Conferência 6
Por Paula Alzugaray
Marina Silva, Ministra de Estado do Meio Ambiente, havia sido convidada para dar uma conferência na abertura do Seminário Acre. Ao convidá-la a ocupar a mesma mesa do geógrafo norte-americano David Harvey, o co-curador José Roca tinha a intenção de introduzir o tema do Seminário lançando questões como justiça ambiental e o direito à terra em comunidades tradicionais. Mas compromissos oficiais adiaram a participação da Ministra e o projeto inicial de José Roca não se realizou. Em troca, Marina Silva brindou o auditório da Fundação Bienal com uma palestra de forte tom agregador, que encerrou com otimismo a série de Seminários Internacionais, iniciada em janeiro e concebida para dar ao público uma propagação gradual dos conceitos que nortearam a curadoria da 27ª Bienal.
Mostrando disposição em articular conceitos e abertura para dialogar com os outros conferencistas, Marina Silva produziu um relato vivencial sobre o direito dos povos da floresta à terra amazônica. Mas, aos poucos, deixou-se levar com espontaneidade, por temas de natureza interdisciplinar como alteridade e diversidade.
A conferência começou por apontar a especificidade da Amazônia em relação ao resto do País e a importância de seus movimentos sociais de luta pela terra não terem se pautado pelo modelo de distribuição eqüitativa de estoques públicos de terras, adotado por movimentos do Sul e do Sudeste. Como acreana, nascida no Seringal Bagaço, território de exploração de seringueiros a 70 quilômetros de Rio Branco, Marina Silva entende a terra amazônica em toda a diversidade social e cultural de suas populações indígenas, ribeirinhas e de seringueiros. E compreende a terra como um espaço de construção de identidades.
Marina, que começou sua ação política nas comunidades eclesiais de base, nos movimentos de bairro e no movimento dos seringueiros – antes de fundar a CUT do Acre e de sagrar-se como a única Vereadora de esquerda na Câmara Municipal de Rio Branco, em 1988 -, localizou duas etapas na luta dos povos amazônicos pela terra. A primeira batalha foi a constituição de uma identidade própria, a partir do reconhecimento da biodiversidade, dos bens materiais e simbólicos da floresta. Segundo ela, isso foi conseguido à custa de esforços físicos e pessoais de homens, mulheres, idosos e crianças, que, para defender os meios naturais que garantem suas vidas - igarapés, matas, castanheiras, seringueiras, peixes, animais – utilizaram o próprio corpo nos “empates”.
“Empates” são correntes humanas de isolamento de áreas ameaçadas, formadas a fim de impedir desmatamentos. Marina conta que eles foram criados por Chico Mendes e os seringueiros do Acre, em resistência aos acontecimentos da década de 70, quando os seringais foram vendidos e convertidos em pastagem. Entre 1972 e 1974 um “plano de desenvolvimento” arquitetado pelo governo militar suspendeu empréstimos para seringalistas financiarem sua produção de borracha e muitas áreas de seringais foram vendidas a preço baixo para criadores de gado do Sudeste do País.
A resistência às motoserras e à destituição dos valores materiais e simbólicos das terras do Acre – que, segundo a Ministra, além de Chico Mendes, sacrificou muitas vidas – foi muito bem descrita na conferência. Mas também está representada nos trabalhos expostos no Pavilhão da Bienal. A artista canadense Susan Turcot que esteve no Acre, dentro do programas de residências da 27ª Bienal, documentou em desenhos a grafite os desmatamentos e a mobilização das comunidades nos “empates”. Já entre as pinturas do artista acreano Helio Melo, há imagens de vacas que brotam de seringueiras e do estranhamento que moradores locais sentiram diante do gado e os costumes vindos do Sul.
