Conferência 5
por Tina Montenegro
A fala de Thierry de Duve foi a única no seminário Acre a ter a arte como assunto direto. Thierry mesmo, no texto de apresentação de sua palestra, percebeu a “ambigüidade instigante” de tal situação e iniciou sua fala no seminário apresentando a solução engenhosa que daria ao problema. Ele usaria o Acre, ou a situação dos índios no Acre como metáfora ou alegoria para a arte em sua relação com a sociedade. E justificou: “a Bienal é uma bienal de arte”.
Assim, à questão de saber se a arte pode nos ensinar a viver juntos, responderia se perguntando qual a relação que a arte deveria ter com a sociedade, como outros palestrantes haviam se perguntado qual a relação que os índios do Acre deveriam ter com o resto do Brasil. É evidente que a própria fala de Thierry serviu como ilustração da resposta que daria, pois ele mesmo teve que encontrar uma solução para o problema de relacionar a sua fala com as falas dos outros palestrantes.
Portanto, a primeira parte da fala de Thierry foi dedicada a fazer a analogia entre a situação dos índios no Acre e a situação da arte no mundo. Para isso, primeiro usou a palestra de José Carlos Meirelles, que defendia que os índios autônomos deveriam ser mantidos completamente isolados da sociedade. O poder e a sedução da civilização (ou barbárie) ocidental moderna os estavam matando. Thierry lembrou os exemplos dados do isqueiro bic que acabava com a prática tradicional de fazer fogo com pauzinhos e da facilidade mágica do consumo: um índio não quer uma pick-up Toyota, mas dez, uma para cada membro de sua família. A independência total é, portanto, uma das soluções. A arte deveria ficar separada da sociedade e funcionaria como uma espécie de reserva de cultura, caso a civilização ocidental moderna perdesse o controle e enlouquecesse.
Outra solução, sugerida por Manuela Carneiro da Cunha, seria uma relação de diálogo entre os índios e a sociedade. O que estaria destruindo os índios não seria a tecnologia (ou o neoliberalismo econômico, para usar a fala de David Harvey), mas a ciência e a lei, ou seja, os discursos universalizantes que se oporiam ao conhecimento tradicional local, inadaptado a eles. Neste caso, a arte deveria funcionar como foco de resistência, interagindo com a sociedade, mas mantendo suas especificidades.
O último ponto da analogia foi tirado de uma situação vivida por José Carlos Meirelles. Ao tentar evitar que duas tribos rivais combatessem, ele disse aos índios que deveriam parar porque estavam matando seus próprios primos, sua família. Interessou a Thierry essa idéia de pertencimento a uma mesma família, esse “espírito de família”. Ele citou como exemplo o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, que abre com: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana...”1 Nos dois casos, a família é posta e pressuposta boa, como lugar de paz e harmonia. A arte poderia ser vista então como condicionada por ou geradora de tal “espírito de família”
Foi com essa idéia que Thierry passou à segunda parte de sua fala, em que responderia à pergunta posta com base na filosofia de Kant, seu filósofo de predileção por ter sido, segundo ele, quem melhor explicara o que acontece na mente humana na experiência estética. Sua interpretação do juízo estético em Kant, aplicada à arte contemporânea, leva à substituição de “isto é belo” como juízo estético paradigmático por “isto é arte”. Thierry colocou a aceitação dessa mudança como condição preliminar para a aceitação de sua fala, embora não tenha tido tempo de detalhar a argumentação que o levou a isso.
Em outros textos e em um curso que ministrou em São Paulo, em setembro de 2005, Thierry tratou especificamente dessa passagem do sistema das belas artes para o sistema da arte em geral, que levou ao novo paradigma de juízo de gosto.2 A partir do momento em que tudo passou a poder ser arte, como demonstraram Manet, com seu “Déjeuner sur l'herbe”, de que se disse: “isso não é pintura”, e Duchamp, com seus readymades, a questão não era mais “isto é belo”, mas sim “isto é arte”.
Para Thierry, ao contrário de outros estudiosos de Kant, o mais importante no juízo estético é sua pretensão à universalidade subjetiva. É o postulado da capacidade universal de estar de acordo. É o “sensus communis”, que Thierry ilustrou por uma pequena encenação.
