Relato Corpo e Educação

por Alexandra Itacarambi

O corpo que dá o gatilho,

o corpo que desencadeia reações na memória e mente. (Sangeeta Isvaran)

 

Quando novas formas de relação entre indivíduos são propostas, cria-se um ambiente propício para que ações criativas surjam em resposta aos desafios.

Bakhtin mostra que ao percebermos o outro, ampliamos e modificamos a percepção da nossa identidade. Todas as vivências registradas pelo campo sensorial, através do corpo, contribuem para a construção desta identidade. Para Bakhtin: “...a forma concreta da vivência real do homem emana de uma correlação entre as categorias representativas do eu e do outro; as formas do eu através das quais sou o único a vivenciar-me se distinguem fundamentalmente das formas do outro através das quais vivencio a todos os outros sem exceção”1

Foram convidados para a mesa de discussão “Corpo e Educação” a artista Sangeeta Isvaran (Chennai/Índia) que generosamente apresenta seu trabalho de educação através da arte, o dramaturgo Sérgio de Carvalho (São Paulo), pautado para discorrer sobre o pensamento e obra de Augusto Boal (1931-2009) e o educador Braz Nogueira (São Paulo), que enfoca sua fala na experiência de implantação da “escola sem muros”, na sua atuação como diretor da EMEF Presidente Campos Salles.

O que tem em comuns estes três contextos de atuação tão diferenciados? Os três profissionais apresentam o rompimento com formas tradicionais de ver a educação, criando formas de atuação específicas e modificando a relação entre indivíduos, com o OUTRO.

Se levarmos em conta que é no corpo que nos transformamos e que é por meio do corpo que nós percebemos o mundo ao nosso redor, poderemos acompanhar as experiências relatadas aqui, e refletir sobre como o corpo ajuda a nos adaptarmos à diversidade de situações com as quais nos deparamos. E também em como modificar as formas de ensino para quebrar hábitos e estabelecer novas relações com o nosso corpo e com o outro.

 

Em conversa com a tradição

 

Aangikam Bhuvanam Yasya

Vaachikam sarva vaangmayam

Aahaaryam chandra taaraadi

Tam numaha

Saatvikam Sivam*

*Obra indiana escrita no século XIII por Nandikesvara  

(Whose Body is the entire universe [with form and the formless]

Whose Speech is all sound and non-sound

Whose Adornments are the moon and the stars

Whose Soul is infinite beauty and peace

To you, Siva, I bow)

 

Assim começa o “discurso artístico” de Sangeeta Isvaran, pesquisadora dedicada à performance, dança e teatro, compartilhando suas experiências ora por meio de seu corpo, sua dança, canto e poesia, ora pela palavra, por frases enfáticas sobre educação, comunicação e política.

“Na índia muitas das nossas formas de arte tradicional lidam com educação. A educação nada mais é do que a comunicação das informações, que são necessárias para a sobrevida, não apenas a sobrevida física, mas emocional, intelectual, a sobrevida da comunidade”.

Como ferramenta de trabalho, Sangeeta usa técnicas retiradas do teatro-dança tradicional indiano. A seu ver, o que as tradições ainda têm a oferecer, além das lindas formas e estruturas, são símbolos e signos. Dá-nos como exemplo uma demonstração artística que traduzimos assim: como as mulheres se apresentam nos permitem uma leitura de sinais e símbolos que são lidos coletivamente e transcendem uma dada cultura.

Mais do que usar a tradição, Sangeeta preocupa-se em como a arte pode suprir algumas carências (“tento examinar o que o sistema não tem”) e em encontrar formas para dar um novo contexto às tradições; ou seja, reviver a experiência de forma contemporânea e própria, através do teatro-dança tradicional.

A artista aponta que o governo muitas vezes patrocina o analfabetismo sexual com a falta de informação. Seu trabalho educativo consiste em trazer a informação através da dança. Quando dançamos, ativamos o corpo e lidamos com coisas com a qual não estamos acostumados.

A técnica de isolamento de algumas partes do corpo (cabeça, mãos, pés, ombros, olhos), por exemplo, é utilizada pela artista no trabalho com pessoas em situações de risco e em áreas conflituosas do mundo contemporâneo.

As técnicas que usam máscaras são ferramentas próprias para as comunidades que tem uma disfunção entre mulheres e homens. Com a máscara, a linguagem corporal muda, se transforma, possibilitando a liberdade de expressão ao vivenciar um personagem. Existem técnicas que trabalham o poder das cores. A cor irradia emoção e aspectos subjetivos. Cada máscara possui um código que vai para além das culturas.

Também utiliza épicos para discutir determinados assuntos através de exercícios cênicos. Criando vivências onde os jovens assumem papéis abstratos, como o papel de “chama” onde o jovem tem o poder de decidir em queimar ou não queimar determinadas pessoas julgando seu comportamento. A artista conta que este posicionamento inicia um debate imediato entre os participantes e que episódios dramáticos permitem que os jovens dêem suas opiniões. O fato do corpo executar os movimentos possibilita que eles de fato vivenciem o drama.

Estes e outros épicos possibilitam reviver a experiência de forma atual e pessoal, mas, sobretudo, lhes confere o direito de escolha, uma das questões apontada sensivelmente por Sangeeta como das mais importantes para a formação da identidade.

