Lado a lado num acontecer público

por Giuliano Tierno de Siqueira

Era o primeiro dia do Seminário Internacional de Arte, Política e Educação, promovido pelo Projeto Educativo da 29ª Bienal Internacional das Artes de São Paulo. O encontro começou com a fala dos curadores-chefes Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos, e na sequência com as palavras da curadora do Projeto Educativo Stela Barbieri. Agnaldo falou sobre a relação entre arte e política nessa edição da bienal enfatizando que o binômio está presidido pelo signo da poesia, assim como nos dá a ler o verso do poeta Jorge de Lima “há sempre um copo de mar para um homem navegar”.

Agnaldo argumentou que o projeto educativo dessa edição é a pedra basilar de um movimento robusto compatível com as necessidades da realidade brasileira. “Queremos trazer a arte para o centro do debate fundamental para que a sociedade brasileira possa pensar-se e esclarecer aspectos nebulosos”. Ainda sublinhou que “uma bienal é uma instituição educativa por excelência, pois pode fertilizar a auto-fantasia daqueles que se imbricam no encontro com a imaginação, parafraseando Ítalo Calvino, 'lugar onde chove dentro'. Num mundo permeado de respostas é preciso que alguém plante a dúvida”. O educativo “como o lugar de desafio ao 'coro dos contentes', como diria Torquato Neto”, completou. Por fim, apresentou a diferenciação entre arte e cultura proposta pelo cineasta Jean-Luc Godard (1930-) “cultura é norma, arte é exceção”.

Moacir dos Anjos iniciou sua fala com a pergunta: “o que vemos de potência no gesto artístico?”. “O que essa bienal pretende é assumir a política da arte, olhar como nunca tínhamos olhado ainda, entrevendo outras possibilidades para o mundo. Arte não traz respostas para o mundo, ela pode acrescentar e fazer perguntas de outros modos, pois a arte nos faz desaprender as convenções que nos moldam e limitam nossa compreensão do mundo. É assim que a arte nos educa para um mundo que não é esse, é um outro mundo, mas ainda sabemos pouco dele. Algo que pode ser inusitado, construído. A arte nos abre para o que não está dado, o campo da imaginação”.

Stela Barbieri expôs de maneira breve os oito eixos que compreendem as ações do Projeto Educativo, mostrando a evolução do trabalho desde o instante em que ela começou a desenhar o projeto indo ao encontro das pessoas para conversar e expô-lo em busca de parcerias e trocas. Stela enfatizou as ações educativas desde o momento em que as formações foram adensando-se a partir de deslocamentos físicos e de pensamentos, aumentando as possibilidades de reinventar outros jeitos de ver e pensar a vida e a arte tanto com professores quanto com instituições parceiras.

Dadas essas primeiras palavras, formou-se a mesa de conversa sobre o tema da noite: Experiência e Educação. Na mesa estavam: Jorge Larrosa, educador e pesquisador, professor de Filosofia da Educação na Universidade de Barcelona; Jaílson de Souza e Silva, geógrafo, professor da Universidade Federal Fluminense, fundador e coordenador do Observatório de Favelas, no Rio de Janeiro; e a mediação ficou por conta de Mila Chiovatto, educadora, coordenadora da Ação Educativa da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Peter Pál Pelbart não pode comparecer por motivos pessoais de saúde. Três presenças e uma ausência que compuseram a mesa de maneira a fazer daquela noite um experimento de ideias e muitas palavras dadas a pensar lado a lado, embora separadas e com alguma dificuldade de serem misturas entre as partes que compunham a mesa.

Mila abriu a conversa pensando a experiência com algumas perguntas: “o que a palavra experiência significa ou o que ela pode provocar frente à arte? Qual a sua dimensão política? Como é que pode se dar uma experiência educativa em arte?”. Assim, dando a palavra a Jorge Larrosa, o fio começou a ser puxado para que uma teia de pensamentos pudesse ser cosida pela platéia ali presente.

A fala de Larrosa estava centrada no cotejamento das “estranhas tribos humanas” em torno da palavra Arte. Seriam quatro tribos com suas especificidades: os sábios; os professores; os críticos; e, os mediadores ou arte-educadores.

Para o palestrante, os sábios, são os “símbolos da humanidade”, são os detentores do conhecimento de todo o universo e muito mais. Os professores, são os “peritos”, especialistas com “curiosidades em determinadas obras”, trazem informações precisas e detalhadas e são também conhecidos como os homens-pesquisadores. Os críticos, são os que “certificam o valor da arte”, são os portadores da informação, detém um conhecimento que é transitório e atual, são eles que constroem a “atualidade artística”, têm a arte do jornalista, estão sempre bem informados, são fundamentais nos tempos que correm, cuja natureza é correr e correr, pois estão ligados às tendências e ao invento próprio de sua função: os catálogos de arte. Por último, os mediadores, ou os arte-educadores, que regulam os fluxos entre as instituições artísticas e as educativas.

