Conferência 2
Por Ruy Sardinha Lopes
O que pode haver de comum entre uma região localizada na cabeceira do rio Envira, no Acre e aquela dizimada pelo atentado de 11 de setembro, em Manhattan? Na opinião de David Harvey, ambas constituem-se enquanto espaços relacionais.
Segundo o geógrafo inglês radicado nos Estados Unidos foi sua ignorância inicial em relação ao Acre (“onde é?”, “o que é o Acre?”) que o levou a uma aproximação que, à primeira vista, pode parecer sem propósito. Partindo das idéias de espaço que perpassam a análise geográfica, Harvey identificou suas três concepções mais importantes: o espaço absoluto, de matriz kantiana, segundo a qual o espaço é algo em si mesmo, demarcável e passível de delimitação e localização, de forma absoluta (através de mapas imóveis, por exemplo); o espaço relativo, desenvolvida a partir das teorias de Einstein, advoga a inseparabilidade espaço/tempo, devendo o espaço ser definido a partir da conectividade entre os objetos, sem os quais não existiria e, finalmente, o espaço relacional, a partir de Leibniz e Spinoza, um espaço que contém e que está contido nos objetos, já que um objeto só existe na medida em que contém e representa dentro de si próprio as relações com outros objetos. Desta forma, se à primeira noção importa a materialidade territorial, as incertezas, os movimentos; os fluxos de água, energia, ar, produtos agrícolas etc é que são prioritários para a concepção relativista. Já do ponto de vista relacional importa os processos, as relações entre as pessoas, os objetos e as diversas temporalidades estabelecidas em uma determinada espacialidade, em uma palavra, seu significado simbólico. Não se trata, alerta Harvey, de uma escolha entre três categorias, mas de conceber o espaço como uma relação dialética das mesmas.
Neste sentido, a região na qual ocorreu o atentado de 11 de setembro só pode ser entendida na medida em que articula sua materialidade (territorial e econômica) com a memória que estes acontecimentos suscitam. Da mesma forma, ao falarmos de Acre, estamos falando de Amazônia, seringueiros, questão ambiental, sustentabilidade etc. Relacionando, dialeticamente, questões locais com processos universais, globais.
Foi, pois, essa dialética entre o universal e o particular que levou David Harvey, na segunda parte da palestra, a lançar sua ira analítica contra aquilo que se impõe como o nosso absoluto: o neoliberalismo. Fazendo uma espécie de genealogia do movimento, o geógrafo nos lembrou que o neoliberalismo foi uma resposta da classe dominante, em meados da década de 1970, à crise de acumulação e ao crescimento da luta de classes (eurocomunismo, aliança comunismo-socialismo na França, fortalecimento da esquerda nos EUA etc). Tal resposta teve como ponto chave a “disciplina” imposta pelos banqueiros à cidade de Nova Iorque que em 1975, que diante de seu enorme endividamento submeteu-se ao “programa de ajuste estrutural”, diminuindo seus serviços públicos e renegociando vários contratos. A partir desse exemplo, e por força de organismos financeiros internacionais como o FMI, o modelo se generaliza – do Chile, de Pinochet ao Iraque pós-ocupação americana, passando pelo México, Argentina, Índia etc.
Passados trinta anos, como podemos avaliar a escalada neoliberal? “Não muito bem”, sentenciou Harvey. Note-se, a guisa de exemplo, as baixas taxas de crescimento e os altos níveis de endividamento das principais economias mundiais (EUA à frente). Como, então, explicar que tanta gente e governos estejam convencidos de que é algo bom? A resposta foi dada, inicialmente, afirma o palestrante, novamente pela cidade de Nova Iorque na década de 1970. A disciplina imposta pelos banqueiros a esta cidade não representou somente uma ordenação econômico-financeira, mas a adoção de um outro princípio de governança: as elites recuperaram seu poder político e econômico.
A conjunção de baixa taxa de crescimento econômico mundial com a recuperação do poder econômico e político das elites é a marca distintiva do neoliberalismo atual, constituindo um novo regime de acumulação denominado por Harvey de “acumulação via espoliação”. Um mecanismo de desvalorização e destruição administradas como remédio corretivo para a crise de sobreacumulação, onde “são sem dúvida as populações desses territórios vulneráveis que têm de pagar o preço inevitável em termos de perda de ativos, perda de empregos e perda de segurança econômica, para não mencionar perda de dignidade e de esperança. E por meio da mesma lógica que requer que os territórios vulneráveis sejam os primeiros a ser atingidos, assim também são tipicamente as populações mais vulneráveis desses territórios que suportam o principal ônus que sobre eles recair. Foram os pobres das regiões rurais do México, da Tailândia e do Brasil que mais sofreram com as depreciações causadas pelas crises financeiras dos anos 1980 e 1990*”.
A biopirataria, a entrada das madeireiras no Acre, a desapropriação dos direitos imemoriais dos povos da floresta, assim como o processo de gentrificação das favelas de Bombaim explicam-se, pois, afirmou o geógrafo inglês, através de sua inserção nesses mecanismos. Por isso “é importante situar o Acre na perspectiva relacional do neoliberalismo”.
Afirmando que “os índios querem ser incluídos segundo seus próprios valores e não através dos princípios neoliberais”, Harvey terminou sua palestra discorrendo sobre as formas de oposição. Reconhecendo a existência de movimentos contrários a essa espoliação na Índia, nos Estados Unidos e em outras partes do planeta, o palestrante afirmou tratar-se de movimentos locais, fragmentados e divididos, ainda incapazes de fazer frente ao conceito global do capitalismo mundial. Harvey aposta, pois, na capacidade dos movimentos de oposição aglutinarem seus descontentamentos num projeto político próprio que lhes permita recuperar a força perdida, para poder dizer “chega, já basta!”. Como fazê-lo? Bem, essa é uma resposta que não cabe ao intelectual fornecer. Sua missão, cumprida nesta palestra, é “amplificar o que ouço nos movimentos sociais”.
*HARVEY, David. O Novo Imperialismo. São Paulo, Edições Loyola, 2004, p.113