Do seminário ao encontro

Relato geral do 1º Seminário Internacional de Arte e Educação Instituto Inhotim


Por Gilberto Mariotti

 

Quando um seminário é bem sucedido em seus melhores objetivos (a produção é eficiente, os palestrantes interagem, há socialização de trabalhos interessantes e que contribuem para nossa formação), como foi o caso deste 1º Seminário Internacional de Arte e Educação Instituto Inhotim, é que os próprios limites do formato que define qualquer seminário ficam mais evidentes. As palavras seminário e semente têm raízes etimológicas comuns– não por acaso: trata-se de um espaço pensado para que criação e pensamento sejam seminais para outras ações e reflexões. Muitas vezes nos restará a vontade de ter discutido mais alongadamente esta ou aquela apresentação, mas o formato do seminário não prioriza necessariamente a discussão aprofundada. Se isto nos incomoda, devemos então nos questionar sobre as razões desse formato e o que ele nos oferece no que concerne às nossas necessidades de transformação, já quenão parece, enquanto formato fechado,ser capaz de abarcar todo o desejo de produção de diversidade que está presente nas falas ocorridas ao longo destes dois dias. Importante também é questionarmos quanto uma intervenção, como a proposta por Jarbas Lopes, pôde subverter o formato do seminário a ponto de transformá-lo, a partir do segmento de tempo em que esteve alocada, em meio a outras atividades previstas no cronograma. Eu mesmo não tinha grandes expectativas quando ouvi o próprio Jarbas tentando tranquilizar, talvez em busca de adesão, o grupo de jovens com quem vinha trabalhando na oficina que precedeu o seminário:

– Não tem problema, gente. Essa água é limpa.

Acabou embarcando sozinho em uma caixa de madeira (geralmente usada para transporte de obras de arte, agora transformada em jangada), remando com um perfil de alumínio até atravessar todo o lago. Ao se aproximar do edifício suspenso acima da água, ele encara o público por um breve momento e se deita na caixa, boiando por baixo do prédio. 

Começa um jogo de esconde-esconde entre artista e público, o último tentando adivinhar o vão por onde o outro poderia reaparecer. Quando isso acontece, Jarbas está nu, e sobe no corrimão do vão interno anunciando que vai chacoalhar as estruturas. Volta ao corredor, proferindo alto e repetidas vezes a frase “Brumado de abstrações”. Depois se posta ao lado da porta do auditório, com a cabeça e parte do corpo cobertas por uma toalha, segurando na mão um sabonete, enquanto o público toma seus lugares no auditório. 

A presença, durante toda a performance de Jarbas, de um humor peculiar que relativiza o peso da ação, colocando abertamente seu caráter de encenação, não deve nos persuadir a relegar sua escolhas à mera aleatoriedade. “Brumado de abstrações”, dito repetidamente em alto e bom som, ganhava significado no embate do corpo do artista com a arquitetura na qual se movia, de alguma forma errante, solitário entre os cheios e vazios que nos rodeavam, navegando por baixo das edificações, tanto institucionais quanto de pensamento, tateando e fazendo dissiparessestais “brumados”. 

Tampouco devemos nos deixar levar pela descontração de Jarbasao falar aos jovens estudantes sobre sua própria formação (também errante, pode-se dizer), a ponto de entender nela um desinteresse pelo pensamento. O auditório riu quando ele, ao narrar sua dificuldade na relação com a escola, disse que poderia ter seguido a profissão de economista, e de como a economia enquanto ciência tem hoje a mesma função social que a filosofia já exerceu em outros tempos. No entanto, o trabalho de Jarbas vive, entre outras coisas, de uma consciência muito especial do saber econômico, formalizado de um modo em que práticas econômicas e manifestações culturais se veem conectadas.Se há, em algumas das situações propostas por seus trabalhos,uma certa dose deprecariedade, ela funciona de forma no mínimo meticulosa.