Em tom irônico o professor descansou seu pensamento nessa última tribo: os mediadores. Questionando qual o saber próprio dos mediadores? Larrosa apresentou duas possíveis respostas comuns: saber sobre arte e saber sobre os visitantes, ambas respostas que partem do ponto de vista da recepção da arte. O que estava sendo pensado era um mediador e um espectador ativo frente a obra. Nessa tese a obra está dotada de uma força e o espectador de sua receptividade. Uma ideia de raiz platônica em que a arte maximiza a beleza e minimiza os perigos envoltos em sua presentificação. É uma certa fé na arte, porque só essa fé poderia justificar a sua existência. Daí a necessidade de dinamizar a força do espectador de onde surgirá os efeitos sociais e políticos por meio de dispositivos pedagógicos. Aqui nasceria o que Larrosa chamou de correspondência entre as características da obra e os efeitos no espectador. Esse pensamento de raiz platônica teria trazido uma certa continuidade entre a causa e o efeito na produção artística e dado origem a uma ideia de que a arte pode nos ensinar alguma coisa, subordinando a potência do espectador à potência da obra de arte, uma espécie de mecanismo de criação de desigualdades entre potências, de sujeição de potência para potência.

Acho que esse é o ponto que se apresenta como questão diante do próprio circuito das artes e das possíveis aspirações de projetos educativos frente à obra de arte: o que a Arte pode ensinar ao sujeito frente à sua potência? Não seria o poder de ensinar que depositamos na Arte o movimento que gera sujeição entre potências, desigualdades?

A partir da apresentação dessa tese, Larrosa oferece uma espécie de dispositivo para “furar” a produção contínua de desigualdades entre sujeitos, o que ele chama de Pequeno Instrumento Pedagógico de Uso Múltiplo, cujo pressuposto é a hipótese da igualdade. Uma hipótese que terá que ser verificada. Em tom bem humorado o palestrante diz: “Senhores, todos somos iguais, e agora? O que teremos que fazer ao supormos a igualdade?” E assim, colocando-nos, todos os ouvintes ali presentes, diante da hipótese da ação que nasce da igualdade pus-me a pensar: “primeiro teremos que considerar a potência que o espectador já tem e não a que deveria ter, a potência de sentir, de falar e de pensar. O espectador, portanto, sente e pensa por si mesmo e o pensar, o sentir e o dizer o que vive converte-se também em signos próprios gerados a partir de seu mundo de coisas”.

Esse será o questionamento central à tese de que a obra pretende que sejamos mais. Arte, dentro da hipótese apresentada é apenas o acontecer de uma determinada experiência. De qualquer experiência. Portanto, o que quer o dispositivo proposto por Larrosa é justamente dissociar a causa do efeito, trata-se de questionar a continuidade entre causa e efeito, interromper a força direta entre causa e efeito. Construir em torno da obra a cena da igualdade. Talvez o caminho para o mediador seja apenas mostrar a obra e reiterar “E você o que vê? E você o que pensa? E você o que sente?”. Só assim a obra não se dirigirá a um público e sim a um acontecimento público. Algo comum porque se sustenta entre eles e será cada vez uma experiência singular. O espaço público de fato se faz, pois o público será entendido nessa acepção como o espaço em que a liberdade encontra o seu lugar. A obra de arte não produzirá sujeitos, mas sim mundos, o mundo é algo que está entre nós todos. Portanto, o que Larrosa nos apresenta é um dispositivo de dissenso e não de consenso. A arte pode ser qualquer coisa sem função, sem intenção, pois não se dirige a um público, mas a um acontecimento público, como seres anônimos e indeterminados. É o lugar de todos em que qualquer coisa pode nos acontecer. Ninguém é prolongação de outrem.

O palestrante termina por pensar a repolitização da arte a partir da vontade que se tem que a a mesma responda a uma certa dominação, no nosso caso, da situação atual, do que podemos chamar de política econômica. Apresenta-nos uma incerteza ao binômio arte e política: a apresentação de uma cena heterogênea que se forma diante da Arte com A maiúsculo. Em primeiro lugar, por ter que se definir o que é arte e o que não é arte; em segundo lugar, quem são os produtores de arte e quem são os espectadores de arte; e, em terceiro lugar, quais são os lugares da arte e quais não são os lugares da arte. Será justamente diante dessa cena heterogênea, dessa cena de desigualdades que se expandirá a tribo dos espectadores: aquela tribo de aventureiros que sabe que não pode pensar, sentir e dizer sozinho o fazer em arte. Portanto, Larrosa nos dá a pensar: qual a dimensão política desse tipo de cena criada diante da Arte?