 

Trânsito livre entre palco e platéia

 

Para Sérgio de Carvalho, o trabalho do dramaturgo Augusto Boal é bastante controverso, sua obra é e não é teatro, portanto reside nesta dialética.

Advindo de uma politização intensa e uma prática teatral intimista e realista do teatro arena, Boal funda o Seminário de Dramaturgia, com o objetivo de formar uma pedagogia da dramaturgia brasileira, uma dinâmica pedagógica nova. Na avaliação de Sérgio, esta experiência foi extremamente transformadora, pois influenciou toda uma geração de dramaturgos.

Um marco foi a peça Eles não usam black tie, onde a força era da ordem do assunto. “A forma era mais ou menos conservadora, mas o assunto era explosivo. Aquilo deslocava a tradição, era um assunto estrangeiro.”

Propõe assim um tipo de dramaturgia nova para um novo tipo de atuação e corpo. Para o artista, não basta propor temáticas na contra mão, mas é necessário processos de trabalho diferenciados, inspirado na experiência laboratorial, potencializando a criação coletiva e o trânsito entre o palco e a platéia.

Em sua trajetória profissional que vai do trabalho no Teatro de Arena ao projeto do Teatro do Oprimido, Boal formula uma proposta trans-estética do teatro, que se oferece como símbolo estético da possibilidade de ação humana mais livre e autônoma.

A sua obra é um grande conjunto de experimentos e exercícios para que esta relação se ative, possa ser modificada e permita modificar a relação com o outro, seja através de um conjunto de técnicas (uma técnica que ficou famosa foi o sistema coringa da série “Arena conta”), ou através das formas que ativem a relação com o espectador.

Durante a ditadura desenvolve o Teatro do Oprimido, marcando um campo inédito dos deslocamentos, a relação palco-platéia é subvertida. Um campo novo de experiências no teatro, saindo do âmbito institucional do teatro. Saiu dos temas convencionais, dos processos convencionais, das formas convencionais do teatro e passou a procurar uma nova inserção do sistema produtivo.

Avesso ao pensamento dominante, Boal usa a arte como ferramenta contra a banalização do sensível. A arte mostra que a dimensão sensível é também de conhecimento, existe um conhecimento que é do corpo, e isto se constitui como experiência, como um campo de aprendizado. Para Boal, somos todos artistas.

Sem paredes

A implementação de um projeto educativo inspirado na escola da Ponte de Portugal só começou a surtir efeito com a “quebra da pedagogia da maçaneta”, ou seja, quando as paredes físicas foram tiradas e as doze salas de aula se transformaram em quatro grandes salões.

Braz Nogueira nos conta sua experiência na escola municipal Presidente Campos Salles, em Heliópolis - SP. Para mudar o sistema de ensino naquela escola teve que mudar a relação da escola com a comunidade. Ele enfatiza que precisamos levar em conta que a escola não é uma realidade paralela, a escola é centro da comunidade, um lugar de vida.

A escola sem paredes modificou as relações de trabalho na instituição: o trabalho em equipe e o planejamento passaram a ser fundamentais para as dinâmicas entre professores e alunos. As escolhas tornaram-se coletivas, assim como as responsabilidades.

Para Braz, duas idéias são fundamentais, quase premissas de seu trabalho: tudo passa pela educação, ou seja, a educação é uma tarefa de toda a sociedade, em todos os âmbitos; e a escola é o centro de liderança na comunidade na qual ela está inserida.

Neste sentido, Braz enfatiza que a escola tem que sair de dentro da escola, ela não se encerra em si. Quando a escola aproxima-se dos problemas da comunidade, a comunidade se aproxima dos problemas da escola. A responsabilidade é de mão dupla.

As disciplinas saem das salas e a escola sai de seus muros, as quebras de barreiras físicas modificaram a relação com o outro e com o coletivo, alteraram as formas de ver o ensino e valorizam-se as aprendizagens significativas numa perspectiva holística do conhecimento.

Assim como a educação, a arte tem que estar presente em todos os lugares, dentro ou fora da escola. O reconhecimento de que a arte não se resume ao aprendizado acadêmico, implica em considerar que todas as formas de expressões humanas contribuem para a constituição das subjetividades.

 

Novo ponto de vista

 

Sangeeta, Braz e Boal (pela fala de Sérgio de Carvalho) possuem a compreensão de que seus trabalhos só podem acontecer se o processo for modificado, e conseqüentemente, modificar o outro.

É o rompimento de paredes físicas e abstratas; é a criação de um processo de trabalho novo; é assumir que não se produz forma nova, se não trabalhamos de outro jeito; é aceitar que o conhecimento baseado em formas de dança tem valor e nos ajudam a encontrar soluções alternativas para determinadas questões, conflituosas ou omissas; é usar as tradições como ferramenta num novo contexto.

Discutir sobre Corpo e Educação é falar sobre nossa constante busca de nos relacionarmos com o outro. Desejamos alcançar o outro no universo da cultura. É através do corpo que expandimos “nossa vivência para além dos limites estabelecidos por nossa individualidade, acrescentando a ela a visão e a experiência alheias, de um ponto de vista novo, de outro modo inatingível.” 2

 

1 BAKHTIN, Mikhail, Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1988

2 COSTA, Maria Cristina Castilho. Ficção, comunicação e mídias. São Paulo: SENAC, 2002, p. 11