Colocou entre ele e José Roca a famosa rosa imaginária. Pediu-nos para imaginar que um deles dizia que a rosa era bela e o outro, ao contrário, dizia que era feia e que, exatamente nesse momento, Kant estava passando por ali. Kant teria primeiramente pensado que um dos dois estava certo e o outro errado. Em segundo lugar, Kant teria pensado que os dois estavam errados, pois o prazer estético é um sentimento pessoal e subjetivo. O certo teria sido que tivessem dito “eu sinto que esta rosa é bela” e “eu sinto que esta rosa é feia”. Insatisfeito, Kant teria buscado saber por que os dois haviam tratado um sentimento subjetivo como uma qualidade objetiva e havia chegado à conclusão que os dois estavam certos, pois o julgamento estético é sempre dirigido a alguém. A rosa, que é bela para mim, deveria ser bela para todos. O juízo de gosto tem sempre uma pretensão ao acordo universal, porque supomos que os outros têm a mesma faculdade de gosto que nós.
Foi assim que Thierry demonstrou o que entende por “sensus communis” e que passou a explicar, voltando à noção de “espírito de família” que usara antes, qual era a função da arte e qual era, portanto, a posição que deveria ocupar face à sociedade. Para Thierry, esse sentimento universalmente compartilhado de compartilhar sentimentos universalmente, essa empatia, esse sentimento que todos temos de que todos têm o mesmo sentimento é a função da arte.3 É uma função humanizadora, pois ao sentirmos que temos todos o mesmo sentimento, sentimo-nos pertencentes ao mesmo grupo, à mesma “família humana”. Como havia dito antes, Thierry ressaltou que essa “família” não é harmônica e que Kant sabia disso. Que a paz absoluta não existe, mas que ela é necessária como horizonte.
Assim, a arte teria uma função a-social, mas também social. Ela seria uma base transcendental para o viver junto da sociedade democrática. Portanto, em resposta à pergunta inicial da sua fala, Thierry disse que a arte deveria ter uma autonomia relativa na vida social, pois ela é indispensável a esta última, embora não se confunda com ela. Thierry disse ainda que ela será para sempre necessária, pois o viver junto nunca será totalmente harmônico e, por isso, a arte nunca se dissolverá na vida. Ela será sempre arte por ter esse horizonte inatingível, transcendental e indispensável.
Essa resposta de Thierry já estava pré figurada no texto de apresentação de sua palestra em que ele se pergunta: “Não teria sido a “Utopia”, de Thomas More, uma obra de arte antes de tornar-se denominação de sistemas políticos ideais? Por outro lado, não serão os zapatistas também artistas, cuja utopia é o bem-estar do povo de Chiapas?”. Pois foi com uma idéia de utopia que Thierry determinou a função e o lugar da arte.4 Entretanto, a fala de Thierry não nos permitiu responder por ele a essas duas perguntas. Na verdade, talvez pela restrição do tempo, ficamos sem saber exatamente a que tipo de arte Thierry se referia, ou melhor, ficamos sem saber o que era arte para ele.
Durante o debate que se seguiu, Thierry pôde dar dois exemplos de obras que considerava arte e que tinham um viés político ou social. Citou o trabalho do coletivo Campement Urbain, Je et Nous. Trata-se de um coletivo que propôs à comunidade de um dos subúrbios pobres de Paris a elaboração e realização de um projeto de espaço público onde as pessoas poderão ir para ficar isoladas durante o tempo que quiserem. Thierry ressaltou que o projeto da construção era esteticamente interessante e que o processo havia sido coletivo. Disse que não era desses que achavam que o processo bastava: um objeto estético é necessário.
Em seguida, sem poder falar mais da Bienal por não ter tido muito tempo para vê-la, Thierry citou também o trabalho “Restore Now” de Thomas Hirschhorn, o qual apresenta imagens brutalizantes de pessoas muito feridas, mas não deixa de ser humanizante no sentido dado por Thierry e tem um componente estético muito forte.
Como são duas obras em que o caráter estético é bastante claro, sentimos que teria sido possível extrair mais da fala muito clara e elegante de Thierry. Faltou apenas um pouco de tempo para que ele nos exemplificasse melhor as idéias que expôs tão bem.
Notas:
1. Thierry não entrou em detalhes sobre o contexto pós-guerra da elaboração da declaração. Ele foi questionado por David Harvey, no debate que se seguiu às palestras, sobre a pretensão universal da declaração e sua conseqüente intolerância e ausência de “espírito de família”.
2. Curso “Uma Teoria da Arte Hoje” ministrado no Centro Universitário Maria Antônia. Th. de Duve, Kant after Duchamp (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1996).
3. Aqui, embora não o mencione, Thierry se aproxima de Hanna Arendt, em Lições sobre a filosofia política de Kant (Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993). Ela diz: “...a ausência de fim da arte tem o “fim” de fazer com que os homens se sintam em casa no mundo.”
4. Sobre a idéia de utopia em Kant, ver Rubens Rodrigues Torres Filho, Ensaios de filosofia ilustrada (São Paulo: brasiliense, 1987) p. 49.
5. www.campementurbain.org