Jaílson (www.observatoriodefavelas.com.br) iniciou sua fala a partir do lugar em que pensa a cidade: “penso a cidade a partir de favelas”, e continuou por deslocar conceitos cristalizados no senso comum acerca do modo de entender as periferias. Para Jaílson não existe periferia e sim diferentes centralidades. Em seu trabalho no Observatório de Favelas, sua principal meta é trabalhar sobre as representações visuais de favela, sobretudo relativas à precariedade, e romper com elas. A fala do palestrante começou por questionar a hierarquização estabelecida nas relações sociais, “estamos acostumados a pensar o garoto da favela como o sujeito que precisa ser civilizado a partir de graus de incivilidade dos pobres: congnitivo, ético e estético”. Para ele essa forma de pensar está baseada numa ideia de que é preciso desumanizar o outro para civilizá-lo.

Jaílson descreveu inúmeras ações promovidas pelo Observatório de Favelas, citou um caso de um menino de nome Cadu e suas conquistas pessoais a partir do investimento da ONG e do poder público em suas potencialidades. Ao ouvir sua narrativa observei, do lugar em que ouvia, que em sua fala havia uma ideia de heroísmo por parte do menino diante das dificuldades encontradas no cotidiano da favela. “Tenho muito orgulho de Cadu”, completou. Essa afirmação deu-me a pensar no paradoxo gerado em sua fala: combater as hierarquias propondo novas hierarquias a partir do mesmo discurso civilizatório que se combate, pois Cadu “venceu” porque foi civilizado.

Em vários momentos o palestrante transitava - na descrição de suas ações empreendidas em sua função no Observatório de Favelas e no poder público do Rio de Janeiro - entre a ruptura com as hierarquias que excluem os sujeitos e entre uma espécie de conservação dessas mesmas hierarquias criticadas, explicitadas em falas como “o que queremos com nossas ações são sujeitos cada vez mais no exercício pleno de sua humanidade”. Uma pergunta que nascia desses relatos, pensados lado a lado com a fala do professor Jorge Larrosa era: “de qual humanidade se está falando? Se estou propondo-me a combater a hierarquização entre os sujeitos, ao querer do menino que ele tenha acesso ao que eu condeno como civilidade de uma determinada centralidade não estou automaticamente propondo uma hierarquia de valores e por consequência civilizando esse sujeito? Não estaria eu, no ato de saber a priori o que é o exercício pleno de sua humanidade, extraindo-lhe a possibilidade de deixar existir a forma pública e livre de ser sujeito naquela centralidade comumente denominada favela?”.

As falas de Larrosa e de Jaílson não atravessaram-se entre si por nenhum instante. Os dois permaneceram em suas formas de sentir, pensar e dizer. A todo o momento era iminente as contraposições, o conflito, a dissonância explícita: tudo não passou de latência. De um lado uma tese que nascia do espaço filosófico, de outro lado o relato de uma experiência em processo de reflexão, pois o lugar do narrador ainda era o daquele que estava vivendo a experiência, não havia a totalidade do pensamento, o parar e verificar todo percurso vivido. Era uma tentativa de dizer ainda caminhando.

Para mim: uma tese e uma antítese apresentada diante de todos nós ali presentes. Um livre exercício de sínteses singulares por parte dos ouvintes. A princípio, como relator desse encontro, pensei ter sido ruim não ter havido o embate explícito entre aqueles dois universos: a reflexão teórica, a partir de uma tese filosófica complexa acerca da igualdade entre os sujeitos em torno da Arte, no caso de Larrosa; e o relato, de Jaílson, de uma experiência em meio à complexidade de ações pragmáticas em comunidades cariocas, cujo sujeito atuante combate teoricamente uma prática da produção da mesma desigualdade proposta por Larrosa, mas está impelido, por demandas cujos dispositivos são implacáveis, a dar continuidade à relação entre causa e efeito e à reprodução de discursos condicionados pela ordem instituída.

Lado a lado, Larrosa e Jaílson, na dança entre jeitos distintos de dizer suas palavras, deram-nos o privilégio de fazermos uma síntese de acordo com nossas vivências de sentir, pensar e dizer as experiências em formação. Ao meu modo de sentir, dizer e pensar aquela noite, Larrosa nos distanciou do cotidiano pragmático para pensarmos um mundo outro, um mundo público de exercício de liberdade, cuja tese está centrada na igualdade como pressuposto de existência. Jaílson em sua fala nos devolveu ao mundo que Larrosa havia nos afastado, ao mundo articulado por dispositivos de condicionamentos introjetados em que todos estamos envolvidos. Entendo que foi essa ida e vinda, a grande contribuição de uma noite de muitos dizeres, diversos sentires e, quiçá, múltiplos pensares.