Relato da palestra - O museu e a rua: a museificação dos centros urbanos
Aproveitando o formato de relato-crítico, proposto pelo Fórum Permanente, além de relatar o falado pelos palestrantes, farei, como uma proposta crítica, um análise das implicações do léxico utilizado nas políticas culturais e urbanísticas, temas que estruturaram a palestra. Na parte inicial do relato, tentarei dar conta da fala do Manuel, tarefa difícil, pois o antropólogo captou nossa atenção com sua maneira de se expressar, de fazer referências e de articular pensamento; sua fala foi uma demonstração de coerência e domínio da linguagem, me atreveria a dizer que foi “performativa”. Aproveitarei este meio (internet) e a plataforma do Fórum Permanente para encarar a dificuldade de fazer uma tradução dessa experiência performática, fazendo hiperligações entre o arquivo do Forum e outros sites, criando uma rede de informação que permita um fluxo equivalente ao criado pelo Manuel. Na segunda parte proponho uma análise da metáfora da vida e da morte utilizada nos exemplos de Manuel e de Raquel, referentes à museificação dos centros urbanos. É do meu interesse dar ênfase a essa metáfora, já que considero que tem sérias implicações no entendimento das relações entre cidade e da cultura, porém, deixarei abertas algumas questões referentes à metáfora da vida e da morte.
I
Manuel parte da impossibilidade de dar uma definição fechada ao termo `cultura´. Apesar da “inocência” que este conceito aparenta, sua amplitude faz com que ele escape de qualquer definição; o conceito `cultura´ não é claro, embora seus efeitos sejam concretos. Partindo dessa falta de clareza, Manuel propõe uma maneira de abordar a cultura hoje, mediante a análise de seus usos, ou seja, do sistema cultural, tendo os gestores culturais como responsáveis deste sistema. Uma primeira abordagem do conceito `cultura´ seria “o que os gestores culturais gestam”. Que é o que os gestores gestam?. O gestor cultural faz parte do sistema no qual ele tem que gestar um produto (cultura) para um público (usuário, cliente). Dentro deste sistema, a cultura se apresenta como um lugar alheio, autônomo, com capacidades extra-humanas, que tem como função principal prover sentidos e distribuir significados. Partindo da definição de Max Weber1 do sagrado, como algo que dota de sentido as estruturas, Manuel fala da cultura como algo sagrado, já que para o usuário é uma ferramenta para organizar significativamente a realidade, entanto esta o situa na realidade. Neste ponto, o palestrante indica o livro do sociólogo francês Pierre Bourdieu2 `A Distinção : Crítica Social do Julgamento´3 como leitura obrigatória para compreender como a cultura, como fonte primaria do capital simbólico, provê a capacidade da distinção, indispensável para se localizar na realidade em relação às outras pessoas e para se ter certeza de si como indivíduo ou como grupo social. Manuel indicou vários livros que provêem maior informação sobre o tema discutido. Dentro dessa lista se destaca `El Estado Cultural´ do Marc Fumaroli, o qual, dentro da sua análise do que são as políticas culturais, apresenta a cultura como o quinto poder e a religião dos Estados. Partindo desta argumentação Manuel se da à tarefa de aclará-la com exemplos variados.
II
A linguagem como um produto histórico, não pode ser assumida como um recipiente, que adapta-se, docilmente, aos conceitos; as implicações históricas da linguagem, imprimem suas marcas nos conceitos, mudando o sentido primário, trazendo consigo novas implicações. Partindo disto, proponho a análise da metáfora da vida e da morte utilizada na palestra, para tentar vislumbrar as implicações que esta tem. Para esta tarefa, farei referencia ao livro `Metaphors We Live By´ de George Lakoff e Mark Johnson, o qual propõe que as metáforas são ferramentas conceituais e lingüísticas que permitem estruturar um conceito nos termos de outro conceito. Além de fazer a nossa linguagem mais rica, viva e interessante, também são estratégias usadas para compreender o mundo. Nosso sistema conceitual, segundo Lakoff e Johnson, está estruturado nas metáforas. Estas nos permitem utilizar conceitos mais próximos àqueles que são gerados pela experiência corporal, para nos aproximarmos de conceitos mais abstratos.
