... quem sabe a pergunta derrubasse as paredes da casa.
Relato sobre a última mesa do primeiro Seminário Internacional de Arte e Educação do Instituto Inhotim, intitulada "Residência Artística como Prática Educativa", com o artista Guilherme Teixeira e a curadora Catalina Lozano, em 25/08/12.
Por Cayo Honorato
Embora nunca tenha trabalhado diretamente com projetos educativos, a pesquisadora e curadora Catalina Lozano (1979-), com experiência na coordenação de uma organização sem fins lucrativos em Londres (entre 2008 e 2010), para residências artísticas, exposições e... projetos educativos, apresenta referências certas sobre o tema, a propósito, no ponto em que seu domínio por especialistas pudesse ser questionado.
Para ela, que neste ponto se põe de acordo com Paulo Freire (1921-1997) e Ivan Illich (1926-2002), a aprendizagem não deveria estar confinada a espaços e tempos demarcados, tampouco submetida a hierarquias entre os que sabem e os que não sabem. Além disso, entende que a arte, justamente, constitui um meio privilegiado para se chegar a tal processo de aprendizagem mútuo, que solicita desaprender e reaprender constantemente.
Também Catalina, que é colombiana e agora trabalha no México, enfatizou que fala a partir da América Latina, continente que foi inteiramente colonizado, inclusive, como não poderia deixar de ser, no que diz respeito à estruturação de seus modelos educacionais, com base em uma racionalidade específica, no mínimo cega aos conhecimentos e maneiras de aprender autóctones, que ainda resistem; ponto no qual, para ela, a proposta de se desescolarizar a sociedade põe igualmente em questão relatos históricos hegemônicos ou dominantes.
Outra vez, diante disso, a arte joga um papel importante, na medida em que desafia a divisão do trabalho e as especializações disciplinares, implicadas pela racionalidade moderna, a partir de projetos como o que Maria Thereza Alves (artista brasileira há muito radicada na Europa) apresentou na última documenta de Kassel, mostrando as lutas em torno do Lago Chalco, na Cidade do México, desde o século XIX, sobretudo, quanto às suas consequências sociais e ambientais; projetos que envolvem múltiplas disciplinas, conhecimentos, saberes comunitários e maneiras de entender o mundo.
Quanto ao tema da mesa, Catalina concebe as residências como um processo de aprendizagem mútuo, especialmente, entre os artistas e seus anfitriões, muitas vezes em razão do deslocamento geográfico a que os primeiros se dispõem, e da consequente suspensão de suas coordenadas habituais; mas ao que os anfitriões também são em parte levados, em razão desse mesmo contato, convivência ou intercâmbio de coisas mais ou menos visíveis, que lhes possibilitariam uma suspensão semelhante, porém, em sua própria cidade.
Mas a curadora não discute as eventuais relações entre tais residências e os projetos educativos da organização que coordenou, limitando-se a caracterizá-los como processos que ora corriam em paralelo (isto é, de maneira mais ou menos independente um do outro), ora se referenciavam (isto é, como invariavelmente acontece, de modo que as residências e as exposições fossem referidas pelos projetos educativos, e não o contrário); manifestando, além disso, precauções igualmente certas, ao menos discursivamente, quanto às estratégias para se envolver o público, apesar do "ato falho".
Neste ponto, meu desacordo com o que não só Catalina deixa escapar: Como em parte argumentei, no relato sobre a primeira mesa deste Seminário, nem sempre as propostas de incorporação do educativo pela curadoria desinstalam as hierarquias entre uma e outra atividade. Quando Catalina preconiza que não deveria haver uma separação tão grande entre elas, que tais atividades, portanto, deveriam sustentar "um mesmo discurso", ela parece dizer, ainda que por um lapso, que tal discurso não seria outro, senão o da curadoria, uma vez ter dito, ao mesmo tempo, que o "conteúdo educativo se gera a partir da exposição".
Por fim, Catalina enumera alguns projetos artísticos de produção e intercâmbio de conhecimentos não escolarizados, dentre eles, La Escuela Móvil de Saberes y Práctica Social, iniciado por um coletivo colombiano chamado Helena Producciones; projeto que para ela é como uma espécie de residência sem instituição, quem sabe, de desresidenciação.
Nascido das experiências, desde 1998, de aproximação às múltiplas realidades de algumas comunidades, na região centro-oeste do país, o projeto toma corpo a partir de 2005, como um processo investigativo, cada vez mais interdisciplinar e aberto à participação, das práticas e produções culturais populares. Nesse sentido, os integrantes do coletivo chegam a essas comunidades (incluindo-se aí reservas indígenas e quilombos) não para ensinar-lhes qualquer coisa, mas, antes, para lhes oferecer um serviço que elas requerem, ou ainda, ferramentas para que possam expandir seus próprios saberes e compartilhá-los com outras comunidades.