Se a proposta do seminário e da curadoria era considerar o Acre não apenas em sua realidade histórica e territorial, mas em sua condição metafórica de outras situações, poderíamos avançar ainda mais na exposição montada no Pavilhão e chegar a associações insuspeitas entre o Acre e as motivações artísticas. Chegaríamos, por exemplo, à artista cubana Ana Mendieta, que viveu cedo uma experiência de desgarramento de seu lugar de origem e procurou em seu trabalho artístico re-estabelecer elos de conexão de seu corpo com os elementos da natureza – terra, água, fogo e ar. Ana Mendieta demarcava o próprio corpo na terra. No Acre, as comunidades dos “empates” conseguiram garantir para si as reservas extrativistas, garantindo o usufruto da terra e dos bens naturais.
A segunda etapa da luta pela terra, segundo a Ministra do Meio Ambiente, apresenta essas conquistas: as reservas extrativistas e a criação da Universidade da Floresta, uma extensão da Universidade Federal do Acre (Ufac), voltada para pesquisa sobre a biodiversidade da região amazônica e o manejo sustentável da floresta. Na conferência da manhã do sábado, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha já havia destacado a possibilidade real de o conhecimento tradicional e o conhecimento científico “viverem juntos”, graças ao exemplo da Universidade da Floresta, que foi instalada em Cruzeiro do Sul, em 2005. Marina Silva não esteve presente à conferencia de Manuela Carneiro, mas em muitos momentos de sua palestra manifestou seu reconhecimento e respeito à atuação da antropóloga.
Ao salientar a importância do trânsito entre a ciência ocidental e os saberes das comunidades tradicionais, Marina Silva não apenas estabeleceu um diálogo com a pesquisa científica, como começou a se articular em relação a outras áreas do conhecimento. Olhou para seu colega de mesa, o professor e crítico de arte belga Thierry de Duve, e, de forma surpreendente, comparou o readymade de Duchamp à “desconstituição da visão tradicional da ciência”. Assim como o urinol foi deslocado da vida para o museu, ela afirmou que “o feito pronto, o empírico, aquilo que os índios e os seringueiros observam na natureza” também pode ser adquirido como conhecimento e ciência.
Destacando a importância desses “trânsitos” para a constituição de uma nova forma de conhecimento, a Ministra evocou (mesmo que sem saber) o seminário “Trocas”, em que o crítico francês Nicolas Bourriaud apresentou a sua “estética relacional”, e em que a psicóloga Maria Rita Kehl teceu um projeto de convívio “entre dessemelhantes”. Marina Silva não sabia que o seminário organizado pela co-curadora Rosa Martinez, em outubro, defendera a transferência e o intercâmbio como um novo paradigma relacional. Mas ela conhecia o tema da 27ª Bienal, “Como viver junto”. Havia visto uma reportagem sobre a Bienal em um programa jornalístico e contou o quanto ficou interessada no assunto. “O x da questão é a convivência”, disse, dando a entender que encontrara a palavra para traduzir os últimos 30 anos de luta pela terra em seu Acre natal. “A tolerância é arrogante. Conviver é aprender a transitar no diferente”.
Com a segurança e a liberdade de quem já transitara por territórios da ciência, da arte e de movimentos políticos e sociais, Marina Silva nesse momento produziu um giro em direção à história política, afirmando que “os líderes que deram certo foram aqueles que não lutaram para acabar com as diferenças”. Em seguida, em outra guinada, citou “O Mal-estar na Civilização”, de Sigmund Freud, para dizer que a civilização depende da capacidade de cada um de estabelecer o trânsito com o diferente, com o outro. “Quem não transita, morre”, lançou, antes de encerrar a palestra com um poema de sua autoria, sobre as atribuições do arco, da flecha, do caçador e do alvo.
Durante a conferência, a Ministra do Meio Ambiente disse algumas vezes que não queria falar de política. Mas talvez ela tenha compreendido que estar no espaço da arte não é estar em situação apolítica. A sociedade está aprendendo sobre a troca, diz Marina Silva. Sua conferência no seminário “Acre” foi uma mostra de que a convivência entre povos da floresta, cientistas, pesquisadores, políticos e artistas é uma realidade possível.