Partindo disso, revisarei a metáfora da vida e da morte nos exemplos colocados na palestra por Manuel. Ele a utilizou nos seguintes exemplos:
–Os centros urbanos mortos pela sua museificação – a museificação gera um processo de `congelamento´ da possibilidade de mudança e a negação das atividades particulares do lugar, que são ocultadas pela estandardização internacional que a indústria turística reclama. Como no caso do centro histórico da cidade de Medellin–Colômbia4 .
–O segundo exemplo é situado na cidade de Barcelona, onde a faculdade de Geografia e Historia da Universidad de Barcelona, junto com o Museo de Arte Contemporáneo de Barcelona, MACBA, e o Centro de Cultura Contemporanea, foram localizados num mesmo lugar com o objetivo de gerar espaços para a vida. Quando Manuel faz referência às políticas culturais responsáveis por esta iniciativa, assegura com um tom irônico, “donde hoy hay cultura antes no cabía la vida”. Estas instituições culturais foram instaladas numa zona morta de Barcelona, utilizando a cultura como “gérmen da vida” para realizar o processo de rehabilitação e trazer a vida, o que para as políticas urbanísticas é equivalente à estetização e à higienização do espaço.
A fala de Raquel é uma exemplificação do que foi enunciado por Manuel, no contexto brasileiro. Faz referência ao projeto de rehabilitação da região da Luz, que se fundamentou na metáfora da vida e da morte. Um projeto baseado na construção da Pinacoteca, da Sala São Paulo e a intervenção na Estação da Luz pela fundação Roberto Marinho, formando um triângulo, o qual traria a vida à área por meio da cultura e a irradiaria à região considerada morta.
III
As metáforas não são transparentes, sempre condicionam e viciam o conceito que procuram explicar. A metáfora da vida e da morte, nos exemplos dados pelos dois palestrantes, permite compreender como seu uso condiciona a maneira como percebemos, compreendemos e enfrentamos essas mudanças na cidade. A vida tem sido o valor mais importante nas sociedades contemporâneas e ao longo da história. Na Constituição brasileira, por exemplo, há referência ao direito à vida5. Dentro do imaginário coletivo, a morte, a perda são concebidas como algo negativo, em contraposição à vida, que é positiva e deve ser sempre protegida.
Da mesma forma que Manuel, ao reconhecer a complexidade do termo cultura e a dificuldade de sua delimitação, preferindo ater-se à analise das repercussões de seu uso, pretendo analisar o efeito do uso da metáfora da vida e da morte na linguagem das políticas culturais e urbanas. Ao utilizar-se a metáfora da vida e da morte, naturalizam-se as mudanças na cidade, fazendo parecer que todas elas fazem parte da natureza mesma da cidade. Isto traz como conseqüência, um empobrecimento dos espaços de discussão crítica, pois parece inútil questionar a natureza da cidade, ficando essa discussão, vital para a cidade, relegada a especialistas, com espaço limitado de difusão e repercussão.
No caso do projeto de reabilitação de Barcelona, citado por Manuel, a cultura é equiparada com a vida nestes moldes e é entendida como um triunfo das ordens estéticas e sociais do capital econômico. Ao se dar este uso à cultura, esta perde a autonomia e, com isto, perde também sua capacidade emancipadora e de promoção de mudanças. No caso da região da Luz, segundo Raquel, no projeto de sua reabilitação, ela foi considerada como uma zona morta. Desta forma fica claro o desprezo pelos moradores da região e por todas as atividades que lá se desenvolvem. Desvela a preferência dessas políticas pelas atividades que satisfazem o capital e as ordens estéticas que este demanda.
Em relação às afirmações acima, deixo as seguintes questões:
–É a metáfora da vida e da morte indispensável, ou é a mais adequada, para se falar das mudanças na cidade?
–A cultura é vida?
–A que se referem quando falam vida?
–Existem zonas mortas na cidade?
–Qual outra metáfora pode–se utilizar para falar das mudanças na cidade?
–São estes os únicos usos possíveis do conceito de cultura, ou haveria usos mais adequados?
Link recomendado pelo Manuel
Llévame al museo papi
http://www.youtube.com/watch?v=x9fPlDIX_Ko
Notas:
1. http://pt.wikipedia.org/wiki/Max_Weber
2. http://pt.wikipedia.org/wiki/Pierre_Bourdieu
3. http://www.edusp.com.br/detlivro.asp?ID=840683
4. http://www.museodeantioquia.org/paginas/mus_07.html
5. Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros