A Instituição como Interface, Ana Maria Tavares

Entendo o tema do debate aqui proposto –a instituição como interface, como uma provocação para elaborar uma reflexão a respeito do papel do artista e aquele da instituição e, sobretudo, refletir a respeito das possibilidades de uma atuação transformadora capaz de ampliar os limites que a própria palavra ‘instituição’ carrega. Sabemos que o termo implica a idéia de coisa estabelecida, com caráter de relativa permanência, leis e códigos próprios.  Portanto, coloco já de início, o dilema e as tensões subliminarmente implícitas na relação entre o que entendemos ser, por um lado, o artista, a prática artística e a arte –supostamente livres, dotados de uma vocação à expansão dos limites e, por outro, suas instituições, aqui incluídos os museus, os centros culturais, centros alternativos de arte, entre outros. Para essa reflexão tomarei como ponto referência algumas questões geradas em minha produção artística. Começo então a me fazer perguntas:


  1. Como seria possível atuar de maneira a transformar a relação artista-instituição (ou instituição-artista) em uma relação positivada, isto é, aquela que assume a parceria e a cumplicidade, sem perder seu vigor crítico e sua relevância? Como de fato fazer da instituição uma interface?
  2. Quando falamos em instituição no Brasil a que nos referimos exatamente? O que fazer quando seu trabalho não se adequa aos formatos e práticas tradicionais e aos recursos disponíveis, mas ainda precisa da instituição?

Antes de continuar gostaria de ressaltar que esta reflexão parte de uma experiência cujo contexto inicial é o cenário brasileiro e que, apesar das expectativas e críticas aqui colocadas estarem voltadas em primeiro lugar para o fortalecimento de nossa prática no Brasil, elas podem também ser pensadas em relação a outros contextos.

Iniciei minha carreira nos anos oitenta a partir de um entendimento da posição do artista como idealizador, agente, produtor, captador de recursos, curador e crítico, professor, e tantas outras atribuições, que aqui poderia facilmente resumir emprestando o termo recentemente cunhado por Ricardo Basbaum: o ‘artista, etc’. Contaminados pela potência e liberdade de trânsito da arte conceitual no Brasil e, marcados talvez pelo otimismo do fim da ditadura e início do movimento das ‘diretas já’, éramos jovens artistas confiantes nas possibilidades ilimitadas da arte, na liberdade do artista, porém totalmente conscientes de que ‘instituição’ éramos, senão outros, nós mesmos! No período de ‘80 a ‘90 foram muitas as exposições curadas, propostas a museus e outros espaços, geradas com recursos captados, situações inventadas e parcerias formadas com artistas, diretores de museus, empresas, etc. Dentre as instituições, as mais atuantes em São Paulo eram, sem dúvida, a Bienal Internacional de São Paulo, e o MAC – Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, fortemente marcadas pelas gestões de Walter Zanini e Aracy Amaral, a Pinacoteca do Estado, sob a direção de Fábio Magalhães. Estas e outras sobreviviam alimentadas pelos ideais de seus diretores e funcionários, dos artistas e, sem dúvida, do escasso público especialista e amante da arte. Como sempre no Brasil o incentivo e fomento à cultura e, em especial às artes plásticas, era quase zero. Mesmo assim, não posso deixar de lembrar que movíamos com muita agilidade e, mais importante salientar, começamos nossas carreiras com importantes exposições individuais em museus como o MAC/USP e o MAM/SP ou pequenas coletivas pensadas e organizadas por nós mesmos. Foi assim, por exemplo, com Pintura como Meio (1983), Arte Híbrida (1988), ou minha primeira individual na Pinacoteca do Estado em 1982, mesmo ano em que terminei a graduação na FAAP.

Essa curiosa inversão, iniciar uma carreira em um grande museu do país, era fruto, acredito, das heranças ainda fortes da arte conceitual no cenário paulistano e da visão que o artista tinha de si mesmo: o indivíduo livre, o artista crítico, aquele que fortalece sua prática longe de galerias comerciais e que preserva seu trabalho das tentações do mercado! Deixando de lado aqui os comentários a respeito do entendimento do mercado de arte como armadilha e da conseqüente cooptação do artista, avaliemos os aspectos interessantes e extremamente positivos dessa situação bastante às avessas, possível talvez somente num contexto como o nosso. Acredito que tivemos, naquela época, a melhor das oportunidades: da fragilidade da instituição (refiro-me aqui às frágeis condições de sobrevivência devido às fontes limitadíssimas e escassas de recursos), ao seu fortalecimento, gerado a partir de intensas parcerias com artistas e, sobretudo, por meio de atuações que possibilitavam a experimentação e implicavam alto risco de ambas as partes, mas que operavam no sentido de constituir e formatar aquilo que entendíamos, na época, ser a instituição. Outro aspecto extremamente positivo foi, principalmente para mim, a possibilidade de experimentar grandes e variados espaços, arquiteturas autorais e contextos únicos e, mais importante, a possibilidade de conhecer de dentro a instituição museu.