 

Trânsito

Uma recorrência percebida em vários momentos do semináriofoi o trânsito de conceitos (na maioria das vezes não nomeados) entre disciplinas ou áreas em diálogo durante estes dias. Dentre tais conceitos, os que mais me interessam são os que reaparecem na esfera da arte razoavelmente reelaborados, mas há muito já trabalhados na área da educação, como um eco. Por exemplo: o conceito de participação ou colaboração. No entanto – e não sugiro aquinenhuma originalidadepor parte de uma ou outra área –,me parece que certos conceitos, ao circularem pela esfera da arte, aparentam maior leveza.Minha dúvida é se essa leveza indica uma conexão maior do pensamento com práticas colaborativas ou se, ao contrário, aponta certa diluição.

Talvez funcione ainda como agravante para esta percepção o fato de que o quotidiano de quem trabalha mais diretamente no mercado de arte geralmente não esteja submisso aos espaços rígidos e procedimentos fixados das instituições às quais entregamos a chamada educação formal. Fica a impressão de que a possibilidade de uma proposição colaborativa e a sistematização demandada por tais instituições são terminantemente excludentes entre si. 

Por exemplo, o posicionamento de Paulo Freire quanto à relação professor-aluno e ensino-aprendizagem parece perpassar, como um suporte oculto, o discurso de Lucia Koch que, pela relação entre os participantes, defende uma postura crítica à apropriação por instituições do trabalho feito junto a comunidades de alguma forma desconectadas do circuito da arte contemporânea com o objetivo de agregar valor social. De modo similar, na narrativa de Janaina Melo, Maria Eugenia Salcedoe Marcilene Ferreira Silva, o significado da ação é conseguido a partir de um lugar colaborativo. E no caso de Lucia há uma estratégia, própria de uma abordagem característica de seu trabalho como artista: a arquitetura éusada como matéria para sua proposição. Mais que isso, ela consegue reverter o espaço arquitetônico em favor de um lugar comum acessível aos participantes.Contudo, algo da densidade e firmeza de Freire vinha exatamente de seu embate direto com a ideologia reinante no sistema escolar a partir de um enfrentamento quotidiano. Este lugar de colaboração só se desdobra quando os propositores podem contar com certa flexibilidade das instituições de que são parceiros?  

Quando, nas falas da tarde do primeiro dia, aparece um ponto de vista que se coloca trabalhando de dentro das ações institucionais, a discussão se volta à potência ou possibilidade efetiva de transformação social acessível ao público, ou ainda de representação da identidade cultural dos participantes. Daí a relevância da resposta de Marcus Faustini em que diversidade não é o mesmo que diferença. 

Mas há outra fala de Faustini que, colocada próxima à questão do trânsito entre áreas, ganha mais destaque. Perguntado sobre o porquê da denominação de seu projeto como arte, respondeu: “Quero ser chamado de arte contemporânea porque aqui que estão as melhores carnes”.

 

Aproximação

Eungie Joo fala de sua experiência no New Museum a partir, justamente, da lacuna que percebia entre os educadores de arte do museu e os professores da escola.Tambémneste caso aproposição de um lugar colaborativo parece ser um valor, a partirdo acolhimento, pelo núcleo educativo do museu (meio da arte) de uma discussão existente na esfera política. Seu relato mostra como, no curso de proposições feitas no New Museum, os professores passaram a associar a possibilidade de uma experiência transformadora ao espaço do museu, o que é sem duvida um grande feito. Minha experiência com formação de professores no espaço museológico me leva a pensar mais especificamente nossa situação: seria possível pensarmos numa intervenção no tempo reificado da escola a partir do museu?

Mônica Hoff aponta como questão incontornável para se pensar o papel da Bienal doMercosul a contraposição entre ocaráter de permanência do educativo e a periodicidade da exposição.Explica como Luiz Camnitzer instituiu o cargo de curador pedagógico e trouxe para a Bienal a discussão do que ficou conhecido como educationalturn, propondo uma visão de curadoria como prática educativa. Para Mônica, a Bienal é uma instituição de formação que engloba, entre outras coisas, o evento cultural exposição. Esta visão é refletida pela diversidade de estratégias das proposições apresentadas (como Canteiro de obras ePerambulações noturnas) e de públicos participantes.


