De Freire a Rancière: GClass

Relato sobre a quarta mesa do primeiro Seminário Internacional de Arte e Educação do Instituto Inhotim, intitulada "New Museum: GClass", com a curadora Eungie Joo, em 25/08/12.

Por Christina Fornaciari

 

Ao longo de toda a fala de Eungie Joo acerca do GClass, o principal programa educativo do New Museum localizado na cidade de Nova York, percebemos a presença de um entendimento da educação no seu sentido mais emancipatório. O projeto, que atende estudantes de ensino médio, professores e público em geral, está longe de buscar ensinar a gostar de arte contemporânea.

Surpreendentemente, o programa tem como foco central tornar acessível o raciocínio conceitual e o modo como idéias bastante complexas e interdisciplinares podem ser comunicadas no mundo de hoje.

Joo é enfática ao afirmar que não está preocupada em fazer com que os jovens que passem por ali se tornem artistas, e também é contrária à concepção de um educativo em arte que se limite ao “arts and crafts” ou à simples mediação. A atitude do museu é construída no sentido de levar as estratégias de produção de pensamento, peculiares dentro da arte contemporânea, para os âmbitos da sala de aula, da vida e/ou da rua.

Seu discurso tangencia aquele de Jacques Rancière, em seu célebre texto “O mestre ignorante: cinco lições para a emancipação intelectual”, ou mesmo a famosa “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire. Devido ao modo como propõe inverter a lógica do sistema explicador, desenvolvendo um outro método de ensino/aprendizagem, não mais baseado na explicação, mas sim na emancipação. Para Joo, a educação somente pode se tornar efetiva pela vontade e pelo próprio desejo de aprender ou de ensinar a aprender.

Nesse sentido, descreve que ao realizar os programas de residências artísticas no GClass, convida artistas não pela genialidade de sua produção, mas porque o próprio artista já tenha uma abordagem pedagógica em seu trabalho. Deve haver sempre algo na própria prática do artista residente que o motive a trabalhar no contexto de educação.

Esta seria uma tentativa de escapar ao problema dos chamados “marginalizados”, comum nas instituições dos EUA (e que também acontece no Brasil, respeitadas as diferenças). São artistas asiáticos, afro-americanos, imigrantes que, tendo sua produção barrada no circuito de arte dos EUA, são colocados em programas educacionais, quando na verdade, eles não queriam estar ali – e na maioria das vezes sequer receberam uma educação em arte contemporânea. Joo explica como tal situação reafirma a marginalização desses artistas, e acaba por criar mais um problema para eles e também para o próprio público, receptor final nesta cadeia de ações carregadas de desajustes.

Aqui, novamente, as palavras de Joo encontram eco nas de Paulo Freire e seu conceito de opressor e oprimido no âmbito da educação. Freire aponta que o oprimido reproduz os processos de injustiça que o opressor lhe inflige, gerando um ciclo vicioso, que apenas pode ser quebrado através de uma educação pautada na liberdade (emancipação) do indivíduo, e não em sua obediência ao que lhe é imposto.

Vale recontar o episódio narrado por Joo, ocorrido em 2009 durante a residência com o artista libanês Tarek Atoui. Ele já havia trabalhado por dois anos com estudantes de campos de refugiados no oriente médio, e por isso mesmo, já trazia em sua prática uma carga de emancipação política. Como o trabalho de Atoui perpassa a construção de paisagens sonoras, a idéia do projeto “Empty Cans” era trabalhar conceitos de identidade e voz, em workshops de vídeo e som com adolescentes alunos de escolas públicas de Nova York. Esses jovens saíram às ruas coletando material audiovisual que os interessassem, e em seguida, usaram essas amostras para alimentar um equipamento tecnológico, culminando numa performance com edição do material ao vivo, apresentada no New Museum.

Ao tomarem para si a autoria do projeto e a responsabilidade de produzir e tratar todas as imagens e sons usados no trabalho, os alunos tiveram que cavar suas próprias capacidades e despertar seus próprios interesses. Assim, acabam por conhecerem a si mesmos, descobrindo suas próprias identidades e vozes. Esse processo em si é bastante característico do sistema de educação defendido por Freire e Rancière, onde o aprendizado deve visar a formação de indivíduos autônomos, capazes de trilhar seus próprios caminhos e dar rumo à própria educação.

Isso se reflete tanto dentro da sala de aula, quanto na vida, em decisões como a escolha da carreira, por exemplo. E, de fato, o que Joo considera ter sido o mais interessante nesta experiência foi que, no final da performance, ao ser questionada sobre o que havia aprendido integrando um projeto de arte, a jovem participante respondeu: aprendi que quero ser engenheira!

Este episódio marca o papel fundamental do GClass ao inverter a lógica perversa que preconiza a submissão do aluno face ao mestre. Tanto Freire, como Ranciére, acreditam que este tipo de sistema educativo perpetue as desigualdades, pois ao transpor esta lógica do mais capaz e do menos capaz para o todo social, se poderia justificar a dominação de uns por outros.

No entanto, a resposta da garota ao finalizar um projeto de arte, descobrindo-se com desejo de ser engenheira, é prova de que o processo educativo funcionou, no sentido emancipatório defendido por ambos Freire e Rancière. Ou seja, para além de uma mera absorção de ensinamentos numa fórmula hierarquizada, o processo narrado por Joo revela o acontecimento da educação através da ativação de mecanismos de auto-construção pessoal do sujeito.

Uma educação cuja influência é bem mais profunda: ela toca antes o interior do indivíduo. Desperta-o para reconhecer e transformar os padrões sociais de representação, comunicação e interpretação, influenciando significativamente a forma como esse indivíduo se posiciona diante da realidade.

Assim como esse, vários outros episódios narrados por Joo poderiam ser citados aqui como exemplos de experiência bem sucedidas em arte-educação. Não sem motivo, saímos da palestra cheios de esperança e ansiosos pelo futuro. Para nossa sorte, a curadora nos informa que está trabalhando em uma nova publicação, trilíngue, onde pretende reunir diversos relatos desse tipo, numa espécie de guia pedagógico para instituições de arte.

Além disso, Eungie Joo foi recentemente nomeada Diretora de Arte e Programação Cultural do Instituto Inhotim, localizado na região metropolitana de Belo Horizonte, onde aplicará sua experiência em iniciativas que buscam na prática artística, curatorial e institucional possibilitar ao grande público vivências em arte-educação.

Ao ser questionada sobre o prognóstico das atividades que pretende realizar no Brasil, Eungie Joo afirma que deseja continuar a explorar a educação pelo ponto de vista deste tipo de ações emancipatórias, sempre buscando se ligar à comunidade que a rodeia. Outra observação que nos parece interessante é no que tange a sua atuação interna na instituição. Joo almeja que setores como o administrativo e a comunicação também sejam tocados pelos projetos de arte educação. Sua fala sinaliza uma abordagem educacional não-hierarquizada, que positivamente pressupõe que todos podem aprender uns com os outros.

 

Referências:
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Editora Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1987.
RANCIÈRE, Jacques.O mestre ignorante: Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.