Esse fortalecimento é, a meu ver, positivo para ambas as partes: artista e instituição. Ao convidar o artista ou ao aceitar sua proposta curatorial, seu projeto para exposição, estabelecia-se então um pacto de confiança e de parceria que poderia hoje ser traduzido em termos de formação de rede. Instituição e artistas trabalhando juntos. Instituição e artista cooperando para alcançar um objetivo comum. É claro que isso implicava em mais trabalho para o artista, sem dúvida, esse, por vezes, e muitas, sentia o peso de tantas ações e movimentos. Por outro lado, havia a liberdade de inventar e reinventar e, principalmente, a consciência de sua importância nesse cenário. Então, assim se iniciou minha carreira e, diante de tudo aquilo que faltava, parecia que tudo se podia conquistar e ambicionar.

O primeiro momento, já citado, foi o dos anos de recém formada, a partir de 82. A Pintura como Meio, a Arte Acesa, a Arte na Rua, A Fotoidéia, Microficha, etc, todos esses projetos de colaboração, atuações essas de parcerias entre artistas, instituições, empresas, e outros segmentos. O segundo momento, relativo ao meu retorno de Chicago, após dois anos fora do Brasil, compreende o período de 1986 até início dos anos 90. Um momento cujo contexto já se mostrava impregnado de uma mentalidade mais inclusiva, quando as relações com o mercado já se faziam notar, gerando movimentos explícitos de aproximação mais apaziguada e positiva entre artistas e galerias. Ao invés de mergulhar nessa cena voltada ao mercado, talvez decorrente do próprio caráter e escala já muito definidos em minha produção, voltados às indagações e reflexões da obra e seu contexto, à experiência do espaço, descobri a recém formulada Lei Sarney de incentivo à cultura. Passei então a ser meu próprio agente, a produzir buscando os recursos que pudessem viabilizar os projetos. Como já fazia isso desde os tempos da faculdade, esse tipo de abordagem parecia uma saída bastante pragmática. Foi assim que arrecadei, em 1987, uma quantia bastante elevada para realizar a instalação ‘Duas Noites de Sol’, de 240m2, para a XVII Bienal Internacional de São Paulo, um espaço construído em alvenaria, ‘auto-institucionalizado’, como definiu posteriormente Tadeu Chiarelli. Entendia a Bienal como parceira. Formulei um projeto, construí uma maquete, escrevi as cartas formalizando os pedidos que eu mesma fazia, pessoalmente, para os patrocínadores que consegui como a Phillips, da Cia Vidraria Santa Marina, do Banco Francês e Brasileiro, entre muitos outros. Parecia ficar evidente, a partir daquele momento, que artistas e suas obras iam aos poucos definindo o tipo de tratamento que esperavam de instituições como a Bienal. Todo o circuito se fortalecia e as influências de fora também eram sentidas aqui dentro. Queríamos muito formar um cenário profissional e maduro.

Hoje analisando todas as mudanças no cenário, e não é necessário relatá-las aqui, pois essas se fazem notar na projeção e no lugar que a nossa arte ocupa no mundo, percebo que apesar do profissionalismo alcançado, essas relações mudaram radicalmente. São muitos os ingredientes que colaboraram para tais mudanças: a função da arte no mundo do espetáculo, a noção de arte como valor simbólico, o uso da arte para benefícios corporativistas, o capitalismo, etc. Nós artistas também mudamos, porém, por mais que as ações renovadas da prática artística conquistem cada vez mais outros espaços para a arte, ainda reconhecemos e alimentamos a importância que as instituições têm como plataforma para o discurso da arte. Buscamos não somente o reconhecimento dessas nossas ações, mas também seu fortalecimento e almejamos, inclusive, o auto-sustento financeiro. Porém, vale lembrar aqui que mudamos muito mas continuamos num cenário que não se alterou: um país onde a produção cultural não é reconhecida como construção de sua própria identidade, nem valorizada. Nesse cenário resta-nos apenas duas alternativas: minguar –o que não aconteceu e nem acontecerá, ou nos fortalecemos a partir de movimentos próprios.