A fala de Janaina Melo e Maria Eugenia Salcedonão pretendeu narrar cada ação dos educadores, optando por ser portadora de perguntas e percepções sobre o processo. Este diferencial ainda demonstrou outro ganho: o processo era pensado de dentro para fora e não descrito de um lugar meramente observatório.

Luiz Vergara realçou os processos de formação dos próprios formadores, como Mônica, e apontou mais especificamente conceitos de várias disciplinas ou áreas do saber em conversa com a prática educativa, propondo o reconhecimento de autores como Paulo Freire, Milton Santos e Augusto Boal.Uma das principais ideias das falas tanto deMônica quanto deLuizé a valorização das estratégias da arte como possibilidade de mediação e potencialização do encontro/aprendizado. 

Mas, para além da riqueza das situações e reflexões, a pergunta retorna com mais força: como intervir no sistema? Mônica vê na escola tudo que não é conversa nem encontro. “Na Bienal, tentamos criar esse espaço de liberdade, mobilidade”. Mas é possível (ou verossímil) uma liberdade que não transforme inclusive nosso sistema educacional? Caio Honorato, um de nossos relatores, pergunta: “Que momento é esse em que a mediação não mais precisa da exposição?” Ao que Mônica responde: “É o momento do encontro. A Casa M era um espaço vivo, e foi muito maior que a Bienal. Sempre me pergunto isso: por que fazer grande? Por que a escala não pode ser de 1x1?”.

 

Mediação

O termo mediação já foi suficientemente questionado? A mediação só não será instrumentalizada se o meio não exercer meramente o papel de passagem, se ele for pensado também como lugar de intervenção. Algumas destas iniciativas e propostas educativas independentes se fundam em potência estética quando apropriadas de estratégias da arte. Mas, se esvaziadas de possibilidade política, jogarão um jogo limitado. Será que não existem iniciativas de transformação pensadas para o interior da escola? Por que essas iniciativas não tem força para transformar o sistema em conversa com suas práticas? O sistema escolar aparece em algumas falas apenas como referência negativa. A fixação desta concepção – mais do que visão critica – não representaria uma exclusão em si e, portanto,uma contradição em termos, no que se refere à mediação?

 

Encontro

O seminário é aberto e encerrado por falas que tem a prática artística como tema principal, mas a participação de Guilherme Teixeira aproxima o lugar do educador do artista residente. Para ele, cada projeto educativo obedece ao mesmo princípio de intervenção de uma residência. Uma inteligência própria de educador se mostra quando, ao narrar uma experiência que teve com seus alunos no CEU (um momento em que a demanda social presente no sistema educacional não é impedimento para uma proposição aberta à inteligência dos alunos da rede municipal), oferece à sua plateia de agora uma referência teórica que pode significar estudos futuros, a socialização de um pensamento seminal: trata-se do trabalho de Fröbel. Descrever sua proposta aos alunos, aqui, é o de menos; a chave do exemplo, no entanto, está nas conexões surgidas a partir daí: “Só depois que fiz essa experiência com os alunos é que percebi as relações entre os construtivistas e esse autor”.

Este 1º Seminário Internacional de Arte e Educação de Inhotim já nasceu pedindo mais tempo para a conversa solta entre os participantes, talvez um tempo que possibilitasse até mesmo a experiência direta com as proposições narradas, o que ficou reservado para outros momentos. De qualquer modo, os relatos críticos escritos por nossos colaboradores são frutos desta vivência, e nos dão prova de seu caráter seminal. Esperamos que seus posicionamentos contribuam para se pensar um próximo seminário, o “2º Encontro Internacional de Arte e Educação Instituto Inhotim”.