Ao que parece, projetos como La Escula Móvil se assemelham à proposta por Illich (1973, pp. 123 et seq.) das "teias de aprendizagem", que compreendem: o livre acesso a diferentes recursos educacionais, o intercâmbio voluntário de habilidades, encontros automotivados entre pessoas "igualmente perplexas perante os mesmos problemas", e serviços de consultas a educadores em geral, profissionais ou não. Por isso, talvez sua incidência fosse melhor experimentada diante do sistema educacional atualmente instalado e da sociedade escolarizada que lhe corresponde. Afinal, quando não se confronta com o formal, o não-formal ameaça formalizar-se.
"[...] chegamos à conclusão de que a maioria dos homens tem seu direito de aprender cortado pela obrigação de frequentar a escola". Assim, Ivan Illich (p. 17) manifesta, no início dos anos 1970, sua convicção de que o ethos da sociedade, mais do que suas instituições, deveria ser desescolarizado. Sua crítica se endereça à institucionalização dos valores, da imaginação, à transformação de necessidades não materiais em demandas por serviços e certificados, ao controle social da aprendizagem, à cada vez maior incapacidade de as pessoas assumirem sua própria aprendizagem, de exercerem sua própria competência para aprender e instruir-se.
Como se sabe, no Brasil, o Ensino Fundamental é obrigatório. Todos as crianças e jovens, dos 6 aos 14 anos, estão obrigados a frequentar a escola; uma reponsabilidade distribuída entre pais, responsáveis e Estado. Mas segundo a avaliação de Illich (p. 31), neste ponto, inegavelmente atual, "Nem na América do Norte nem na América Latina obtêm os pobres a igualdade através da escolarização obrigatória. [...] Em todo o mundo a escola tem um efeito anti-educacional sobre a sociedade: reconhece-se a escola como a instituição especializada em educação".
Apresentando-se como artista que trabalha muito mais tempo com educação, Guilherme Teixeira delinea percursos que entrecruzam suas atuações e referências em um e outro campo. Assim, um episódio de seu trabalho como educador é creditado como havendo promovido mudanças em seu trabalho como artista; seu encontro com os gifts de Friedrich Fröbel (1782-1852), uma metodologia de alfabetização pré-escolar para as formas, favorável à iniciativa das crianças, reconhece a importância desse educador para a arquitetura moderna de Frank Lloyd Wright (1867-1959), Walter Gropius (1883-1969) e Buckminster Fuller (1895-1983); seu interesse pelo construtivismo e pelo neoplasticismo o conduz a brincadeiras e jogos infantis. Talvez por isso Guilherme não exatamente participe dessa "volta dos artistas para a educação"; não no sentido que se convencionou chamar de educational turn, mais relacionado à incorporação pela arte de práticas discursivas.
Em um de seus trabalhos como artista, por exemplo, apresentado em 2011 durante uma residência no Quebec, e depois remontado no Sacolão das Artes em São Paulo, Guilherme agrega a uma parede diversos retalhos de madeira, construindo com suas formas geométricas uma parede de escalada, que ele chama de parede suprematista. A referência aqui ao movimento de vanguarda russo, pela proposta paródica de se escalar fisicamente uma parede, neste caso, semelhante a uma pintura, sugere uma dessublimação tanto do ideal de elevação espiritual pela arte, quanto do ideal de edificação moral pela educação; talvez principalmente aos que não se dispõem a subir.
O trabalho de Fröbel é decisivo à valorização da brincadeira na educação inicial da criança. A manipulação automotivada de blocos de madeira, central em sua pedagogia, é pensada como a base de processos ulteriores de conceituação e apropriação do mundo. Também Illich propugnava uma "Era de Lazer", em que aprendizagem, trabalho e diversão não estariam alienados um do outro. No trabalho que propôs com Alberto Tembo, a crianças frequentadoras do Sesc Interlagos, chamado Laboratório Comunitário de Aventura e Criatividade, Guilherme mistura noções de jardim da infância, playground e arquitetura provisória, valorizando ao mesmo tempo a ausência de projeto e a prática do risco; momentos em que a infância teria muito a ensinar aos adultos.
Referências
HELENA PRODUCCIONES. Escuela Móvil de Saberes y Práctica Social. Disponível em: <http://www.helenaproducciones.org/escuela_movil_de_saberes.php>, acesso em 10/10/12.
ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas [1970]; tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 1973.