A meu ver, a primeira coisa que mudou nesses anos é a maneira de atuar das partes envolvidas. Ao se profissionalizar, o museu afastou o artista, pois passou a vestir uma roupa inadequada para nossos climas tropicais. Quero dizer aqui que nossas instituições passaram a ser formatadas nos moldes internacionais, hierarquizaram-se, verticalizando suas ações –o que num primeiro golpe de vista soa como um up-grade necessário e recomendável: somos como no primeiro mundo, ou melhor, somos o primeiro mundo! Porém, continuaram a ser operacionalizadas a partir de uma realidade pobre (financeiramente e culturalmente falando) e bem brasileira. Conseguem hoje uma soma muito maior de recursos do setor privado, como nunca antes, mas ficam muitas vezes à mercê de seus interesses. Não pensam a partir da urgência das obras ou dos artistas. Com isso colocaram os artistas de fora, não os têm mais como parceiros, e esses passaram, por sua vez, a fazer exigências compatíveis com a vestimenta da hora. Passamos a viver em um cenário de definições de papéis e de atuações precisas, inflando uma relação de poder e de tensões entre as partes onde cada um faz o que pode para sobreviver. Então pergunto: devemos definir os papéis e manter a instituição impermeável? Por que definí-los e estreitar o diálogo uma vez que cada obra pode ampliar sempre as relações entre instituição e possíveis parceiros? Por que tomar os artistas e suas idéias como incompatíveis com os recursos disponíveis? Será que as instituições vêm os artistas como interface? Será que os artistas se vêm assim? São os museus que deveriam criar o desenho dessa interface ou esse desenho deveria ser mais permeável, construído pelos dois lados?

Para contextualizar meu raciocínio em situações mais recentes, farei uma breve análise de dois momentos de minha carreira e a relação com instituição:

Porto Pampulha e Relax’o’Visions: a crítica institucional e o artista potencializando a instituição;

Midnight Daydreams: a recente parceria com o Instituto Tomie Ohtake

Durante os anos de ‘96 a ’98 desenvolvi um projeto compreendido por duas exposições: Porto Pampulha, no Museu de Arte da Pampulha – MAP, em Belo Horizonte e Relax’o’Visions, no Museu Brasileiro da Escultura – MuBe, em São Paulo. Para tal, apropriei-me dos significados desses dois marcos de nossa arquitetura brasileira para revelar duas situações de Museu no Brasil: o primeiro, projetado para ser um cassino, apropriado posteriormente para servir de Museu, aceitando todos os desafios de uma função que não lhe era própria, e o segundo, que nasceu como museu, usa um terreno público da cidade, mas que se transformou em um espaço para eventos privados, onde sua própria história nunca se efetivou.

Porto Pampulha, além de construir uma crítica voltada para as experiências de passagem do indivíduo na contemporaneidade, criava uma rede de tensões em seu interior que desestabilizava as condições até então estáveis daquele espaço expositivo. A experiência do espelhamento serviu como uma das estratégias para ampliar a experiência crítica e conduzir o visitante à pergunta: onde estou? Ou, isso é um museu? (parafraseando Magritte e Martin Grossmann). No caso da Pampulha, por exemplo, Porto Pampulha explicitou a vocação do espaço expositivo a tal ponto que alterou efetivamente a programação do museu a partir de então.

A segunda operação desestabilizadora desse projeto, seguiu seu caminho com a exposição Relax’o’Visions no MuBe, onde a obra realizou uma operação de rotação de arquiteturas autorais, criando o que passei a conceituar como o ‘site-specific-deslocado’, ao levar para dentro do espaço de Mendes da Rocha, elementos da arquitetura modernista de Niemeyer. A obra instalada no museu evidenciava seu silêncio, seu vazio. Se, no caso do MAP a obra tecida em seu espaço contaminado, impregnado de vida e história, é recebida e incorporada, podemos constatar que a instituição se deixou permeável a outras contaminações, enquanto Relax’o’Visions revelou a anestesia e o congelamento de uma instituição que parou no tempo, se protegeu debaixo da terra como um bunker e se afastou dos movimentos de seu exterior, da arte, dos artistas.

Essas duas empreitadas, só puderam ser viabilizadas a partir de agenciamento próprio (busca de recursos em forma de patrocínio) e o apoio logístico de uma galeria. As mesmas estratégias anteriores de captação de recursos foram utilizadas em todas as etapas da produção. Coube a essas instituições apenas a cessão do espaço expositivo, acompanhar sem envolvimento os esforços para a realização da obra e, ao final, se beneficiar desse processo. No caso do Museu da Pampulha, por exemplo, apesar de Porto Pampulha ter então inspirado um novo programa de exposições para o museu, não há registros dessa história. Seu atual programa curatorial conta hoje com verba destinada à produção das obras dos artistas convidados e, em contrapartida, os artistas doam uma obra da exposição para o acervo do Museu. Apesar de questionáveis, tais práticas de atualização de acervo têm demonstrado ser uma saída pragmática. Esse e outros programas de atuação inovadora transformaram o Museu de Arte da Pampulha, marcando assim sua posição no cenário nacional, além da visível contribuição para o fortalecimento da produção local. Porém, corremos um grande risco se pensarmos que há um formato definido para as práticas de museus de arte contemporânea. Essa é uma posição cômoda tanto para artistas quanto para aqueles que gerenciam espaços de arte. Tomemos as condições de transparência das paredes do Museu da Pampulha e as reverberações da própria arquitetura em diversas situações de espelhamento, como uma metáfora para imaginar um museu que não se define a partir de uma condição fixa, limitada, mas que se amplia e se expande a partir de renovadas ações da arte. Como encontrar um ponto de equilíbrio onde ambições e urgências não pareçam pertencer somente aos artistas?

