas formas nos últimos anos. A recuperação de Phycobuildings é associada a dois artistas da mostra: Anri Sala e Mauro Restiffe. O primeiro, utiliza-se da confusão e da transformação deliberada entre os meios bidimensional e tridimensional: por meio do achatamento das reproduções fotográficas, Sala cria um hibrido entre a natureza volumétrica da escultura e das arquiteturas registradas (incluindo aqui a manipulação da escala) e a realidade plana da imagem. Aos olhos de Morgan, Sala usa um meio para expor os limites do outro, o que reforçaria uma condição de desorientação das imagens. Edifícios parcialmente construídos, materiais sendo implantados fortuitamente, técnicas construtivas improvisadas, terrenos desertos, a reutilização de materiais são elementos que Sala foca conceitualmente ao invés de enfatizar suas freqüentes aparências escultóricas.
Similarmente, o trabalho de Restiffe situa-se num lugar ambíguo entre a tradição da fotografia documental e a imagem esteticamente produzida. Pyramid (2004) pertence a uma série em que o artista fotografa o ambiente urbano de Istambul; ali, áreas densamente construídas da cidade são capturadas em imagens que se aproximam de detalhes arquitetônicos e de padrões característicos do design islâmico. Aqui, a fachada ornamental de um edifício residencial situado na esquina de uma das escadarias de Istambul é interrompida pela construção – aparentemente deslocada – de uma janela funcional modernista.
A apropriação da representação arquitetônica: maquete e planta-baixa.
Kippenberger seguiu sua investigação arquitetural pelos meios representacionais da maquete e da planta-baixa, adotando tais formas da prática arquitetônica, esvaziadas de seu papel funcional. “Input-Output” (1986-92) consiste de uma série de desenhos feitos em contas e recibos de hotel, referentes à estadia em Salvador no Bahia Othon Palace Hotel, em 1986. Os papéis documentam seu consumo de comida e bebidas alcoólicas; no topo desses recibos ele realiza croquis de memória das plantas-baixas de todos os quartos ou edifícios nos quais viveu ou trabalhou desde os seis anos. Segundo Morgan, ao examiná-los, seríamos advertidos sobre o lado hedonista da vida do artista – o “input” (memória); porém, a intensidade do trabalho se daria simultaneamente pela construção aparente que aponta à co-dependência entre vida e arte – o “output”, presente em sua obra.
Recentemente, a popularidade do uso de maquetes por artistas vem crescendo e parece ter diversas razões para tanto. A opção pela maquete poderia aparentar uma posição um tanto quanto “antiquada” em tempos de softwares de CAD – utilizados pela grande maioria dos arquitetos; porém, etimologicamente e por natureza, tratam-se de projetos inconclusos – algo a ser copiado, construído ou re-pensado. O que, para Morgan, significa que sua forma resta no domínio mais ambíguo do imaginado ou do projetado.
Os exemplos dessas ocorrências fornecidos pela curadora concentraram-se sobre aqueles com uma interpretação particularmente escultural do formato “maquete”. As recentes reflexões de Isa Genzken sobre a arquitetura de Nova York e Berlim dirigem-se a questões como a uniformização do modernismo arquitetônico tardio e a ubiqüidade de certos materiais e motivos. Explicitamente esculturais, essas maquetes são compostas de detritos plásticos encontrados ao acaso. A série Fuck the Bauhaus—New Buildings for New York, construída com plástico, embalagens de pizza, fita crepe, papelão e pedaços de metal, é uma crítica direta à herança corrompida que resultou em diversos arranha-céus nova-iorquinos, cuja freqüente monocromia contrastaria às cores vibrantes empregadas pelo artista.
A investigação de Carlos Garaicoa sobre a ruína da arquitetura originou-se a partir de reflexões em torno de Havana, sua cidade-natal. Partindo de memórias pessoais, Garaicoa fabrica utopias sobre uma decadência permanente ao traçar a história de uma urbanidade efêmera. You Can Build Your Own City at Your Own Risk consiste em uma vista da cidade realizada em duas frágeis camadas de papel; a impermanência dos materiais, bem como o tratamento uniforme da escala, atenta para a permanência assumida dos nossos entornos, ao mesmo tempo que aponta para o potencial negligenciado de lugares não-realizados ou semi-demolidos. A presença mítica da cidade – sua falência, ruínas e ambições não realizadas – é tratada pelo artista com igual relevância à sua presença tangível.
Critica institucional (1990)
Um dos últimos projetos de Kippenberger citados por Morgan refere-se diretamente ao papel do museu e, em particular, ao alvoroço do novo edifício de museu que começou a tomar forma nos anos 90, momento em que o artista retorna conceitualmente ao ponto inicial dessa apresentação, o “Bormann Gas Station”. Em 1993, durante estadia em sua casa de inverno em Syros, Kippenberger deparou-se com um conjunto de ruínas de concreto (que estruturalmente lembravam um “templo escultórico minimalista”) e apropriou-se delas como um museu imaginário, o Museum of Modern Art Syros (MOMAS), do qual se auto-intitulou diretor e para o qual convidou vários artistas a exibir, e tantos outros a fazer as sinalizações e pôsteres.
Desde os anos 90, a crítica ao museu – ao cubo branco e à sua natureza “expansionista” – ocupa um vasto campo da prática contemporânea. Tal recorrência cerca os últimos exemplos da lista de artistas percorrida por Morgan. Destaco aqui a citação do trabalho de Andreas Fraser, Little Frank and his Carp, em que a artista realiza uma filmagem com câmeras escondidas dentro do museu Guggenheim, de Bilbao. Nesse projeto, Fraser reverte seu tão conhecido papel de “monitora”, e passa a atuar na posição de visitante, escutando o áudio do guia oficial, que auxilia o público, entre outras coisas, a atentar para as “curvas sensuais” do edifício, numa crítica irônica da dominância da arquitetura autoral de Frank Gehry sobre a arte, bem como da interpretação sobre a experiência na cultura institucional.
Morgan conclui com um tom provocativo endereçado aos arquitetos, ao frisar que os artistas continuam a olhar para a arquitetura muito mais que os arquitetos para a arte. “Desde a forma escultórica em jogo e da pesquisa histórica até a avaliação crítica, há mais para a arquitetura aprender pela prática artística corrente e eu espero ouvir o que os demais palestrantes desse simpósio têm a oferecer sobre os modos alternativos da arquitetura na arte”.
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