Meu segundo estudo de caso se dá a partir das reflexões do recente envolvimento com o Instituto Tomie Ohtake em São Paulo, em 2004, quando convidada para iniciar o programa do setor de ação educativa ‘Criatividade: Ação e Pensamento’, idealizado e coordenado por Ricardo Ohtake e Stella Barbieri, com apoio da Fundação Carlos Chagas, que se dedica, entre outras coisas, à pesquisa em áreas como educação básica.

Atualmente em sua terceira edição, o programa visa aproximar o público da produção artística contemporânea, em especial, alunos e professores das escolas de Ensino Médio de São Paulo. Proporciona uma situação compartilhada de aprendizado a partir de uma experiência viva e atualizada dos processos de criação de um determinado artista. Os trabalhos têm a duração de um semestre, são formulados e acompanhados por um arte-educador. As atividades planejadas propõem uma reflexão a respeito da obra do artista e, ao mesmo tempo, visam ampliar o repertório prático e conceitual de cada aluno. Cabe ao artista, além de participar de vários encontros com esses alunos, idealizar uma exposição individual que é também objeto de estudo para o grupo. Dessa maneira, é curioso notar a inversão do processo, uma concepção bastante inédita entre nós: trata-se de um projeto que tem origem no setor educativo cujo foco principal é estabelecer uma ligação direta entre artista e público, ou seja, investir nesse diálogo muitas vezes dificultado pelos processos viciados de apresentação e mediação da arte.

Desde o início, apesar de otimista em relação ao proposto, foram duas questões que imediatamente vieram em mente: a) a importância do diálogo afinado com o artista para a definição do trabalho pedagógico; b) a urgente necessidade de resolver as limitações financeiras que se apresentaram.

O trabalho com o setor educativo foi extremamente rico em relação ao diálogo entre todas as partes envolvidas. A obra realizada, ‘Enigmas de uma Noite com Midnight Daydreams’, partiu de um projeto que buscou estratégias para superar as limitações financeiras. Durante mais de cinco meses trabalhamos em colaboração para administrar os recursos existentes que se somaram aos novos parceiros do trabalho. Esta obra seria inviável sem a flexibilidade e abertura de toda a equipe do Instituto, que demonstrou disposição para realizar um tipo de trabalho que depende da colaboração entre seus diversos agentes. Fica então evidente nesse caso que a diferença reside no fato de nos colocarmos permeáveis às características do contexto –da instituição e da obra, vislumbrando sempre a aproximação de outros possíveis parceiros implicando-os desde dentro no processo de diálogo com a arte. Isso não é novo, nem mesmo inédito, mas no Brasil ainda é algo bastante raro.

Há muito estamos constatando a constante renovação do lugar para a arte e dos papéis de cada um dos agentes nesse complexo sistema. Não mais pensamos apenas em espaços físicos, nem definitivos, nem ‘específicos’. A arte cruzou fronteiras, se fez nômade, renova constantemente seu diálogo com diversas áreas e tem poder para transformar as práticas institucionais. Mas não é isso que constatamos com a sistemática verticalização dessas práticas e o conseqüente engessamento da relação artista e instituição. Por outro lado, as instituições no Brasil tiveram, nos anos ‘70 até os ‘80, uma abertura excepcional (e menos recursos que hoje), reinventando modelos e se abrindo para os artistas. Pergunto: será que isso se deu somente por causa das pessoas tão especiais que estavam à frente dessas instituições? Seria essa uma condição possível de ser reinventada e resgatada entre nós? Qual seria a força política de uma atuação conjunta e como essa poderia alargar as relações entre instituições e artistas? A resposta estaria para mim na própria arte brasileira que já demonstrou antes ter, em sua essência, o poder de transformar paradigmas, de reinventar as práticas e apropriar-se da história para gerar uma arte singular.

 


Um detalhe aqui relevante: somente nove anos depois de iniciar minha carreira é que fiz a primeira exposição individual em galeria, portanto, em 1991, no Gabinete de Arte Raquel Arnaud.

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Número 2